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sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Dvar Torá: Parashat Shemot (Templo Beth-El, São Paulo)


Quem aqui já assistiu "Êxodo: Deuses e Reis"? E "Príncipe do Egito"? E "Os Dez Mandamentos"?

Tem alguma coisa especial na história da saída de Bnei Israel, o povo de Israel, de Mitzrayim que faz com que cineastas queiram contá-la tantas vezes. Talvez um bom motivo para este interesse é que, como em todo bom filme de Hollywood, esta história tem excelentes heróis e terríveis vilões. Na sua opinião, quem são os grandes heróis desta história?

Mas o que será que realmente queremos dizer quando dizemos "herói"? Segundo o Aurélio, herói é uma pessoa "extraordinári[a] por seus feitos guerreiros, seu valor ou sua magnanimidade; uma pessoa que por qualquer motivo é centro das atenções; protagonista de uma obra literária. O dicionário Even Shoshan, equivalente em hebraico do Aurélio, adiciona a estas, as seguintes definições para a palavra גבור, herói: חזק ברוחו, אמיץ (com forte espírito, corajoso); דמות שמעריצים אותה ומזדהים איתה (figura admirada e com a qual as pessoas se identificam).

A tradição judaica também tem suas próprias definições para o que é ser um גבור, um herói. Em uma passagem famosa de Pirkei Avot, a Ética dos Pais, que nos desafia a re-pensar alguns dos nossos conceitos, nossos sábios perguntam: 

  • Quem é chacham/sábio? Aquele que aprende de qualquer pessoa. 
  • Quem é ashir/rico? Aquele que está satisfeito com a sua parte.
  • Quem é mechubad/pessoa importante? Aquele que respeita os outros.

E, no que se relaciona diretamente com a nossa pergunta:

  • Quem é guibór/herói? Aquele que conquista as suas paixões.[1]

Se eu pudesse adicionar a esta definição de Pirkei Avot sobre quem é um herói, diria que é "aquele que conquista suas paixões e seus medos". 

Em outra passagem de Pirkei Avot, nossos sábios nos ensinam "בְּמַקוֹם שֶׁאֵין אֲנָשִׁים, הִשְׁתַּדֵּל לִהְיוֹת אִישׁ", "em um lugar em que os outros não são decentes, se esforce para ser decente."  [2] Será que uma pessoa que consegue seguir este padrão de conduta não é um herói também?

Com estas definições em mente, vamos nos perguntar novamente: quem foram os heróis da saída de MitzrayimNormalmente, pensamos em Moshé e em Deus como os grandes heróis desta narrativa, mas quem foram os heróis que permitiram, em suas ações cotidianas, que a libertação acontecesse? Quem foram as pessoas que, sem ter sonhos de mudar todo o mundo, agiram com dignidade em um mundo não digno, mesmo que isso implicasse correr grandes riscos?

Nossa tradição tem uma resposta para esta pergunta... Ela nos ensina que "foi pelos méritos das mulheres justas daquela geração que fomos libertados do Egito". Foram duas mulheres - duas heroínas quase anônimas - as primeiras a desafiar o decreto do Faraó para matar os bebês hebreus do sexo masculino. O texto não deixa claro se estas duas mulheres eram judias ou não - המְיַלְּדֹת הָעִבְרִיֹּת pode significar tanto "as parteiras hebréias" quanto "as parteiras das hebréias," – mas foi a elas que o Faraó direcionou sua ordem genocida. Segundo a Torá, as parteiras temeram a Deus, ignoraram a instrução e deixaram os meninos viver, permitindo que o povo hebreu continuasse crescendo. O primeiro ato de desobediência civil do qual temos notícia, desafiando uma ordem imoral em um mundo em que quase não havia possibilidades de dizer "Não!" ao Faraó. Um ato claro de coragem, controlando seus medos e agindo com decência quando a ordem institucional era para que agissem como monstros, um comportamento que desperta nossa admiração. Verdadeiras heroínas! Heroínas do cotidiano, que transformaram o mundo agindo em sua pequena área de influência: o parto de crianças hebreias. 

Outro caso de heroísmo do cotidiano: Em 2007, um curto-circuito causou um incêndio em uma casa na cidade de Palmeira, em Santa Catarina. Desesperada, a dona da casa saiu à rua gritando por socorro para sua filha de apenas um ano e dez meses que dormia em seu quarto. "Um vizinho que passava pela rua, Riquelme dos Santos, acalmou-a dizendo para não se preocupar pois ele salvaria a criança. Dito isso, entrou na casa em chamas e, momentos depois voltou com a menina nos braços, sã e salva. Sem dúvida um feito heróico por si só, mas ainda mais impressionante pelo fato de que, na época, Riquelme tinha apenas cinco anos de idade e estava vestido como seu herói favorito: o Homem Aranha." [3] 

Mais um caso de incêndio aconteceu com Mark Bezos, Diretor de uma ONG em Nova York, chamada "Robin Hood", que também atua como bombeiro voluntário [4]. Ele conta que a primeira vez que pode enfrentar um incêndio, ele chegou alguns segundos depois do primeiro bombeiro voluntário a chegar no local do fogo. Àquele primeiro bombeiro, o capitão pediu que resgatasse o cachorro da proprietária do imóvel que, desesperada, assistia a sua casa pegar fogo, ainda vestindo camisola e sem sapatos nos pés. Quando chegou a vez de Mark receber sua missão, o capitão lhe pediu que entrasse na casa em chamas e trouxesse.... os chinelos da pobre senhora! Ele conta que, quando voltou com os chinelos em mãos, pôde ver que ele não foi recebido com o mesmo entusiasmo com que ela recebeu o bombeiro que tinha o seu cãozinho nos braços. Mas algumas semanas depois, o batalhão dos bombeiros recebeu uma carta da senhora agradecendo seu esforço e dedicação no combate ao fogo. "Sua atenção foi tanta," ela escreveu, "que alguém até trouxe meus chinelos para que eu não ficasse com os pés no chão". Em uma palestra TED, Mark deu o seu recado: nem sempre podemos ser responsáveis por salvar o cachorro, mas isto não deveria nos impedir de tentar trazer o chinelo!

Nossa definição de heroísmo muitas vezes nos congela e impede de tomarmos qualquer iniciativa. Se nosso modelo de heróis se limitar a Deus, Moshé e o Rei David, é difícil que consigamos nos imaginar liderando os 600.000 hebreus que saíram de Mitzrayim ou derrotando Golias. A parashá desta semana nos ensina que todos nós, cada um de nós, tem potencial para ser um pequeno herói do cotidiano.As mulheres da história do Êxodo nos indicam um outro paradigma de heroísmo, um mais próximo da nossa realidade, mas que pode levar a ações que têm o mesmo potencial de impacto.

Se Shifra e Puá, as parteiras que permitiram que Moshé nascesse; Yoheved, a mãe de Moshé, que teve a coragem de trazê-lo ao mundo; Miriam, sua irmã, que o protegeu enquanto ele navegava as águas do Rio Nilo; a filha do Faraó, que decidiu criá-lo, mesmo com a grande chance de que este fosse um menino hebreu; se cada uma delas imaginasse que para ser uma heroína é preciso querer transformar o mundo todo de uma vez só, nenhuma delas teria agido. E, mesmo assim, o impacto de sua ação foi muito maior do que a vizinhança imediata do seu ato de heroísmo do cotidiano. Mesmo sem querer abraçar o mundo, suas ações contribuíram para que a vida do povo de Israel mudasse radicalmente e estabeleceram um novo paradigma para transformações sociais!

Fica aqui um convite para sonharmos com um mundo melhor com nossas máscaras e fantasias de homens-aranha (ou mesmo sem elas) e sairmos pelo mundo com a coragem e a disposição para chegar lá através de atos de heroísmo do cotidiano.

Quem é o seu herói? E para quem você vai mudar o mundo?

Shabat Shalom


[1] Pirkei Avot 4:1. A ordem das definições foi alterada para ênfase.
[2] Pirkei Avot 2:6