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quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Abandonando os lugares que nos aprisionam

Ein mucdám u-meuchár ba-Torá” é um princípio rabínico de acordo com o qual as passagens relatadas na Torá não estão, necessariamente, em ordem cronológica. Algo que apareça mais cedo no texto pode ter acontecido depois de algo que será relatado mais tarde. Na esperança de que este princípio valha para a forma como tratamos do calendário judaico, vou me permitir tratar de Pessach, festa para a qual ainda faltam mais de cinco meses!

Durante o seder e a contação da história na hagadá, em geral damos pouco destaque à discussão entre Rav e Shmuel, dois sábios da primeira geração de Amoraim da Babilônia, tendo vivido no terceiro século da Era Comum. Rav e Shmuel travavam debates frequentes que foram registrados nas páginas do Talmud. Com relação ao seder de Pessach, ambos aceitavam o princípio estabelecido na Mishná (que havia sido compilada na geração anterior, a última dos Tanaim), de que “Os pais devem ensinar de acordo com a inteligência e a personalidade de cada criança. Comece descrevendo degradação e culmine com a libertação” [1] Ees debatiam, no entanto, qual era o significado da degradação e da libertação sobre a qual deveriam ensinar as crianças. 

Shmuel disse: comece com “fomos escravos na terra do Egito” e continue contando, da escravidão física à libertação política. Rav disse: comece com Terach, o pai de Avraham, e o estado de idolatria em que nossos antepassados se encontravam. “Um dia nossos antepassados eram escravos da idolatria e idolatravam deuses pagãos. Agora, depois do Har Sinai, Deus nos trouxe mais próximos do serviço Divino.”

A parashá desta semana, Lech Lechá, nos traz o início do processo de redenção espiritual sobre o qual Rav entendia que o Seder de Pessach deveria tratar. Nela, Deus diz a Avram: “Abandone a sua terra, do lugar em que você nasceu e a casa do teu pai e vá para a terra que te mostrarei”. O movimento de Avraham, ao deixar a casa dos seus pais e buscar seu caminho em direção à terra de Cnaán não foi apenas uma migração geográfica: foi um processo de renascimento espiritual.

Somos, na imensa maioria, descendentes de imigrantes, de pessoas que deixaram suas terras de origem e se instalaram no Brasil, um processo muitas vezes doloroso de desenraizamento de um lugar conhecido e busca de novas referências em uma nova terra. Somos, por característica cultural, um povo que segue o exemplo de Avraham, sempre em busca de novas referências de visão de mundo; um processo que pode ser igualmente difícil e doloroso, de rejeitar as antigas certezas mas de ainda não estar seguro de quais serão as novas crenças.

A jornada de Avraham, que tem início na parashá desta semana, pode nos servir de referência nessa travessia. O caminho não é, nem nunca foi, linear. Avraham avança e recua, demonstra bondade e caráter (como quando resgata seu sobrinho Lot, que havia sido sequestrado) ao mesmo tempo em que também comete seus erros (como quando, no Egito, tenta passar Sará como se fosse sua irmã). Nossos caminhos tampouco são lineares, aprendemos ao longo da jornada, nos fortalecemos e nos preparamos para os novos desafios.

Que neste shabat consigamos abandonar os lugares e as crenças que nos aprisionam e busquemos nossa redenção no caminho, no esforço de caminhar e aprender.

Shabat Shalom!


[1] Mishná Pessachim 10:4

[2] Bereshit Rabá 39:11



sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Dvar Torá: Violência contra as mulheres - saindo da inércia (CIP)


Pra quem ainda lembra das aulas de Física do colegial, “inércia” é a tendência de um objeto se manter no estado em que está, seja parado ou em movimento, a menos que uma força seja aplicada sobre ele. Na fala um pouco mais coloquial, “inércia” é a tendência das coisas continuarem como são hoje.

Esse conceito se aplica aos objetos em movimento, como nos casos estudados pela Física e às pessoas, também. Se não nos esforçarmos para “sair da inércia”, faremos sempre as mesmas coisas, com as mesmas pessoas, nos mesmos lugares. Pelas leis da inércia, Avram e Sarai teriam continuado a viver e Ur Casdim ou se mantido em Harán, onde eles pararam no meio da viagem.

“Lech Lechá”, o chamado Divino que convocou Avram e Sarai e abandonarem sua terra, o lugar em que tinham nascido e as casas dos seus pais [1], foi provavelmente a força que levou-os a transformarem radicalmente as suas realidades. Não fosse esse chamado, Avram e Sarai, teriam continuado a viver em Harán, onde Terach, o pai de Avram, faleceu.

Outro lugar onde a ideia inércia se aplica é na nossa auto-percepção. Congelamos conceitos que um dia foram verdadeiros e, muitas vezes, não nos damos conta quando as coisas mudaram radicalmente. A idade que imaginamos ter, nossa capacidade física, a relação que temos com algumas pessoas. Quantas vezes não dizemos sobre alguém com quem não falamos há anos “esta e pessoa e eu somos grandes amigos”?!

No mundo judaico isto também se aplica. Ainda falamos sobre a nossa tradição que os personagens da Torá são humanos cheios de falhas, não semi-deuses perfeitos que nunca erram… E, mesmo assim, ao longo dos séculos a tradição judaica foi desenvolvendo desculpas e explicações para cada um dos erros cometidos pelos nossos patriarcas, de forma que eles deixaram de ser erros. Os patriarcas, na prática, passaram a ser vistos como perfeitos…

Como eu argumento com frequência, é hora de sair da inércia e olharmos com honestidade para as falhas dos nossos patriarcas. Quem sabe, seja este o nosso momento “Lech Lechá”, de abandonarmos o conforto das nossas certezas e permitirmos que as dúvidas aflorem, também na relação com a tradição. Na parashá desta semana, depois de chegarem à terra de Cnaán, Avram e Sarai enfrentam uma seca e precisaram ir ao Egito comprar mantimentos. 
Quando estava para entrar no Egito, ele disse à sua esposa Sarai: “Eu sei como você é uma mulher bonita. Se os egípcios virem você e pensarem: ‘Ela é a esposa dele’, eles vão me matar e deixar você viver. Por favor, diga que você é minha irmã, para que tudo corra bem por sua causa e que eu possa continuar vivo graças a você. ” Quando Avram entrou no Egito, os egípcios viram como a mulher era excepcionalmente bonita. Os cortesãos do Faraó a viram e elogiaram ao Faraó, e a mulher foi levada ao palácio do Faraó. Por causa dela, foi correu bem para Avram; ele adquiriu ovelhas, bois, jumentos, escravos e escravas, jumentas e camelos. [2]
Ou seja: Avram colocou sua esposa, Sarai, em risco para salvar sua própria pele. Pelos versículos seguintes, que eu não vou ler, a impressão que temos é que o Faraó, de fato, a tomou para sua esposa. A objetificação da mulher, tanto por Avram quanto pelo Faraó é clara. Neste episódio, não escutamos a voz de Sarai, apenas a de Avram e do Faraó.

Há outro episódio na parashá no qual a objetificação da mulher é evidente: Sarai não podia ter filhos e oferece Hagar, sua escrava, para que a Avram possa ter um filho seu através dela. Aqui, a voz de Sarai é escutada; o que não ouvimos é a voz de Hagar, sua escrava egípcia. Quem escuta a voz de Hagar é um anjo de Deus, que lhe aparece que quando ela fugia da opressão de Sarai.

Como podemos continuar lendo estas passagens sem a devida crítica, sem que tentemos fazer ticún, uma correção, ainda que tardia às realidades que elas descrevem?

Mais problemático é o fato de vivermos em um mundo no qual a violência contra a mulher continua ocorrendo como um fato do cotidiano. 

Este ano, com a volta do Taliban ao poder, o tema da violência contra a mulher voltou à tona. Lá, uma série de atos contra a liberdade feminina foram adotados, incluindo o fechamento de abrigos para vítimas de violência doméstica e a severa limitação para que meninas possam continuar estudando.

Seria muito fácil, no entanto, apontar só pra fora quando pensamos na questão da violência contra as mulheres quando o assunto no Brasil é extremamente sério.

De acordo com o 14° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, uma mulher é estuprada no Brasil a cada 10 minutos [3]. A edição anterior do Anuário, indicava que em 2018, 3 mulheres foram vítimas de feminicídio a cada dia; 61% delas, negras. O companheiro ou ex-companheiro foi o responsável pelo feminicídio em 88.8% dos casos [4]. De acordo com uma pesquisa feita pelos Institutos Patricia Galvão e Locomotiva, 97% das mulheres já foram vítimas de assédio em meios de transporte [5].

Pra quem acha que a comunidade judaica está imune a esta realidade, temos, mais uma vez, que sair da nossa inércia conceitual. O Comitê de Acolhimento do Grupo de Empoderamento e Liderança Feminina da FISESP vêm desenvolvendo há alguns anos iniciativas para acolher mulheres vítimas de violência doméstica em parcerias com entidades dentro e fora da comunidade judaica. Desde que a iniciativa começou e cartazes foram colocados em lugares estratégicos da comunidade judaica, mais de 60 mulheres e famílias receberam acolhimento, escuta e ajuda para resolver a situação em que se encontravam. O grupo tem trabalhado com abordagens distintas, multi-disciplinar e respeitando as diferentes sub-culturas dentro da comunidade judaica, incluindo — mas não restrita — às diferenças de movimentos religiosos.

Como a frequência às sinagogas está limitada, você pode acessar o folheto do projeto através deste link: https://bit.ly/predica1510. Nele, você encontra o número de telefone e email para encontrar acolhimento e ajuda.

A iniciativa do Grupo de Empoderamento Feminino da Fisesp vai muito além. Eles tem atuado também na prevenção da violência e no desenvolvimento de relacionamentos saudáveis, atuando junto às escolas judaicas e movimentos juvenis na defesa de políticas públicas que enderecem estas questões.

A questão da violência contra a mulher é séria e ela é judaica também. Não foi ok quando Avram possibilitou a violência contra Sarai. Não foi ok quando Sarai possibilitou a violência contra Hagar. Não é ok nos silenciarmos quando pessoas da nossa comunidade se vêem em relacionamentos abusivos, sem saber onde pedir ajuda. 

Temos que sair da nossa inércia e nos tornarmos parceiros ativos destas iniciativas — pelo bem de cada um de nós e da nossa comunidade toda!

Shabat Shalom!