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quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Atenção: Comunidade em Construção

Confesso que nunca gostei muito de praticar esportes, tampouco de assisti-los pela TV. Hoje em dia, quando meu filho passa horas assistindo outras pessoas jogando seus videogames favoritos, eu lhe pergunto se jogar não é mais divertido que assistir, parece que ele não entende a pergunta, como se não existisse, de fato, diferença para ele. o único período em que eu acompanhei esportes pela TV foi na década de 80, quando o Brasil tinha grandes pilotos de corrida. Naquela época, seguíamos duas competições: a Fórmula-1, que era transmitida pela Globo, e a Fórmula Indy, que passava na Bandeirantes. Esta última mesclava circuitos tradicionais, com curvas para os dois lados com circuitos ovais, em geral com curvas apenas para a esquerda, como a famosa 500 Milhas de Indianápolis. Nos dois tipos de circuito, muitas aconteciam a cada volta mas, a menos que um carro se acidentasse ou desistisse no meio, todos retornavam ao mesmo ponto e iniciavam uma nova volta.

Fiquei pensando nas repetições, volta após volta, das corridas de carro ao considerar o que temos vivido nos últimos anos com a pandemia e como a parashá desta semana tem se relacionado com os ciclos (ou as voltas) que temos vivido. Foi nesta parashá, Vaiakhel, que tivemos em 2020 o primeiro Cabalat Shabat a portas fechadas, com medo do que estava por vir. Quando lemos esta parashá em março de 2021, estávamos no começo da segunda onda, assustados (com razão) com a piora do quadro de saúde pública. Neste ano, depois de termos atravessado mais uma piora na saúde pública, estamos com a impressão de que deixamos para trás o pior da crise trazida pela variante Ômicron, começamos a nos preparar para o retorno a atividades presenciais na CIP, tanto para a equipe profissional quanto para nossa comunidade.

A palavra “Vaiakhel”, o nome da parashá, vem da mesma raíz que “kehilá”, “comunidade” ou “congregação”, e se refere ao momento em que Moshé “congrega” todo o povo para transmitir as instruções de Deus com relação à construção do Mishcán. Ao longo dos últimos dois anos, fomos desafiados a repensar o que significa estar em comunidade. Não são raras as situações em que, ao encontrar alguém pela primeira vez, me dizem “eu já te conheço, mas você ainda não sabe quem eu sou.” Frente à minha cara de espanto (pelo menos nas primeiras vezes que me disseram isso), a pessoa continua: “acompanho os serviços da CIP online, então já acostumei a rezar com você na sala da minha casa, só você que não consegue ver que estamos lá, juntos.” Quem já participou destes serviços religiosos online sabe que há uma comunidade que “se encontra” no mundo virtual, manda saudações de Shabat Shalom, reage uns aos comentários dos outros. Será que é esse o novo formato de comunidade com o qual precisamos nos acostumar, em que não nos vemos mas reconhecemos que estamos participando da mesma experiência?

Uma outra vivência online é o minián diário da CIP. Nos encontramos por Zoom, o que permite que sejamos vistos e também vejamos os participantes. Pessoas de todo o país, que antes não tinham a oportunidade de rezar juntas, passaram a se encontrar diariamente. Ao longo dos últimos dois anos, tivemos vários casos de famílias enlutadas que, graças à tecnologia, puderam congregar membros que viviam em continentes distintos. Antes do serviço e ao seu final, conversam um pouco, conhecem mais da vida de cada um. Será esta a nova forma de interatividade das nossas comunidades, em que nos reunimos virtualmente para um propósito, cada no seu canto?

Nossas aulas passaram a ser online também. Aos alunos de São Paulo, passamos a reunir alunos de Brasília, de Manaus, de Recife, até de Portugal. Em pequenas salas virtuais, estes alunos discutiram textos judaicos antigos e o usaram de ponto de partida para falar de suas vidas. Se conheceram e se estabeleceram como grupo (contando também, é claro com o apoio de um grupo de whatsapp) e passaram a se encontrar também fora das telas (quem está na mesma cidade…). Será que na nossa nova comunidade a tecnologia servirá de catalisador para encontros presenciais?

O sentido, o formato, o significado das nossas comunidades nunca foi tão fluido. Ao planejarmos a volta ao mundo presencial, consideramos de que aspectos de vida comunitária sentimos falta e que gostaríamos de recuperar e o que ganhamos com a incorporação de novas estratégias de construção comunitária, que gostaríamos de manter. Na elaboração destes planos, a pergunta básica que fica é qual será a cara da comunidade no século XXI pós-Covid. Há quem fale em metaversos e outras modalidades de interação virtual para argumentar que precisamos nos acostumar a relacionamentos que se estabelecem principalmente através das telas, sem a necessidade de estarmos todos no mesmo espaço. Particularmente, apesar de reconhecer que a tecnologia veio para ficar e não faz sentido pensar em descartá-la, sinto falta do contato interpessoal, da conversa ao redor da mesa de kidush ou do cafezinho, do abraço e do aperto de mão na chegada e na despedida.

Nesta parashá, Moshé transmite ao povo de Israel, reunido em comunidade, o pedido de doações para a construção do Mishcán, o projeto comunitário da época. A resposta de todo o povo é tão intensa que os artesãos lhe pedem para orientar o povo a parar de trazer novos donativos. Qualquer que seja o formato da nova comunidade que estamos construindo, que possamos sempre estar dispostos a entregar um pouco de nós mesmos para este projeto coletivo e que a CIP continue sendo um ponto de encontro de pessoas, de ideias e de valores que mantém o judaísmo relevante para muito mais voltas no circuito da vida.

Shabat Shalom.


sexta-feira, 20 de março de 2020

Dvar Torá: Percebendo a generosidade ao nosso redor (CIP)

Uma música israelense lançada há uns 15 anos, Shirat haSticker, fazia uma colagem de mensagens, principalmente políticas, de adesivos. O texto foi escrito pelo poeta David Grossman, transformado em rap pela banda haDag Nachash e trazia uma série de sobreposições de ideias opostas que levava a resultados inusitados. 

Fiquei pensando nessa música hoje, na esperança de compor uma prédica inteira com as dezenas, talvez centenas, de memes que eu recebi no WhatsApp, em grupos de amigos, de pais de colegas dos meus filhos na escola, e de outros conhecidos, todos tentando encontrar algum sentido e alguma graça nessa nossa nova rotina, com medo do vírus, do seu impacto na nossa saúde e nos nossos bolsos; sem saber o que fazer com nossos filhos com aulas presenciais suspensas, tendo que virar pai e professor, tudo ao mesmo tempo; assustados igualmente pela falta de informação e pelo excesso dela, especialmente assustados com a informação falsa, que cria pânico e que, por ironia, se espalha com ainda mais rapidez nesses nossos tempos de redes sociais.

No final, abandonei a ideia de uma prédica só com esses memes, mas guardei um que, sem qualquer motivo especial, me chamou especialmente a atenção. Dizia: “na verdade, ficar em casa não é tão ruim assim, mas me parece muito estranho um saco de arroz ter 8956 grãos e o outro, 8743.” Sonhamos com a possibilidade do ócio criativo, um tempo de descanso para nossas almas e corpos cansados. Sonhamos com a chance de colocar a leitura em dia, de arrumar a casa, de limpar a caixa de emails — mas ninguém queria que fosse nessas condições, preocupados com os idosos em nossas vidas e com aqueles nem tão idosos assim, com medo do que as próximas semanas nos reservam. E, nessa dúvida do que fazer com o tempo, acabamos fazendo coisas que o preenche sem lhe dar nenhum significado — como contar os grãos de arroz no saco.

Esta semana temos uma parashá dupla: Vayakhel-Pecudei. Logo no começo da parashá Vayakhel, Moshé congrega toda a comunidade — e a palavra Vayakhel quer dizer exatamente isso: “congregar”, da mesma raiz que “kehilá”, “congregação”. Então, Moshé fala do Shabat e na sequência, ele pede presentes para os rituais religiosos da época: para a construção do Mishkán, com todas as suas partes, para as roupas dos Kohanim, etc. E as pessoas responderam, com נדיבות לב, “generosidade do coração”, eles começaram a trazer ouro, broches, brincos, anéis e pingentes, fios coloridos azuis, púrpura e vermelhos, linho de alta qualidade, lã de cabrito, objetos de cobre e de prata, objetos de madeira sólida. E as pessoas, em sua generosidade, doavam seu tempo e sua expertise, tecendo, construindo e adaptando o que era doado. Em comunidade, eles se mobilizaram e, com generosidade, se entregaram à tarefa.

Hoje eu assisti um colega, o rabino Josh Whinston, cantar para seus filhos lindas músicas de Shabat com a câmera ligada na sala da sua casa, para que todos pudéssemos desfrutar deste momento. Com violões, pandeiros e outros instrumentos, a felicidade da família dele se transformou em felicidade de todos. Hoje, eu escutei de empresas de cosméticos que doarão sabonete líquido para comunidades menos favorecidas. Empresas de bebida no exterior e no Brasil, que converteram suas linhas industriais para produzir álcool gel. As empresas de TV a cabo estão disponibilizando seus pacotes de filmes de graça para as pessoas que ficarão em casa e muitas universidades no Brasil e no exterior estão oferecendo cursos online gratuitos. Em muitos prédios, vizinhos entraram em contato com os idosos seus vizinhos e se ofereceram para fazer as compras. Jornais liberaram o conteúdo de tudo o que se relacione ao Coronavírus. Artistas estão fazendo shows em suas casas e transmitindo pela internet. Produtoras de filmes disponibilizaram seus acervos. Professores das mais diversas competências passaram a dar aula online. Cada um, a partir da sua נדיבות לב, da generosidade do seu coração, resolveu fazer algo para o bem da comunidade, da קהילה.

Na parashá da semana passada, lemos sobre o bezerro de ouro, o pecado de achar que o Divino está na fisicalidade de um objeto. Estamos cada um em nossas casas, este salão de sinagoga vazio… a casca, o aspecto físico da nossa comunidade está vazio, mas continuamos com a capacidade de sermos uma comunidade, um grupo de pessoas que se importam uns com os outros, que se apóiam mutuamente, que são generosos uns com os outros, especialmente em momentos de dificuldade como este. A CIP continua ativa, com cursos, palestras e serviços religiosos transmitidos online; os rabinos e o resto do corpo profissional continuam prontos a atender vocês, agora pelo telefone ou por vídeo-conferência.

No começo da instrução para a construção do Mishkán, que lemos há algumas semanas em parashat Trumá, Deus diz ao povo que Lhe façam um Santuário “para que Eu possa morar entre eles”. No final de parashat Pecudei, a segunda parte da leitura deste Shabat, quando todos tinham se doado ao máximo pela constituição da comunidade, a presença Divina habitou entre eles. O Sfat Emet, um comentário chassídico polonês do final do século 19, entende que Deus habita literalmente dentro de cada um dos israelitas. 

É o ato de generosidade que torna esta intimidade possível, que faz com que Deus se torne parte de cada um de nós. É a verdadeira generosidade dos nossos corações, nem sempre com dinheiro, mais frequentemente com atitude, que transforma o distante e cósmico em um Deus próximo, intimo, parceiro. Era verdade nos tempos do deserto e continua sendo verdade em nossas cidades semi-desertas em tempos de Coronavírus.

Que nesse shabat, o distanciamento que esta pandemia nos impõe seja percebido como a prova de amor que realmente é; que continuemos nos importando, nos ajudando, nos acolhendo, apesar da distância física; que cada um possa oferecer o que tem de melhor para que saiamos mais fortes e mais unidos deste contexto surreal em que hoje nos encontramos.

Shabat Shalom!