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quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Qual a tua narrativa neste Chanucá?

Chanucá é, entre as festas judaicas, provavelmente a que mais tem narrativas para celebrar a sua comemoração. O nome da festa Chanucá (חנוכה) significa “dedicação” ou “inauguração” e faz referência à re-dedicação do Templo de Jerusalém após a vitória militar dos Macabeus no século II aEC. Esta história, relatada nos livros Macabeus I e II, não foi incorporada ao Tanach, mas faz parte da Bíblia Católica.

Segundo os historiadores [1], a terra de Israel era dominada pelo Império Selêucida, Sírios de cultura grega (Helenista). Em seus esforços para integrar a terra de Israel ao resto do Império, os Selêucidas tinham trazido inovações urbanas para Jerusalém e outras cidades e oferecido pertencimento ao império. Para parte da população judaica, especialmente a elite, estas eram ofertas atraentes, ainda que implicassem abrir mão de parte do que diferenciava os judeus de outros povos. Para outra parte da população judaica, especialmente o campesinato, as contrapartidas para integração ao império não se justificavam e significavam romper o pacto judaico com Deus. Quando o rei selêucida Antiocus IV nomeou um de seus aliados, Jason, para a posição de Sumo Sacerdote e este revogou práticas judaicas, tais como a circuncisão, o descanso no Shabat e a proibição de sacrifícios a deuses pagãos a insatisfação dos campesinos aumentou.

Em 166 aEC, uma família de Modiin deu início a uma revolta contra a elite judaica associada aos sírios. O patriarca, Matitiahu, era o líder político do movimento; seu filho, Iehudá (apelidado Macabi, ou “martelo” em aramaico), era o líder militar. Ao longo de quatro anos, uma guerra civil dividiu o mundo judaico e, apesar de seu menor poderio militar, o campesinato derrotou a coligação da elite judaica com os selêucidas.

Quatro séculos antes, o rei Shlomô tinha celebrado a inauguração do Primeiro Templo em Sucot, com oito dias de festa [2]. Por isso, os Hasmoneus (a dinastia judaica que se estabeleceu após a vitória) decidiram seguir a mesma prática, comemorar Sucot fora de época e celebrar a reinauguração do Templo por oito dias.

Apesar desta perspectiva, na qual a batalha de Chanucá foi uma guerra civil, a história ficou marcada como uma vitória dos judeus sobre os Selêucidas (ou sobre os Gregos, de quem eles tinham herdado a cultura Helenista). Nos séculos seguintes, a região caiu sob domínio romano e os atritos entre judeus e dominadores foram se acentuando. Na primeira guerra Judaico-Romana (66-73 EC), o Templo de Jerusalém foi destruído.  Na terceira guerra Judaico-Romana (132-136 EC), também conhecida como “Revolta de Bar Kochbá”, a população judaica da Terra de Israel foi dizimada [3]. Nos séculos seguintes, os Rabinos tinham muita preocupação que a mensagem de Chanucá encorajasse novas revoltas militares contra os romanos e levasse ao extermínio no povo. Por isso, quando a história de Chanucá é relatada no Talmud, a ênfase é retirada do conflito militar e, pela primeira vez, aparece a narrativa do milagre do óleo. Em resposta à pergunta “O que é Chanucá?”, o Talmud responde: “no dia 25 de Kislev começam os dias de Chanucá, que são oito. (...) Quando os Gregos entraram no Santuário, eles tornaram impuros todos os vidros de óleo que lá estavam. Quando a dinastia dos Hasmoneus os venceu, eles procuraram e encontraram apenas um vidro de óleo com o lacre do Sumo Sacerdote e nele havia apenas óleo suficiente para um dia. Aconteceu um milagre e puderam acender [a menorá] por oito dias.” [4] Muitas das práticas que hoje temos sobre Chanucá derivam desta perspectiva, incluindo o nome “Chag Urim”, “festa das luzes”.

No final do século 19, com o crescimento do movimento sionista em partes da Europa Central e Oriental, a mensagem da auto-afirmação do povo judeu através do levante dos Macabeus  parecia bem mais alinhada com os caminhos políticos do povo judeu do que em séculos anteriores. Neste momento, a mensagem de Chanucá passa por nova transformação, enfatizando os atos de bravura dos Hasmoneus, sua coragem política e astúcia militar. Neste processo, ajudou a crescente abertura e diálogo entre as comunidades judaicas emancipadas e seus vizinhos cristãos, cuja versão da Bíblia tinha incorporado os livros de Macabeus I e II, com a narrativa histórica do feriado.

Um século antes, o mestre chassídico, rabino Levi Yitzhak de Berditchev, tinha escrito que há 3 tipos de milagres: os milagres aparentes, que subvertem a ordem natural, como as dez pragas ou a abertura do Mar, como comemoramos em Pessach. Há também os milagres escondidos que acontecem sem a intervenção humana, como a história de Purim, que, na sua leitura, é uma sequência de acontecimentos direcionados pela mão de Deus sem, no entanto, que a ordem natural seja quebrada. Finalmente, há os milagres escondidos, que acontecem através das ações humanas, como a história de Chanucá, na qual foi através das ações dos Macabeus que os poucos desarmados puderam derrotar os muitos e fortes.

Chanucá 5783 começa no próximo domingo, dia 18/12. Que em nossa comemoração possamos definir nossas próprias narrativas e que tenhamos a coragem de determinar os caminhos que vamos trilhar e a força para sustentar que até mesmo o improvável aconteça. Que ao acendermos as velas e pela nossa conduta consigamos, de fato, trazer mais luz para um mundo que tem insistido, tantas vezes, em mergulhar na escuridão.

Chag Urim Sameach!


[1] Zion, Noam & Spectre, Barbara (2000). A Different Light: the Big Book of Hanukkah, p. 53-106.

[2] Crônicas II 7:8-11

[3] De acordo com Cassius Dio, um historiador que viveu naquela época, 585.000 judeus foram mortos, além daqueles que morreram de doenças e fome. Quase 1000 vilarejos foram completamente destruídos.

[4] Talmud Bavli Shabat 21b


quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Abandonando os lugares que nos aprisionam

Ein mucdám u-meuchár ba-Torá” é um princípio rabínico de acordo com o qual as passagens relatadas na Torá não estão, necessariamente, em ordem cronológica. Algo que apareça mais cedo no texto pode ter acontecido depois de algo que será relatado mais tarde. Na esperança de que este princípio valha para a forma como tratamos do calendário judaico, vou me permitir tratar de Pessach, festa para a qual ainda faltam mais de cinco meses!

Durante o seder e a contação da história na hagadá, em geral damos pouco destaque à discussão entre Rav e Shmuel, dois sábios da primeira geração de Amoraim da Babilônia, tendo vivido no terceiro século da Era Comum. Rav e Shmuel travavam debates frequentes que foram registrados nas páginas do Talmud. Com relação ao seder de Pessach, ambos aceitavam o princípio estabelecido na Mishná (que havia sido compilada na geração anterior, a última dos Tanaim), de que “Os pais devem ensinar de acordo com a inteligência e a personalidade de cada criança. Comece descrevendo degradação e culmine com a libertação” [1] Ees debatiam, no entanto, qual era o significado da degradação e da libertação sobre a qual deveriam ensinar as crianças. 

Shmuel disse: comece com “fomos escravos na terra do Egito” e continue contando, da escravidão física à libertação política. Rav disse: comece com Terach, o pai de Avraham, e o estado de idolatria em que nossos antepassados se encontravam. “Um dia nossos antepassados eram escravos da idolatria e idolatravam deuses pagãos. Agora, depois do Har Sinai, Deus nos trouxe mais próximos do serviço Divino.”

A parashá desta semana, Lech Lechá, nos traz o início do processo de redenção espiritual sobre o qual Rav entendia que o Seder de Pessach deveria tratar. Nela, Deus diz a Avram: “Abandone a sua terra, do lugar em que você nasceu e a casa do teu pai e vá para a terra que te mostrarei”. O movimento de Avraham, ao deixar a casa dos seus pais e buscar seu caminho em direção à terra de Cnaán não foi apenas uma migração geográfica: foi um processo de renascimento espiritual.

Somos, na imensa maioria, descendentes de imigrantes, de pessoas que deixaram suas terras de origem e se instalaram no Brasil, um processo muitas vezes doloroso de desenraizamento de um lugar conhecido e busca de novas referências em uma nova terra. Somos, por característica cultural, um povo que segue o exemplo de Avraham, sempre em busca de novas referências de visão de mundo; um processo que pode ser igualmente difícil e doloroso, de rejeitar as antigas certezas mas de ainda não estar seguro de quais serão as novas crenças.

A jornada de Avraham, que tem início na parashá desta semana, pode nos servir de referência nessa travessia. O caminho não é, nem nunca foi, linear. Avraham avança e recua, demonstra bondade e caráter (como quando resgata seu sobrinho Lot, que havia sido sequestrado) ao mesmo tempo em que também comete seus erros (como quando, no Egito, tenta passar Sará como se fosse sua irmã). Nossos caminhos tampouco são lineares, aprendemos ao longo da jornada, nos fortalecemos e nos preparamos para os novos desafios.

Que neste shabat consigamos abandonar os lugares e as crenças que nos aprisionam e busquemos nossa redenção no caminho, no esforço de caminhar e aprender.

Shabat Shalom!


[1] Mishná Pessachim 10:4

[2] Bereshit Rabá 39:11



sexta-feira, 20 de maio de 2022

Dvar Torá: O Judaísmo Fora da Caverna (CIP)


Pois, é…. quem diria?! Já estamos no dia 35 da contagem do Omer! Mas o que é, afinal de contas, a contagem do Omer???

Esta semana eu estava dando uma aula sobre a contagem do Omer e nós começamos a contar as camadas históricas que iam se acumulando na minha explicação, quase sem que eu me desse conta…

A contagem do Omer é um período de 49 dias que vai do 2º dia de Pessach até a véspera de Shavuot. Em tempos bíblicos, era um período agrícola que correspondia à colheita dos grãos. Por isso, em cada dia deste período era oferecido uma quantidade de cevada em sacrifício a Deus. Essa quantidade, um pouco mais de 3,5 litros [1], era chamada de Omer, daí o nome do período. Então, nesta época, o período do Omer estava associado à colheita dos grãos.

Mas a época em que a colheita acontecia: entre Pessach — a festa da libertação de Mitsrayim — e Shavuot — a festa que os rabinos associaram à entrega da Torá no Monte Sinai — deu um significado adicional a este período. Recém libertados da servidão mas sem terem ainda encontrado o Divino no Monte Sinai e recebido a Torá, os hebreus viviam um período de alegria, de expectativa, de incertezas, até de medo. Eu fiquei pensando bastante este ano no que seria o equivalente moderno deste período e o melhor que consegui chegar foi a gravidez — já sabendo que há um bebê caminho e torcendo para que tudo dê certo, mas sem ter certeza de como o processo irá se desenvolver, novos pais passam por muitas destas mesmas emoções: excitação, expectativa, ansiedade e medo.

Perto de 14 séculos depois da saída de Mistrayim, uma nova camada histórica adiciona contexto ao significado da contagem do Omer hoje em dia. Por volta do ano 135 E.C. e, de acordo com o Talmud, 24 mil alunos de Rabi Akiva faleceram por não se tratarem com respeito. A leitura tradicional deste episódio é que uma praga acometeu os discípulos de rabi Akiva mas desde o século 19 e, em particular a partir do Movimento Sionista, ganhou força o entendimento de que os discípulos de rabi Akiva estavam envolvidos na revolta de Bar Kochba contra os romanos e que a morte deles está associada à forma brutal como as tropas romanas responderam à revolta. De acordo com algumas versões, as mortes terminaram no 33º dia do Omer; de acordo com outras versões, elas foram interrompidas no 33º dia, mas recomeçaram na sequência e continuaram até o 49º dia da contagem. Por causa da perda de vidas e de tradições judaicas representas pela morte de 24.000 estudiosos da Torá, foi determinado que o Omer fosse um período de semi-luto, no qual não realizamos celebrações — exceto pelo 33º dia, que nós chamamos de LaG baOmer [2]. Se hoje acabamos de entrar no 35º dia da contagem, fica claro que 5ª feira foi LaG baOmer.

Uma outra camada histórica desta data chega depois de outros 14 séculos. No século 16, na cidade de Tsfat, o rabino Itschac Luria determinou que LaG baOmer era o aniversário do falecimento de Rabi Shim’on Bar Iochai, que é tradicionalmente entendido como o autor do Zohar, a obra fundamental da Cabalá, o misticismo judaico.

Aqui começam as brincadeiras com o hebraico e como elas levaram às principais tradições de LaG baOmer. Zohar, em hebraico, significa “brilho” e daí veio a tradição de comemorar a vida de Rashbi dançando ao redor da luz da fogueira. Além disso, conta a lenda que durante sua vida nunca houve um arco-íris no céu — arco íris em hebraico é keshet; o arco de arco e flecha também é keshet. Então, brinca-se com arco e flecha ao redor da fogueira.

Quando o período do Omer passou a ser associado à revolta de Bar Kochbá, a tradição de dançar com arco e flecha ao redor da fogueira ganhou ares de acampamento militar na luta contra a opressão romana, mas esta não é necessariamente a origem destes costumes.

Rabi Shim’on Bar Iochai pertencia à geração de discípulos de rabi Akiva que foram treinados após a morte dos 24.000 alunos. De acordo com o Talmud [3], Rashbi tinha ofendido as autoridades romanas e, por isso, ele e seu filho tiveram sua morte decretada. Primeiro, eles se esconderam no Beit Midrash, a Academia Rabínica. Depois, com medo de que as autoridades os descobrissem lá, encontraram uma caverna e lá se esconderam. Um milagre garantiu que uma árvore de alfarroba crescesse na entrada da caverna, garantindo sobra, comida e bebida para pai e filho. Depois de doze anos escondidos na caverna, estudando Torá e crescendo em conhecimento e espiritualidade, eles receberam o recado de que o imperador havia morrido e o decreto de morte contra eles cancelado.

Rashbi e seu filho saíram da caverna e viram uma pessoa semeando e plantando. O pai disse, em tom de reprovação: “estas pessoas abandonam a vida eterna e se engajam com a vida no seu momento.” De acordo com o Talmud [4], todo lugar ao qual eles direcionavam seu olhar pegava fogo. Uma voz Divina lhes disse: “vocês saíram da caverna para destruir o Meu mundo?!? Voltem para a caverna!” Eles voltaram e ficaram lá mais 12 meses até que foram novamente autorizados a sair.

Para Rabi Shimon bar Iochai e seu filho, rabi Elazar, tudo que importava era o conhecimento e o seu próprio crescimento espiritual. Eles tratavam com desdém as atividades concretas neste mundo: o plantar e semear e colher e preparar o solo, o construir pontes e trocar fraldas e preparar o jantar e distribuir comida e cobertores e abraços e sorrisos a moradores de rua. Para eles, nada disso importava porque eles não conseguiam perceber a profunda transformação espiritual que pode vir destes atos cotidianos; para eles não era claro como muitas destas ações despertam a chama divina que brilha em cada um de nós. 

Pessoalmente, eu sou um apaixonado pelos rituais judaicos — só para falar dos rituais de 6ª feira: eu me emociono com as melodias e adoro repartir com meus filhos a chalá de chocolate quentinha depois de tê-los abençoado, um ritual que eles adoram e no qual insistem em me abençoar também. Eu vejo muita gente na nossa comunidade encontrando abrigo e acolhimento nestes momentos rituais e, como rabino, eu procuro propiciar e encorajar que eles aconteçam.

E, ao mesmo tempo, para mim é claro que o judaísmo, seus rituais, valores e tradições, tem que servir como uma lente através da qual nos relacionamos com o mundo, como interagimos com ele, nunca como um muro que nos separe do mundo. Na história de Shimon Bar Iochai, o Divino reconheceu que um engrandecimento espiritual que venha através do desprezo pelo mundo não tem espaço, tem que voltar para a caverna. Ou nas palavras do rabino e ativista Abraham Joshua Heschel, “Você não pode adorar Deus e depois olhar para um ser humano, criado por Deus à Sua própria imagem, como se ele ou ela fosse um cavalo”. [5]

Neste ano, LaG baOmer caiu na noite historicamente mais fria de maio em todos os registros da cidade de São Paulo. Quem anda pelas ruas não consegue deixar de se impressionar com a crescente quantidade de pessoas vivendo nas calçadas. Famílias inteiras que vivem nas ruas desprotegidas, desidratando sob o calor do verão, encharcadas nos temporais que esta cidade conhece tão bem, desesperadas no frio quando é ele que chega. De acordo com a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social da Prefeitura de São Paulo (SMADS), o número de pessoas vivendo nas ruas de São Paulo aumentou 31% entre 2019 e 2021, chegando a cerca de  32.000 pessoas. [6]

Levar a tradição judaica a sério tem que, de alguma forma, implicar levar também esta situação a sério. É agir para transformá-la oferecendo soluções emergenciais frente à fome, ao frio e às doenças e também soluções estruturais que garantam que os cidadãos das nossas cidades possam viver com dignidade, com um teto sobre suas cabeças, comida nas suas mesas e um futuro para o qual almejar.

A CIP tem diversas iniciativas focadas neste universo. O Lar das Crianças atende quase 500 crianças e suas famílias em situação de vulnerabilidade social; grupos da área de jovens adultos, o MOV 20:35 têm projetos que lidam diretamente como a dignidade de moradores de rua e um cursinho popular que oferece oportunidades a jovens que não tiveram o privilégio de cursar escolas particulares de também sonharem e construírem seu futuro. Outras iniciativas da comunidade judaica tem ajudado os segmentos mais vulneráveis da nossa sociedade. A Unibes está em campanha pelo Inverno Solidário; a FISESP sempre organiza a campanha do agasalho; o Ten Yad oferece refeições a pessoas de baixa renda.

Procure uma forma de participar você também. Se sensibilize, quando andar pelas ruas, não vire o olhar quando passar por alguém vivendo na calçada. Muitas vezes, um sorriso e o reconhecimento da dignidade daquela pessoa contam quase tanto quanto um prato de comida quente.

O judaísmo nos ensina a buscar nosso crescimento espiritual e também a plantar e semear. Esses são os dias em que o mundo grita pela nossa participação — e é nosso dever escutar seu chamado e não voltar para a caverna.

Shabat Shalom



[3] Talmud Bavli Shabat 33b -34a
[4] Talmud Bavli Shabat 33b
[5] https://voicesofdemocracy.umd.edu/heschel-religion-and-race-speech-text/
[6] https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2022-01/populacao-de-rua-cresceu-31-em-dois-anos-indica-censo


sexta-feira, 15 de abril de 2022

Dvar Torá: A Tradição que ganha vida hoje (CIP)


A primeira professora que eu tive no meu processo de formação rabínica foi Rachel Adler. De vez em quando, no meio de uma aula ou de outra, ela soltava comentários sobre sua jornada pessoal. Crescida em uma família judia reformista, ela adotou um estilo de vida ortodoxo quando se casou com um rabino ortodoxo aos 21 anos. [1] Neste período, ela se estabeleceu como uma influente líder do movimento feminista ortodoxo. Com o tempo, no entanto, sua militância feminista a levou por caminhos distantes da ortodoxia. Ela se divorciou, se re-aproximou do Judaísmo Reformista da sua juventude, completou um doutorado em Teologia Judaica e se formou rabina  aos 69 anos. Em um artigo comovente que ela escreveu nesta nova fase [2], ela reclama que artigos que ela escreveu quando pertencia à ortodoxia continuam influenciando novas gerações feministas ortodoxas, apesar de que ela mesma não acredita mais naquelas palavras. “Algumas vezes,” ela escreveu, “não podemos nos repetir. Podemos apenas nos transformar.”

Já aconteceu com vocês dizerem ou escreverem algo do qual se arrependem, mas as pessoas continuam te procurando porque concordam com a sua antiga posição?!  Comigo QUASE aconteceu….

Deve fazer uns trinta e cinco anos… estávamos no colegial e, junto com um grupo de amigos, organizamos um sêder de Pessach do Grêmio para os alunos da escola. Eu escrevi um texto de abertura para nossa comemoração que tomava como ponto de partida a ideia de 

בְּכָל דּוֹר וָדוֹר חַיָּב אָדָם לִרְאוֹת אֶת עַצְמוֹ כְּאִלוּ הוּא יָצָא מִמִּצְרַיִם, 
שֶׁנֶּאֱמַר: "וְהִגַּדְתָּ לְבִנְךָ בַּיוֹם הַהוּא לֵאמֹר: בַּעֲבוּר זֶה עָשָׂה יְיָ לִי בְּצֵאתִי מִמִּצְרָיִם"
Em toda geração, toda pessoa é obrigada a ver a si mesma como se ela mesma tivesse saído de Mitsrayim, assim como está escrito: “conte ao teu filho naquele dia, dizendo: ‘é pelo que Deus fez por mim quando eu saí de Mitsrayim.’”

No texto que eu escrevi na minha adolescência, o tom que eu adotava me alinhava com a abordagem lacrimosa para a história judaica, enxergando-a como uma série de perseguições e desastres, que tinham transformado aquele conceito em uma maldição.

A verdade é que, diferentemente do que aconteceu com a Rachel Adler, provavelmente ninguém além de mim se lembra daquele sêder e muito menos do meu texto de abertura… mas minha visão da história judaica mudou desde aquela época.

O que não mudou foi o entendimento de que a parte paradoxalmente mais importante e mais difícil do sêder de Pessach é fazer com quem cada um de nós se sinta realmente sendo libertado hoje à noite. Em geral, cantaremos músicas que já conhecemos, leremos poemas e histórias que já sabemos de cor, desfrutaremos comidas que nos transportam para sedarim de outros tempos, com pessoas muito queridas que já não estão mais, — e tudo isso cria ritual, gera continuidade, leva a memórias afetivas que vão nos acompanhar pra sempre. Tudo muito bom — mas na contramão de nos percebermos, neste ano, neste momento, libertados.

O rabino Arthur Waskow conta que para ele tudo mudou no sêder de 1968, o ano em que Martin Luuther King Jr. foi assassinado uma semana antes de Pessach. Naquele sêder, em Washington, com tropas federais ocupando os bairros negros para evitar distúrbios, as coisas começaram a mudar para ele. Em suas próprias palavras:
Em algum lugar dentro de mim, mais profundo que meu cérebro ou respiração, meu sangue começou a cantar: "Este é o exército do faraó e estou voltando para casa para fazer o sêder” (…) Sim, nas ruas está o exército do faraó e estou voltando para casa para fazer o sêder. De novo, não! Nunca mais uma bolha no tempo. Nunca mais uma recitação ritual antes da vida real, da refeição real, da conversa real.

Pois naquela noite, a própria Hagadá, a Contação da nossa escravidão e da nossa liberdade, tornou-se a verdadeira conversa sobre nossa vida real. Os alimentos rituais, a amargura da erva amarga, o pão pressionado pela opressão de todos, o vinho da alegria na luta, tornaram-se a verdadeira refeição.

Pela primeira vez, paramos no meio do próprio Maguid, para conectar as ruas com o sêder. Todo ano, desde que aprendi a ler, recitava a passagem que diz: "Em toda geração, todo ser humano é obrigado a dizer: 'Nós mesmos, não apenas nossos antepassados, saímos da escravidão para a liberdade’".

Incrível! - não "todo judeu", diz: "Todo ser humano!" [3]
O esforço do rabino Waskow tem sido o esforço de todo o povo judeu ao longo da nossa história de se perguntar como saída de Mitsrayim é a história que estamos vivendo hoje. Para os chassidim, Pêssach era a oportunidade de nos libertarmos das amarras de nossos egos hiper-inflados, o verdadeiro chamêts; sobreviventes da Shoá encontraram relevância no ritual imaginando os capatazes do faraó com insígnias nazistas; os chalutsim, os pioneiros sionistas que voltaram a Israel no começo do século XX para recolonizar a terra, imaginando o chachám, o filho sábio da hagadá, como um jovem do kibutz, pronto para largar os livros e sujar sua mão no solo; para vítimas de violência doméstica hoje em dia, Pessach é a chance de sonhar com dias diferentes; para meus avós, imigrantes da Europa Oriental, Pessach era a oportunidade de falar da sua condição, tendo fugido de uma situação terrível e, mesmo assim, muitas vezes sentido falta dos aromas, dos sabores, do idioma da terra que eles tinham abandonado.

O processo continua. Todos os anos, há novas hagadot sendo publicadas, com textos inovadores e tradicionais, sempre buscando relacionar a liberdade com a nossa situação pessoal. Há algumas semanas, recebi o texto que Bernardo Sorj, sociólogo e um dos mais interessantes intelectuais do judaísmo no Brasil, escreve todo ano para o sêder. Desta vez, ela relaciona a atitude arrogante do faraó com o conflito entre Rússia e Ucrânia e com o momento político que vivemos no Brasil. 

בְּכָל דּוֹר וָדוֹר חַיָּב אָדָם לִרְאוֹת אֶת עַצְמוֹ כְּאִלוּ הוּא יָצָא מִמִּצְרַיִם, 
שֶׁנֶּאֱמַר: "וְהִגַּדְתָּ לְבִנְךָ בַּיוֹם הַהוּא לֵאמֹר: בַּעֲבוּר זֶה עָשָׂה יְיָ לִי בְּצֵאתִי מִמִּצְרָיִם"
Em toda geração, toda pessoa é obrigada a ver a si mesma como se ela mesma tivesse saído de Mitsrayim, assim como está escrito: “conte ao teu filho naquele dia, dizendo: ‘é pelo que Deus fez por mim quando eu saí de Mitsrayim.’”

E você?! O que vai fazer para que o ritual não fique apenas na repetição de velhas fórmulas, e para que sirva de inspiração para a tua libertação pessoal?

Shabat Shalom e Chag haCherut Sameach!


[2] “In Your Blood, Live: Re-visions of a Theology of Purity.” in Lifecycles 2, edited by Debra Orenstein and Jane Litman. Woodstock, VT: Jewish Lights, 1997. ps197-206

quinta-feira, 3 de março de 2022

O que vem depois da saída de Mitsrayim?

Duas conversas que eu tive esta semana apontaram em direções opostas. Em uma delas, a pessoa me disse: “o que é, é; o que não é, não é”, com uma convicção evidente de quem acredita na clara distinção entre as categorias das quais falava. Na outra conversa, a pessoa mencionou a Caixa de Schrödinger, o experimento teórico da Física Quântica na qual um gato é mantido em uma caixa de metal fechada, com um dispositivo atômico e um vidro de veneno. Passada uma hora, sem sabermos se o dispositivo atômico havia sido ativado, o experimento considera que o gato está paradoxal e simultaneamente vivo e morto. A menção a este conceito abstrato foi para exemplificar que, às vezes, as categorias se misturam e as coisas estão em várias delas ao mesmo tempo.

Fiquei pensando nisso ao ler a passagem da Torá deste shabat. Nela, alguns conceitos centrais do comprometimento judaico com a Justiça Social, que já tinham sido mencionados em outras partes da Torá, são relembrados. Um trecho se destaca: “Não haverá necessitados em teu meio – pois Adonai te abençoará na terra que Adonai, teu Deus, te dá como posse hereditária na condição de que você escute a voz de Adonai, teu Deus, mantendo e cumprindo toda esta mitsvá que Eu te ordeno hoje. (...) Se, no entanto, houver uma pessoa necessitada em teu meio, um de teus parentes em qualquer um dos teus assentamentos na terra que Adonai, teu Deus, te dá, não endureça teu coração nem feche a tua mão para o teu necessitado.” [1]

Assim, Deus deixa claro que a garantia do bem estar do povo de Israel depende de que nós mesmos sigamos os valores judaicos de ajuda ao próximo. A tradição judaica já nos dá as ferramentas para garantir uma situação de bem estar social, sem a necessidade de milagres ou de intervenção Divina direta. De alguma forma, o sistema que estabelece estes valores e regras já é a intervenção Divina. E, considerando a forma integrada como a comunidade judaica vive em muitas partes (incluindo o Brasil), nosso comprometimento não deve ser apenas com outros judeus, mas com todos aqueles com quem compartilhamos esta terra, em suas maravilhas e em seus desafios.

Mas por que esta é a passagem escolhida pela tradição para ser lida em Pessach? Haverá, certamente, quem argumente que é pela menção ao sacrifício de Pessach, à contagem do Omer e à comemoração das três Festas de Peregrinação (Pessach, Shavuot e Sucot) no final da passagem [2] e eles estão, provavelmente, certos. Eu gostaria de propor um motivo adicional para que esta seja a leitura neste momento do ano. A saída de Mistrayim e a conquista da liberdade pelos hebreus são a narrativa fundacional mais importante da tradição judaica, cara em particular aos conceitos relacionados ao nosso compromisso com a Justiça Social. Em inúmeras passagens da Torá, a proteção aos vulneráveis é explicitamente vinculada ao conceito de que “vocês foram estrangeiros na terra de Mitrayim.” No seder de Pessach revivemos a dor da opressão e a alegria da redenção – por isso, renovamos nosso compromisso com a criação de um mundo no qual possamos viver todos em liberdade e com dignidade. O texto da Torá desta semana reafirma que este compromisso não pode existir apenas de forma abstrata - ele  tem implicações concretas sobre nossa conduta, determinando ações que devemos ter e outras nas quais não podemos nos engajar.

Da mesma forma que o Shabat nos permite viver um “gostinho do mundo vindouro” e renova nosso compromisso com construir esta realidade já a partir da Havdalá, Pessach deve renovar nosso comprometimento com um mundo mais justo, onde Liberdade não seja privilégio de alguns, mas possa ser a realidade de todos. Esse é o lembrete que a leitura da Torá deste 8º dia de Pessach nos deixa.

Shabat Shalom,


[1] Deut. 15:4-5,7. 

[2] Deut. 16:1-17.

[3] Veja, por exemplo, Ex. 22:20, Lev. 19:34, Deut. 10:19.


 


quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Escravos de ontem e escravos de hoje

Se você buscar na internet pela pessoa que primeiro formulou o conceito de que “um povo que não conhece sua história está fadado a repeti-la”, descobrirá mais de uma versão sobre sua autoria: há quem diga quem tenha sido Sir Edmund Burke (1727-1797)  e quem afirme que a frase é muito mais recente e atribua sua autoria a George Santayana (1863-1952). Quem quer que tenha sido o seu autor, existe alguma tensão entre a frase e a percepção judaica da história.

Dizem que não há ninguém tão obcecado com a sua própria história quanto o povo judeu. Nos definimos através de nossos antepassados, recontamos com freqüência nossas experiências históricas com uma devoção religosa. Até mesmo quando Deus se apresenta ao povo no alto do Monte Sinai, o faz apresentando suas credenciais históricas: “Eu sou Adonai, teu Deus, que te tirou da terra de Mitsrayim, da Casa da Escravidão.” [1] 

No entanto, mesmo com a ênfase no conhecimento da nossa história, a tradição judaica busca, não apenas lembrar, mas reviver seus episódios centrais. Nas festividades judaicas, por exemplo, tentamos, ao máximo possível, reviver eventos históricos: tanto situações alegres como a Saída de Mistrayim, que revivemos no Seder de Pessach e o Recebimento da Torá, que revivemos como Ticún de Shavuot e na leitura das Dez Afirmações na manhã seguinte, quanto episódios que gostaríamos de esquecer, como as tragédias associadas a Tishá b’Av, pela qual observamos práticas de luto mesmo milênios depois dos eventos terem acontecido. Na liturgia diária, recitamos o Mi Chamôcha e nos transplantamos para a vivência e os sentimentos da geração que cruzou o Mar dos Juncos em direção à liberdade.

Em algumas situações, no entanto, parece quase uma maldição que grupos e povos não consigam escapar de situações de opressão e continuem, não por escolha própria, revivendo seus momentos mais trágicos. De alguma forma, a data de Tishá b’Av, à qual fiz referência acima, é um exemplo judaico deste fenômeno, um ponto focal de tragédias históricas que foram sendo acumuladas ao longo dos séculos, incluindo o atentado à AMIA em Buenos Aires, ocorrido em 18 de julho de 1994 (10 de Av de 5754); episódios de antissemitismo do qual gostaríamos de escapar, esforço no qual ainda não tivemos sucesso.

Outros povos vivem situações semelhantes. Olhe, por exemplo, para a comunidade afro-descendente no Brasil. Sequestrados de seus lares em outro continente, foram trazidos para cá à força, escravizados, brutalizados, desumanizados. Após mais de três séculos de regime escravocrata, puseram fim à escravidão legal sem criar as condições para a integração social das pessoas que tinham sido escravizadas. Como afirmou a filósofa Djamila Ribeiro: “a gente tem mais tempo no Brasil de escravidão do que sem escravidão, e isso impacta na construção das desigualdades no país, impacta na população negra e indígena, sobretudo. Não tem como a gente esquecer, mais de 300 anos de opressão num país que tem pouco mais de 500, como que isso, tanto no período da escravidão, mas depois no pós-abolição, que não foram deixadas políticas de reparação para incluir a população negra.” [2]

Na parashá desta semana, temos duas vezes o relato de como Deus orientou Moshé a instruir o povo a pedir aos egípcios objetos de prata e de ouro e predispôs os egípcios a atender o pedido dos israelitas, lhes dando tudo o que eles queriam [3]. A saída dos hebreus carregando objetos valiosos recebidos dos egípcios, que já tinha sido anunciada em outras passagens da Torá [4], tem atraído a atenção de muitos comentaristas. O verbo usado na Torá para “pedir” ao descrever a ação dos hebreus (lish’ol) pode ser entendido também como “tomar emprestado” e não foram raros os comentaristas que indicaram uma ação pouco ética dos hebreus (e de Deus, que os instruiu!), ao pedirem emprestado objetos valiosos sem a intenção de devolvê-los. Philo, um filósofo judeu que viveu em Alexandria, no séc. I E.C., por outro lado, considerava que as riquezas recebidas pelos hebreus tinham sido indenizações pelos anos de trabalho escravo; na mesma linha de raciocínio, Nachmanides (1194-1270) acreditava que os presentes oferecidos pelos egípcios eram um reconhecimento de sua culpa e um pagamento de reparação pelos danos causados aos hebreus. Ainda que a violência contra os hebreus tenha sido engendrada pelo Faraó e que nem todos os egípcios tenham tomado parte nela, Deus permitiu que todos percebessem sua responsabilidade e que ajudassem para a sua resolução.

É difícil não estabelecer paralelos entre a situação da saída dos hebreus de Mitsrayim e aquela na qual se encontraram as pessoas libertadas de sua condição de escravidão no Brasil, sem que a sociedade que as havia oprimido reconhecesse sua culpa ou providenciasse reparações. Quase um século e meio depois, seus descendentes continuam vivendo permanentemente — não por escolha própria — as consequências da violência que sofreram por mais de três séculos, um ciclo de opressão que se renova e retro-alimenta. 

Que assim como fez com os egípcios, que a fagulha Divina que reside em cada um de nós nos predisponha a encararmos a situação de nossos semelhantes com humildade, empatia e reconhecendo os privilégios que herdamos em uma sociedade profundamente injusta e desigual e para que ajamos na direção de diminuir estas injustiças e desigualdades.

Shabat Shalom!


[1] Ex. 20:2

[2] bit.ly/3yQoB05

[3] Ex. 11:2-3, 12:35-36.

[4] Gen. 15:13-14, Ex. 3:21-22.



sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Dvar Torá: Com o que você sonha? (CIP)


Hoje de manhã meu filho começou a assistir uma nova série de ficção sobre a exploração espacial. Logo nas primeiras cenas, o mundo para para assistir a primeira pessoa a chegar na Lua — nesta versão de ficção, um cosmonauta russo. No México, uma mãe insiste para que sua filha fique em frente à TV e acompanhe tudo o que está acontecendo. “Este é o começo do futuro e você pode ser parte disso,” ela lhe diz.

Fiquei pensando nessa cena e nos nossos sonhos, tanto sonhos no sentido de planos como sonhos no sentido daquilo que imaginamos acontecer quando dormimos. 

Uma pesquisa desenvolvida pelo Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e publicada no final do ano passado [1] mostrou que, durante a pandemia, houve uma mudança significativa nos sonhos que as pessoas lhes relataram, com maior incidência de palavras ligadas à raiva e à tristeza. De acordo com os autores, “esses resultados corroboram a hipótese de que os sonhos pandêmicos refletem sofrimento mental, medo do contágio e mudanças importantes no cotidiano, hábitos que impactam diretamente a socialização.” Outras pesquisas analisaram como os sonhos mudaram durante os anos do regime totalitário da Alemanha Nazista [2]. Nestes casos, os sonhos foram profundamente impactados pelos conceitos em que as pessoas estavam vivendo.

Nas histórias bíblicas, por outro lado, os sonhos parecem ter o poder de transformar estes contextos e dar pequenas cambalhotas nas narrativas. A sequência de parashiot na qual estamos, que contam a história de Iossêf, é particularmente cheia de sonhos. Iossêf nos foi apresentado na semana passada como um menino mimado, que tem sonhos que parecem indicar subserviência de seus pais e seus irmãos a ele. Depois, o mordomo e o padeiro do faraó, que compartilham a prisão com Iossêf, têm seu destino revelado em sonhos que apenas nosso herói tem a capacidade de decifrar.  Já na parashá desta semana, Mikêts, é a vez do Faraó ter um sonho e apelar ao jovem hebreu que estava em sua prisão para revelar seu verdadeiro significado.

De acordo com Ieshayahu Leibowitz, o falecido filósofo ortodoxo e iconoclasta, irmão da comentarista da Torá Nechama Leibowitz, apenas no livro de Bereshit, o conceito de sonho é mencionado 48 vezes, o que torna este livro a referência central na questão dos sonhos de todo o Tanach. De acordo com Leibowitz, isso se explica porque este livro não é apenas o primeiro, mas também o mais profundo entre todos os livros sagrados.

Na sequência de histórias na qual nos encontramos, os sonhos servem como canal de comunicação entre o humano e outra dimensão da realidade, uma na qual o Divino se comunica e através da qual são revelados antes de acontecerem o respeito que os outros filhos de Iaacóv dirigirão a Iossêf e a fartura seguida de seca em Mitsrayim. 

Será que o que foi revelado nos sonhos já estava predestinado ou a forma como as pessoas os interpretaram ajudaram a definir suas consequências? Será, por exemplo, que se os irmãos de Iossêf não ficassem tão incomodados com o queridinho do papai, a ponto de considerar matá-lo e terminar vendendo-o como escravo, o sonho das estrelas e do Sol e da Lua não poderia ter tido um outro significado? Será que, também os sonhos do Faraó não poderiam ter sido interpretados de outra forma e levado a consequências muito diferentes?

No Talmud, há uma série de páginas no tratado de Brachot, Bençãos, que tratam da questão dos sonhos. Um ditado repetido algumas vezes nestas páginas é que “כׇּל הַחֲלוֹמוֹת הוֹלְכִין אַחַר הַפֶּה”, col hachalomot holchin achar hapé, “os sonhos seguem a boca”, que é normalmente entendido como dizendo que o significado de um sonho é definido por sua interpretação. A título de exemplo, a passagem do Talmud conta a história de Bar Hadaia, um intérprete de sonhos, que os interpretava de forma favorável para quem lhe pagava e de forma desfavorável para quem não lhe pagava. Abaie e Rava, uma dupla de mestres do Talmud, famosos pelos seus debates, buscaram a ajuda de Bar Hadaia para interpretar sonhos idênticos que eles tinham tido — Abaie pagou e Rava, não. As interpretações de sonhos idênticos foram radicalmente diferentes e todas elas se mostraram corretas, inclusive as mais trágicas, reveladas para Rava, que não havia pago pelos serviços do intérprete de sonhos.

De que forma nossa leitura da vida que nos cerca ajuda a criar a realidade? Será que não apenas os sonhos seguem a boca ou a interpretação que lhes damos mas também a própria realidade?

Uma imagem que apareceu hoje na edição digital da Folha mostra duas pessoas dentro de um ônibus, que está contornando uma serra. Uma das pessoas olha pela sua janela e vê a parede da montanha, um cenário desolador; a outro olha pela janela do outro lado e vê o Sol se pondo e iluminando as planícies, uma imagem linda. A legenda que o autor da charge lhe colocou Escolha o Lado Feliz da Vida!

Será que basta escolher ler a vida de forma positiva para que ela seja realmente feliz? 

A verdade é que esta perspectiva me parece simultaneamente um pouco Poliana e cheia de potencial. 

Que nesta festa das Luzes, consigamos iluminar nossos caminhos e enxergar o potencial e o lindo nas nossas vidas, nas nossas histórias e até nos nossos sonhos. Que nossas realidades possam ser impactadas pela forma como as interpretamos e que consigamos escolher sempre o caminho da luz.

Chag Urim Sameach! Shabat Shalom! 


[3] שבע שנים של שיחות על פרשת השבוע, ישעיהו לוובוביץ p. 152
[4] Talmud Bavli, Brachot 55a-57b
[5] Erik Alvstad , “ONEIROCRITICS AND MIDRASH On Reading Dreams and the Scripture”, p. 124
 

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Dvar Torá: Um conversa entre Unetanê Tokef e Col Nidrei. Iom Kipur 5782 (CIP)


Era uma vez um reino no qual viviam dois príncipes que nunca se encontravam. Eram primos entre si e muito queridos pelos habitantes do reino. Na verdade, havia gente de fora do reino que viajava por horas apenas para poder estar na companhia de um deles… 

E, apesar das suas inúmeras aparições públicas, sempre cheias de gente ao redor, ninguém jamais tinha visto os dois príncipes juntos — e muitos se perguntavam como seria o encontro entre os dois príncipes, tão carismáticos e tão diferentes.

Um deles, aquele que todos consideravam o mais novo, alternava entre uma abordagem doce e paterna com a postura rígida de um membro da família real. Quando brincava de faz-de-conta, gostava de assumir todos os papéis ao mesmo tempo: era o rei, o juiz, a testemunha, o perito, e também a vítima e o algoz. Na mistura destes papeis, encorajava a todos a serem muito cuidadosos em suas condutas e a procurarem reparar qualquer mal que tivessem causado.

O outro príncipe era bastante mais formal. Quando falava, usava palavras estranhas, que as pessoas não costumavam usar no dia-a-dia, quase como se tivessem saído das páginas de um contrato ou de um procedimento jurídico. Quando via outra criança chorando, com medo das consequências de algo que tinha dito, lhe dizia que não fazia mal, que as palavras poderiam ser anuladas e até lhes ensinava um truque para que as palavras fossem anuladas antes mesmo de serem ditas. Algumas crianças saíam destes encontros recompostas, prontas para retomarem a brincadeira sem maior malícia; outras, no entanto, acabavam aproveitando o truque para dizerem o que bem quisessem, sem se importar se magoassem alguém.

Muitas eram as pessoas do reino que se perguntavam como seria um encontro entre os dois príncipes: o que um diria ao outro. Será que se abraçariam ou se tratariam com frieza?

Quem sabe você vive ou conhece uma situação similar à dos dois príncipes?! Nas páginas dos nossos machzorim, parece que algumas rezas também poderiam ganhar bastante do encontro e do diálogo com outras que vivem a poucas páginas de distância. Para quem tem o Machzor Chatimá Tová da CIP nas mãos, eu vou pedir para vocês abri-lo na página 4, que tem o final do Col Nidrei e deixar um dedinho aí e colocar um outro dedo na página 198, no comecinho do Unetanê Tokef. Para quem tem o Machzor Completo, que a Hebraica usa, coloquem o primeiro dedo na página 244 da primeira seção, dedicada a Rosh haShaná e o segundo dedo na página 21 da segunda seção, dedicada a Iom Kipur.

Se essas duas rezas se encontrassem, o que será que diriam uma à outra?

Podiam começar contando suas histórias e seus mitos de origem. Um mito, que eu escutei pela primeira vez na escola judaica onde estudei, diz que o Unetanê Tokef foi escrito no século 11 pelo rabino Amnon de Mainz, que foi obrigado a se converter ao Cristianismo pelo arcebispo da sua cidade. Em uma tentativa de atrasar o processo, o rabino teria pedido 3 dias para pensar, mas imediatamente se arrependeu de ter dado a impressão de que consideraria a proposta, e pediu que sua língua fosse cortada. Ao invés disso, o arcebispo teria ordenado suas pernas e braços amputados. Alguns dias depois, em Rosh haShaná, o rabino teria pedido para ser levado à sinagoga. Lá, agonizando, o rabino teria proclamado as duras palavras do Unetanê Tokef em seus últimos suspiros. Apesar da popularidade desta história, fragmentos descobertos na guenizá do Cairo, o imenso acervo de documentos históricos judaicos encontrados no sótão de uma sinagoga no Egito, indicam que a composição do Unetanê Tokef é bem anterior, sendo conhecida, pelo menos, desde o século 8. 

Frente a uma história de origem tão rica para o Unetanê Tokef, o Col Nidrei também poderia contar a sua origem [1]. Na época dos gueonim, no meio do século 9, o sidur de Amram Gaon menciona que o antecessor do seu antecessor, um século antes, tinha ouvido sobre o Kol Nidrei — uma reza que cancelava votos e promessas e sobre a qual nenhum destes sábios tinha nada simpático a dizer. Apesar das críticas quase universais, o mundo judaico foi se apegando ao Col Nidrei, até que quatro séculos depois, no século 13, já era uma reza estabelecida como prática em Iom Kipur. Foi nesta época que a linguagem, que até então cancelava votos e promessas feitos no ano passado, foi alterada para cancelar votos e promessas que seriam feitas no ano seguinte. Apesar da sua popularidade, com o surgimento do Iluminismo Judaico na Europa Central e o desenvolvimento de leituras críticas da tradição judaica, o Col Nidrei voltou a ser o alvo de ataques no século 19 por colocar em risco a credibilidade judaica em um contexto que tentava garantir a igualdade civil perante a lei. E, mesmo assim, o Col Nidrei ficou — um sobrevivente litúrgico frente a tantas críticas.

Unetanê Tokef, então contaria, um pouco do que diz. Engrossaria a voz, endireitaria a coluna e declamaria:

Em Rosh Hashaná está escrito, e no jejum de Yom Kipur é selado!

Quantos vão passar, e quantos vão nascer; quem vai viver e quem vai morrer; que viverá uma vida longa e quem chegará a um fim prematuro; quem morrerá pelo fogo e quem pela água; quem pela espada e quem por animais; quem pela fome e quem pela sede; que pelo terremoto e quem pela peste; quem será estrangulado e quem será apedrejado; quem estará em paz e quem será perturbado; quem estará sereno e quem estará perturbado; quem estará tranquilo e quem estará atormentado; quem empobrecerá e quem ficará rico; quem cairá, quem se levantará.  

Mas tshuvá, tfilá e tzedaká têm o poder de transformar a dureza do decreto. 

Assim como o shofar, o Unetanê Tokef é um alarme que nos convida a contemplar como alteraríamos nossa conduta no mundo se descobríssemos que este ano é o último, que não vamos receber uma segunda chance.

De algum jeito, passamos este último ano inteiro nos fazendo esta pergunta: “e se não passarmos deste ano?”

  • porque estávamos preocupados com nossa própria saúde e com a das pessoas que nos são mais importantes e queridas no mundo;
  • porque percebemos que haviam sinais de uma iminente crise sanitária global e continuamos vivendo sem tomarmos as precauções ou nos preparamos para lidarmos com suas consequências;
  • porque vendo o impacto desigual que a pandemia teve sobre os segmentos mais oprimidos das nossas sociedades, nos demos conta de que precisamos urgentemente fazer Ticún Olam e transformar a estrutura de um mundo que constantemente produz desigualdade e injustiça extremas;
  • porque ao assistirmos passivamente a Amazônia e o Pantanal queimarem e fenômenos climáticos radicais acontecerem ao redor do globo, nos perguntamos que mundo estamos deixando para nossos filhos e netos;
  • porque vimos democracias serem questionadas em várias partes do planeta, incluindo no nosso cantinho, vislumbramos o retorno a um passado que imaginávamos enterrado.

Não faltaram erros que nos levaram a este 5781 complicado. Erros são importantes, desde que os reconheçamos, enderecemos e busquemos mudar nossas condutas. Este processo, que a tradição chama de tshuvá, o retorno à melhor versão de nós mesmos, não é possível sem o reconhecimento de erros e sem transformações profundas — sejam elas pessoais ou sociais. Somos todos criaturas do hábito e evitamos mudar a todo custo. Unetanê Tokef e o ano de 5781 escancararam na nossa frente que não é mais possível adiar. Expostos a esta realidade, muitos de nós decidimos fazer de 5782 uma experiência radicalmente diferente do ano passado.

Col Nidrei escutava tudo isso pensativo, cabisbaixo. Quando, depois de pensar sobre tudo o que Unetanê Tokef dizia, resolveu se manifestar, ele leu um pedaço do seu texto:

 “todos os votos, proibições, juramentos (…) deste Iom Kipur até o próximo Iom Kipur (…) sejam todos cancelados, de todos nos arrependemos, sejam abandonados, interrompidos, anulados e invalidados, não ocorridos e inexistentes. Que os votos não sejam votos, que os juramentos não sejam válidos.”

Houve um grande silêncio. Se as decisões que tomamos frente ao desafio da nossa própria mortalidade e a do nosso planeta foram canceladas, isso quer dizer que permanecemos livres para continuar nos caminhos que nos trouxeram até esta crise? Será que Col Nidrei também anula nossas resoluções de transformação profunda?

Por um tempo, eu perdi meu próprio caminho nesta conversa entre Unetanê Tokef e Col Nidrei. Um artigo da rabina Ruth Durchslag me ajudou a reencontrá-lo, justamente no silêncio. Ela mostra como Col Nidrei opera sob a premissa de que as palavras das nossas promessas e votos não têm importância e nos traz uma série de outros exemplos de como as palavras são valorizadas na tradição judaica. Afinal de contas, foi através das palavras que Deus criou o mundo! As duas perspectivas têm eco na tradição!

Nas palavras da rabina Durchslag:

Se mesmo as palavras do dia-a-dia são importantes, então nossas palavras de promessa e confissão deveriam ser ainda mais importantes. Como, então, podemos declarar nossas promessas nulas e sem efeito em Iom Kipur? Como pode ser que façamos algo tão essencialmente "não-judaico" em um dos dias mais sagrados do ano?

Talvez a resposta esteja no que acontece quando retiramos nossas palavras. O objetivo de retirar as palavras pode não ser para anular seu impacto, mas para revelar o silêncio que permanece quando elas se vão. Vladimir Horowitz, o grande pianista, certa vez explicou seu gênio musical dizendo: “Eu não toco as notas melhor do que muitos pianistas, mas as pausas entre as notas - ah! É aí que reside a grande arte."

Parece que Deus também entendeu a importância das pausas. Se Deus criou o mundo com palavras, o Shabat deve ter sido o momento para Deus permanecer em silêncio. No Shabat, Deus simplesmente parou de falar para refletir sobre o que o Divino havia dito e, portanto, feito. Deus entendeu o poder de refletir sobre nossas vidas de um lugar de silêncio. Os judeus conhecem o poder criativo das palavras, mas também entendemos que o silêncio é um espaço sagrado. [2]

E assim, no silêncio, os dois primos se encontraram — as palavras canceladas, mas a descoberta verdadeira da mesma forma.

Que do encontro entre a rigidez do Unetanê Tokef e a leniência do Col Nidrei, encontremos compreensão no nosso próprio silêncio. Que as palavras ditas e não ditas nos nossos processos pessoais e coletivos de tshuvá gerem sentimentos, emoções, intuições que nos permitam ir além do simples significado das palavras e nos sustentem no processo. Que aquilo que não foi dito seja capaz de nos encorajar a buscar a transformação com afinco ao mesmo tempo em que somos generosos com nossas próprias limitações. Que mesmo com o toque de um grande shofar, ainda consigamos escutar um pequeno suspiro.

Shaná Tová! Gmar chatimá Tová!


[1] Lawrence A. Hoffman - “Morality, Meaning, and the Ritual Search for the Sacred” in All These Vows: Kol Nidre, p. 3-21.. 
[2] Ruth Durchslag,”Words Mean Everything , Words Mean Nothing — Both Are True”, All These Vows: Kol Nidre, p. 137-141.

terça-feira, 7 de setembro de 2021

Dvar Torá: Que o Shofar nos desperte, nos ajude a sonhar e vislumbrar o caminho para chegarmos lá! Rosh haShaná 5782 (CIP)


Quem tem mais de 30, certamente se lembra de um dos garotos-propaganda mais icônicos da TV brasileira: Carlinhos Moreno interpretava o tímido e desajeitado porta-voz da Bombril, aquela esponja de aço que todo mundo sabe que tem mil e uma utilidades!

Quase com mil e uma utilidade é o que poderia se dizer também do shofar, o símbolo marcante desta época do ano e que o Luis tão lindamente tocou há alguns instantes. Há bons motivos para que seja exatamente do toque do shofar que nos lembramos quando escutamos falar de Rosh haShaná, especialmente o fato de que, na Torá, esta festa que hoje chamamos de Rosh haShaná é chamada de Iom Truá, o “Dia da Truá”, que hoje a maioria de nós associa a um dos tipos de toque do shofar. Mas qual seria o motivo para a centralidade da escuta do shofar para nossa prática religiosa nesta época do ano?

O rabino Saadia Gaón, que foi o primeiro a buscar sistematizar a tradição judaica com os conceitos filosóficos da sua época no 10º século, compilou uma lista de dez motivos para tocarmos o shofar em Rosh haShaná [1] — entre os motivos apontados, está a ideia de que “o som de um shofar é como a voz dos profetas que soou como uma sirene alertando o povo judeu para mudar seus caminhos, retificar seus erros e voltar para Deus.” [2]

Esta ideia do alarme para nos alertar sobre uma questão social ou pessoal sempre me lembra da metáfora do sapo na água quente. Conta diz a lenda, aparentemente questionada pela ciência moderna, que se você tentar colocar um sapo vivo em água fervente, e ele imediatamente pulará para fora da panela sem grandes impactos, mas se você colocá-lo na água fria e aumentar a temperatura lentamente, o sapo irá se acostumando com o calor  e ficará na panela até ser completamente cozido. 

Nas nossas vidas, é bastante comum irmos nos acostumando a lentas mudanças nas condições que, por não serem grandes desvios daquilo com que tínhamos nos acostumado, vão sendo absorvidas sem que tomemos, de fato, qualquer ação — pense em um emprego, que era dinâmico e desafiador e vai mudando aos poucos até que, quando você se dá conta está há anos desenvolvendo atividades monótonas e pouco interessantes; ou em um relacionamento romântico, que começou cheio de paixão, carinho e atenção, mas que perde todas estas características com o passar do tempo e se torna opressivo e insípido. Precisamos soar o alarme!

Além da mensagem dos profetas, também no Talmud o toque do shofar é relacionado  ao espanto com como as coisas são e a necessidade de empatia, especialmente para com os mais excluídos. Após concluírem que truá é um toque do shofar, os sábios começam a discutir como exatamente este toque é definido. A referência na discussão é o choro da mãe de Sísera, um general canaanita morto por Iael, uma hebreia. O choro da mãe é associado ao significado de truá. Havia, entre os sábios do Talmud, quem defendesse que era um choro soluçado, que deu origem ao que chamamos de shevarim hoje em dia, e havia quem defendesse que fosse um choro mais contínuo, assim como o toque que hoje chamamos de truá [4]. Em comum, no entanto, tem o fato de tomarem a  dor da mãe do inimigo como a referência básica. O shofar nos lembra da humanidade fundamental de cada pessoa e nos convida a desenvolver empatia com o sofrimento do outro, mesmo com (ou talvez especialmente com) o sofrimento do outro radicalmente diferente de mim.

Assim como na vivência pessoal, também do ponto de vista social, vamos nos acostumando com situações inaceitáveis contra as quais teríamos nos rebelado se a sua evolução não tivesse sido tão gradual. Vamos pegar, por exemplo, a evolução dos casos de Covid — apesar da queda nas últimas semanas, a média móvel do número de casos se mantém acima de 600 [5]; ou seja, para usar a velha comparação com acidentes aéreos: é como se algo entre 3 e 4 Boeings 737-Max caíssem todos os dias no Brasil. Imaginem o luto coletivo que estaríamos vivendo por aqui com estes acidentes aéreos. Como, no entanto, o número de mortos foi subindo de forma lenta e gradual, fomos nos acostumando com este quadro e, de alguma forma, nos tornamos insensíveis à sua gravidade. Resta lembrar que este quadro não era inevitável e que há países no mundo nos quais os alertas soam e regras de quarentena mais rígidas são adotadas quando o número de pessoas infectadas passa de um determinado patamar, mesmo que ainda não tenha acontecido nenhuma morte. Precisamos soar o alarme! 

A situação dos moradores de rua na cidade de São Paulo é outro exemplo no qual vamos nos acostumando com a negação sistemática e persistente da humanidade dos nossos co-cidadãos sem que nos mobilizemos para radicalmente transformar um sistema que joga às ruas milhares de famílias. Basta ver a cara de horror de um turista visitando São Paulo para nos darmos conta de como perdemos parte da nossa própria humanidade em nossa conivência com esta situação. Precisamos soar o alarme!

Além de soar este alarme para as situações com as quais nos acostumamos, apesar de que não deveríamos, o shofar também nos ajuda a vislumbrar dias melhores e a contemplar uma realidade profundamente distinta. Do ponto de vista tradicional, isso implica nos levar de volta ao momento da revelação no Monte Sinai [7], no qual o povo ouviu o som do shofar cada vez mais alto. Naquele momento, no Monte Sinai, o povo judeu se estabelecia ao redor de um ideal de sociedade e de pacto com o Divino. Era o momento de sonhar com o que significava construir um mundo mais justo e quais eram as ferramentas necessárias para este projeto; era também o momento de cada pessoa presente àquele momento de Revelação se perguntar de que forma continuaria se relacionando com o Divino e que papel este relacionamento teria na sua vida. De volta a 5782, o shofar nos provoca a refletirmos sobre quem gostaríamos de ser, pessoal e coletivamente, e a agirmos para podermos chegar lá.

Uma das metáforas de Rosh haShaná é Iom Harat Olám, o dia do Nascimento do Mundo, e o toque do shofar nos leva a vislumbrar qual é este mundo ao qual gostaríamos de ver nascer. Em que tipos de relacionamentos interpessoais você gostaria de se envolver? Quais projetos profissionais você gostaria de desenvolver daqui para frente? Que papel você gostaria de ter na transformação e aprimoramento do mundo? Que comunidade, que cidade, que país nós gostaríamos de estar construindo juntos daqui pra frente?

Retomando: uma função do shofar é nos despertar para a situação do mundo hoje; outra função é nos ajudar a vislumbrar para onde gostaríamos que o mundo fosse. A terceira função do shofar, na qual eu gostaria de focar agora, é como chegamos lá…

Na história da conquista de Jericó, Iehoshua lidera o povo hebreu em um cerco à cidade tocando shofar e gritando aos céus, levando ao colapso das muralhas que protegiam a cidade [8]. Parafraseando um professor querido, o rabino Ebn Leader, o shofar também poder ter a função de trincar a casca dura que se forma ao redor dos nossos corações e que nos impede de desenvolvermos empatia ou de estarmos abertos aos desafios da transformação. A casca é um mecanismo de defesa que permite que nos mantenhamos sãos em um mundo de תֹּהוּ וָבֹהוּ, do mais absoluto caos. Trincar esta casca para permitir que a quebremos envolve aceitarmos o risco de saírmos de coração quebrado, mas mantê-la lá significa abrirmos mão de melhorarmos, de crescermos, de transformamos a nós mesmos e ao mundo ao qual pertencemos.

Algumas fontes associam o toque do shofar ao choro de uma mãe dando a luz — neste caso, Deus dando a luz ao mundo. É um choro de dor e de esperança que nos transformemos através da teshuvá e que aceitemos a parceria com Deus para consertar o mundo. 

Quando, na sequência do serviço, escutarmos novamente o toque do shofar, permita que ele te desperte para a realidade que nos cerca, que ele te ajude a conceber uma nova situação mais justa, mais inclusiva e mais significativa para você e que ele te ajude a se abrir para a possibilidade de buscar esses novos caminhos.

Shaná Tová! Que sejamos todos parceiros nestes processos!

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Relações que transformam e nos preparam para o período

Desde domingo passado, entramos em um período bastante especial do calendário judaico: de acordo com o rabino Alan Lew, durante as dez semanas que vão de Tishá b’Av ao final de Sucot, vamos do luto profundo pela destruição da Casa central da tradição judaica (os Templos de Jerusalém) à alegria pelo desmonte de outras casas, as cabanas temporárias que montamos em Sucot. Ao longo deste período (que representa um quinto do ano!) transitamos da destruição ao renascimento à alegria, nos desconstruímos, nos questionamos, nos auto-avaliamos e nos reconstruímos em bases que, esperamos, sejam mais sólidas e nos permitam estarmos mais próximos de quem queremos, de fato, ser.

T’shuvá, o processo de auto-avaliação, arrependimento e correção de rumos é uma parte central da experiência destas dez semanas. A rabina Sharon Brous fala de uma dialética judaica que, de um lado, destaca a justiça e o rigor em analisar nossas próprias falhas e, de outro, mostra um otimismo infinito ao acreditar na nossa capacidade de sempre retornarmos à melhor versão de nós mesmos. Neste shabat, que a tradição chama de Shabat Nachamú, começamos a reencontrar a capacidade de permitir que  o passado informe nossa conduta, mas não a defina, de reconhecermos nossos erros sem permitir que eles determinem nosso futuro, de buscar a redenção apesar do (ou por causa do) caminho que nos trouxe até aqui. A haftará (a leitura dos profetas) desta semana [1] trata da possibilidade deste processo de reconstrução e começa com estas palavras:

“Consolem completamente (Nachamú nachamú) o meu povo, diz o teu Deus. Fale ternamente a Jerusalém, e declare-lhe que acabou o seu tempo de serviço, que a sua iniqüidade foi expiada.”

Do outro lado do processo de t’shuvá está nossa capacidade de aceitar pedidos de desculpas e, de fato, perdoar. Quantas vezes andamos pelas nossas vidas arrastando correntes de mágoas passadas, incapazes de nos libertarmos delas, amarrados ao passado? T’shuvá e perdão são processos complexos, difíceis de serem conduzidos, especialmente quando nos sentimos sozinhos e fragilizados. Quem se sente abandonado tende a ter mais dificuldade em reconhecer seus erros ou em perdoar outra pessoa; como se agarrar-se à certeza da sua própria retidão compensasse pela dor de se ver isolado.

Neste shabat, que além de ser Shabat Nachamú também é Tu b’Av, a data judaica que celebra o amor, temos a oportunidade de nos fortalecer e nos preparar, através do amor, para os processos de introspecção e avaliação que marcam os próximos meses. Estes processos são também boas oportunidades para avaliarmos a forma como amamos e como somos amados. Será que nos entregamos verdadeiramente, com todas as nossas energias [2]  nas relações amorosas que desenvolvemos, sejam elas com nossos pais, irmãos, amigos ou parceiros românticos ou até com nós mesmos? O que será que significa amar desta forma? É algo que gostaríamos de tentar? E, se não for assim, que outras possibilidades de amor se colocam à nossa frente?

Em outro exemplo paradigmático do amor, na parashá desta semana, Moshé relembra da entrega do Decálogo, as Dez Afirmações que Deus proferiu no Monte Sinai. Muitos comentários rabínicos entendem este momento como um casamento místico entre Deus e o povo judeu, que pode nos ensinar sobre as formas de amar. As primeiras Tábuas, símbolos desta união mística (como se fossem alianças) não tardaram a ser quebradas, depois do episódio do bezerro de Ouro. De acordo com o rabino Art Green, este resultado do processo era esperado, uma vez que as Tábuas, esculpidas por Deus e com a Sua escrita, não continham nenhum elemento humano. Era uma união em que havia espaço para apenas uma voz; um relacionamento em que o povo de Israel não teve sua singularidade reconhecida. De acordo com uma tradição, Iom Kipur marca o dia em que Moshé desce pela segunda vez do Monte Sinai, carregando o segundo jogo de Tábuas, que tinham sido esculpidas por ele e nas quais Deus tinha adicionado Sua escrita. Estas Tábuas, resultado da parceria entre o humano e o Divino, perduraram como símbolo de uma união na qual ambas as partes se sentiam enxergadas, escutadas e validadas. E você, sente que teus relacionamentos amorosos respeitam a pessoa que você é?

A mutualidade nos  relacionamentos permite que nos sintamos seguros a ponto de reconhecer nossas vulnerabilidades e nos engajarmos em processos verdadeiros de t’shuvá e de perdão. Que neste shabat possamos nos fortalecer através do amar e do ser amado, com respeito e reconhecimento, escuta e validação, para que possamos nos abrir para a possibilidade de sermos transformados nas relações e pelo processo que elas possibilitam.

Shabat Shalom


[1] Isa. 40:1-26

[2] Deut. 6:5



sexta-feira, 30 de abril de 2021

Dvar Torá: A volta pra caverna e a busca por um judaísmo contemporâneo (CIP)


Sabe aquela história do “faço o que eu digo mas não faça o que eu faço”?! Quem nunca?! Quem nunca cometeu uma pequena hipocrisia dessas, de dar um conselho de acordo com o que acredita que seja a atitude correta mas se permitiu desviar deste caminho na sua conduta pessoal? Eu sei que eu faço isso com alguma frequência, mas desde que não venha de um lugar de julgamento e maldade, também não acho que seja a pior coisa do mundo…

Um destes meus pecados, de dizer uma coisa e fazer outra, é o jurar não gostar das mídias sociais e viver encontrando assuntos para as prédicas de postagens de facebook. Desta vez, foi em um grupo de educadores judaicos, em que um rabino ortodoxo postou o seguinte comentário na semana passada: 

Amigos - revirei os olhos enquanto ouvi um aluno [meu] descrever Ticún Olam como uma mitzvá. Revirei os olhos porque estou muito ciente e muito preocupado de que a educação judaica tenha sido, essencialmente, enrolada na vaga plataforma liberal americana sob a bandeira mitzvah de "Ticún olam". Preocupado porque, sério… É isso? Será que nossa tradição de 4.000 anos pode realmente ser tão vigorosamente resumida pelas nossas ações em defesa do meio ambiente, na resposta a George Floyd? Isso é tudo?
Então desvirei meus olhos e vi claramente que, para nossa juventude, a crise climática, o racismo (…) e as questões de justiça são 1000% mais reais e mais urgentes do que questões sobre se uma mulher deve contar no minián ou nas nuances da akedá, o episódio da Torá que descreve o quase-sacrifício de Itscahk . E é claro que as pessoas vão se importar com o que é real para elas. E todo esse aperto de pérolas sobre como todas as 613 [mitsvot] foram substituídos por Ticún Olam são, na verdade, apenas os gemidos de um representante de um sistema e abordagem que estão ameaçados de irrelevância ou extinção. "Seu velho mundo está envelhecendo rapidamente. Portanto, saia do novo se não puder dar uma mão."

E eu quero saber: as coisas antigas são realmente relevantes? Por quê? Exatamente por quê? Como? E como as escolas podem tirar a poeira de seu antigo judaísmo e realmente focalizá-lo nas coisas que realmente importam para os alunos reais? Ou pelo menos torná-lo relevante?

Como um pequeno exemplo disso, existe uma maneira de ensinar a tefilá, a reza, não como um momento incômodo e irritante [em que alguém tenha que se certificar os meninos estão de kipá] e que ninguém está usando o celular [escondido], mas na verdade como uma força poderosa para mudar o mundo que [vemos] caindo aos pedaços? Pelo menos mudando a nós mesmos? E se não, podemos parar de fazer nossos alunos rezarem para, [no lugar,] talvez ir recolher algum lixo? Ou a reza é importante no processo de ajudar as crianças a ver seu mundo e ver seu papel nele, ou ela é um dinossauro do velho mundo, reforçando continuamente a narrativa de que o judaísmo é irrelevante e que não [podemos] nos preocupar com o clima e a justiça porque temos assuntos mais importantes? Como o mundo vindouro?

Nossa, gente. Socorro!!!!
Este não é um novo desafio. O rabino Abraham Joshua Heschel escreveu algo semelhante há mais de 60 anos e que, desde que eu li pela primeira vez, tem me inspirado na busca por um judaísmo de significado:
“Quando a fé é completamente substituída pelo credo
a adoração pela doutrina, 
o amor pelo hábito; 
quando a crise de hoje é ignorada por causa do esplendor do passado; 
quando a fé se torna uma herança em vez de uma fonte viva; 
quando a religião fala apenas em nome da autoridade e não em nome da compaixão 
então, sua mensagem se torna sem sentido. ” [1]
Podemos voltar ainda mais no tempo e perceber que a busca por um judaísmo de significado nas nossas vidas, que possa de fato ser uma tradição viva, que dialogue com os dilemas que vivemos em 2021 e não negue o encontro com o desconforto da nossa realidade na busca de uma espiritualidade pura, aparece também em uma das histórias mais famosas de LaG baOmer.

Em LaG baOmer, acredita-se faleceu o rabino Shimon bar Yochai, uma figura especialmente iluminada que, de acordo com um mito, foi o redator do Zohar, uma das obras centrais da Kabalá, uma expressão mística judaica.

Diz a lenda no Talmud [2] que Shimon bar Yochai foi condenado à morte pelas autoridades romanas por tê-las criticado. Ele e seu filho, Elazar, após buscarem refúgio no Beit Midrash por algum tempo, foram se esconder em uma caverna. Por milagre, uma árvore de alfarroba nasceu sobre a caverna e lhes dava comida; e uma fonte de água apareceu e lhes dava água. Todo dia, eles tiravam sua roupa e se enterravam até o pescoço na areia e, assim, eles passavam todo o dia estudando. Quando chegava a hora, eles saíam da areia, se vestiam, e rezavam para, logo em seguida, voltar a se enterrar, nús, na areia. Assim, eles garantiam que suas roupas não se gastassem… Assim eles viveram por 12 anos. O profeta Eliahu se colocou na entrada da caverna e disse “que informará Shimon bar Iochai que o imperador morreu e seu decreto foi revogado?!”. Shimon e Elazar saíram da caverna e viram pessoas semeando e arando a terra. Shimon bar Iochai disse: “como estas pessoas podem abandonar uma vida de eterno estudo da Torá e desperdiçá-la com questões terrenas?!” Todo lugar para o qual Shimon bar Iochai direcionava sua vista queimava imediatamente. Uma voz Divina apareceu e lhe disse: “Você saiu da caverna para destruir o Meu mundo?! Volte para a caverna!”

Como disse Heschel, quando o Judaísmo fecha seus olhos para as dores do presente para se dedicar exclusivamente a guardar as jóias do passado, perdemos nossa função no mundo. Quando o desempenhar funções religiosas fala mais alto que a necessidade de preservação da vida, perdemos nossa mensagem e o sentido destas funções. Quando, em troca de manter vivo o judaísmo, estamos dispostos a abrir mão da nossa humanidade, não reconheço mais esse judaísmo.

A observância judaica e o comprometimento com o mundo não precisam ser mutuamente excludentes. A textura que o calendário judaico dá à nossa experiência do tempo, a forma como as práticas religiosas judaicas permitem que abramos nossos olhos para questões que nem sabíamos que existiam, a abordagem crítica que o estudo de textos judaicos desenvolve em cada de nós, a força que a comunidade judaica tem quando se une em torno de um objetivo comum — todos estes fatores devem nos levar a estarmos mais conectados com o mundo que nos cerca.

Deus mandou Shimon bar Iochai de volta para a caverna estudar um pouco mais porque, seu desdém pelo cuidado com o mundo e com a humanidade revelados nas ações do agricultor demonstravam que, apesar dos 12 anos que ele tinha passado estudando na caverna, ele não tinha aprendido os pilares centrais do judaísmo.

Que cada um de nós consiga encontrar seu próprio equilíbrio — valorizando a tradição judaica e lhe dando um papel de destaque nas suas práticas cotidianas e que, através delas, estejamos cada vez mais comprometidos com a construção de um mundo mais justo, mais igual, mais saudável para todos.

Shabat Shalom

[1] Abraham Joshua Heschel, God in Search of Man, p. 3.
[2] Talmud Bavli Shabat 33b


quinta-feira, 1 de abril de 2021

Traga o Divino que você gostaria de ver no mundo!

De acordo com a tradição, foi no sétimo dia de Pessach, 21 de nissan, que o povo hebreu cruzou o Mar de Juncos e abandonou a terra das águas estreitas (Mitsrayim) para encontrar a liberdade na imensidão do deserto. Neste ano, 21 de nissan cai no shabat, quando o trecho da Torá tradicionalmente incluirá Shirat haYam, o poema que os hebreus cantaram ao cruzar o mar [1].

Não é difícil imaginar a angústia pela qual passavam aqueles hebreus antes da abertura do mar: de um lado, as tropas egípcias chegando; de outro, o mar à sua frente. Se ficassem, seriam mortos pelos soldados que os perseguiam; se seguissem, morreriam afogados. Finalmente, Moshé levantou seu cajado e o segurou sobre as águas do mar e Deus fez com que ele se abrisse, permitindo que o povo hebreu fizesse a travessia em segurança.

Ao analisar esta passagem, um antigo midrash diz que no Mar de Juncos, Deus apareceu ao povo como uma pessoa jovem e no Monte Sinai Deus lhes apareceu como uma pessoa idosa.[2] O mestre chassídico Levi Itschac de Berditchev, explica que esta ideia de que Deus era jovem quando abriu o mar se refere ao fato de que Deus subverteu as leis da natureza para abrir o mar, da mesma forma que jovens não prestam especial atenção às regras. A abertura do Mar, no entanto, foi uma exceção -- Deus costuma agir dentro das regras naturais, como o próprio Levi Itschac comenta a respeito das comemorações de Chanucá e Purim.[3]

Muitas vezes, ainda esperamos do Divino o nível de intervenção direta que vimos na narrativa de Pessach, comandando os eventos da história, prestando atenção aos clamores do povo, estabelecendo a justiça onde ela estava em falta. Nossa experiência histórica, no entanto, aponta em outra direção, na qual Deus espera que a humanidade aja, escutando os clamores dos vulneráveis, corrigindo suas injustiças (especialmente as sistêmicas), cuidando da Terra e de todos que nela vivem. O Deus jovem da abertura do mar deu lugar à “voz mansa e delicada” [4] e dependemos da fagulha divina em cada um para observarmos a ação Divina no mundo.

Não foram raros os momentos do nosso passado recente em que esperamos, passivos, a intervenção divina, mas parece que não vivemos na época do Deus jovem que subvertia as leis da natureza e hoje é nossa ação que se faz necessária. Em seu discurso na Marcha em Washington em 1963, imediatamente antes de Martin Luther King proferir seu famoso discurso “Eu tenho um sonho”, o rabino Joachim Prinz disse que, baseado em sua experiência vivendo na Alemanha Nazista, “o mais urgente, o mais vergonhoso, o mais vergonhoso e o mais trágico problema é o silêncio.”

Deus se manifesta de forma distinta em cada momento -- que este Shvií shel Pessach (o sétimo dia de Pessach) no qual voltamos a cruzar o mar dos juncos, nos inspire novamente e nos encorage a agir para um mundo em que todos possam chegar à sua amplidão e liberdade.

Shabat Shalom


[1] Ex. 15:1-18

[2]  Pessicta Rabati 21:5

[3] https://www.huffpost.com/entry/divine-light-human-hands-_b_793011

[4] 1 Reis 19:12