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sexta-feira, 24 de março de 2023

Dvar Torá: Justiça e democracia em Israel (CIP)


Na semana passada, eu estava dando uma aula sobre as novas tradições de Pessach, que é uma dos feriados judaicos mais antigos, dos que ainda são muito celebrados entre as famílias e nos quais, nas últimas décadas, nós encontramos mais inovação. Eu coleciono hagadot com propostas inovadoras e eu trouxe algumas pra mostrar para os alunos: uma hagadá surpreendentemente interessante e profunda que usa como pano de fundo Harry Potter e sua turma, uma hagadá como uma teologia linda escrita pelo poetisa Marcia Falk, algumas hagadot de sedarim de mulheres, uma hagadá que busca o diálogo inter-geracional, uma escrita por e para mulheres vítimas de violência doméstica, uma que conversa com os temas do movimento sindical, com questões dos refugiados contemporâneos. Uma hagadá linda e difícil, escrita por sobreviventes da Shoá para seu primeiro seder de Pessach depois de libertados dos campos de extermínio, ainda em um campo para refugiados em Munique. Lemos juntos um texto escrito por Arthur Waskow, um rabino vinculado ao movimento Renewal que escreveu sobre sua experiência comemorando Pessach apenas alguns dias depois do assassinato de Martin Luther King, enquanto o caos imperava nas ruas de Washington, onde ele vivia — toque de recolher, tanques nas ruas e centenas de manifestantes negros presos. No ônibus, Waskow ia planejando os detalhes do sêder, o momento do calendário judaico em que mais nos identificamos com os oprimidos. De repente, ele começou a cantarolar no ônibus: “Este é o exército do faraó e estou voltando para casa para fazer o sêder”. Naquele momento, ele tomou uma decisão importante na sua vida: “De novo, não! Nunca mais uma bolha no tempo. Nunca mais, nunca mais, uma recitação ritual antes da vida real, da refeição real, da conversa real.” [1]

Esse é o dilema da vida religiosa — quando permitir que a recitação ritual tome o lugar da vida real, da conversa real e quando não. Muitas vezes, quando eu conduzo o serviço de Shacharit, eu digo que há toda uma sessão introdutória, chamada Psukei deZimrá, dedicada a permitir que esqueçamos dos problemas que nos acompanharam até aquele momento, de tal forma que possamos verdadeiramente nos dedicarmos à nossa vida interior. Uma vida espiritual equilibrada é uma necessidade de quem quer poder transformar objetivamente nossa realidade social: precisamos de força interna para lidarmos com as questões de todo dia e se não dedicarmos tempo a construí-la, também não temos como agir no mundo. E, ao mesmo tempo, temos que reconhecer que há situações frente às quais focar exclusivamente na nossa realidade interior pode configurar uma heresia.

Algumas semanas atrás, em Shabat Shirá, quando lemos sobre a saída dos hebreus de Mitsrayim, o texto nos contava que quando o povo reclamava com Moshé por uma intervenção Divina, quando os soldados do Faraó os perseguiam de um lado e o Mar, ainda fechado, estava do outro, a resposta de Deus foi 

 מַה־תִּצְעַק אֵלָי?! דַּבֵּר אֶל־בְּנֵי־יִשְׂרָאֵל וְיִסָּעוּ!! 

Por que você grita comigo?! 

Fale com os israelitas e que eles sigam em frente!! [2]

Há momentos em que, mais que reza, precisamos de ação ou pelo menos de solidariedade com quem age.

A sociedade israelense está em ebulição, como estava Washington naquele abril de 1968 seguindo o assassinato de Martin Luther King Jr. Há semanas que centenas de milhares de manifestantes têm saído às ruas de todo o país em protestos contra uma mudança tão radical no seus sistema judicial que os analistas dizem que comprometeria o caráter democrático do Estado de Israel. Uma explicação bastante superficial é que há dois pontos principais no projeto que tem avançado em velocidade recorde na Knesset: um ponto garante que a coalisão do governo indique a maioria dos membros da Suprema Corte. Outro ponto estabelece que a Knesset passe a poder derrubar decisões da Suprema Corte pela maioria simples de seus membros. Lembrem-se que uma das funções de cortes constitucionais, como é a Suprema Corte de Israel, é defender os direitos das minorias contra leis que infrinjam suas garantias legais. Da forma como a reforma judicial está proposta, direitos estabelecidos poderiam ser revogados com a anuência da coalisão da vez.

No mundo todo, comunidades judaicas têm se mobilizado, buscando reverter a proposta encaminhada ou desacelerar seu processo de aprovação, possibilitando que, através do diálogo entre os grupos políticos, uma proposta de consenso social possa ser formulada. Rabinos de todos os movimentos tem se manifestado pedindo ao governo de Israel que reconsidere sua proposta. A JFNA, a entidade guarda-chuva das Federações Judaicas nos Estados Unidos, emitiu uma carta aberta endereçada tanto ao primeiro ministro Biniamin Netaniahu quanto ao líder da Oposição, Yair Lapid, apontando para o impacto que uma mudança deste tipo teria na relação entre Israel e a comunidade judaica norte-americana [3]. Eles pediam, sem sucesso, que fosse adotada, no lugar do projeto encaminhado pelo governo, a proposta de  Itschak Herzog, o presidente de Israel [4].

Segmentos da comunidade judaica brasileira também têm se mobilizado em solidariedade aos manifestantes que pedem a proteção ao caráter democrática de Israel. Em uma carta endereçada ao governo israelense e assinada inicialmente por um grupo de entidades judaicas, incluindo a CIP [5], reafirmamos nosso Sionismo e compromisso com Israel como um Estado Judaico e Democrático e, reconhecemos o impacto que acontecimentos em Israel projetam sobre nós. Ao final do documento, “manifestamos nosso apoio e solidariedade aos israelenses que lutam pela manutenção da democracia, e conclamamos a população judaica brasileira para que faça o mesmo, repudiando qualquer ameaça ao Estado Democrático de Direito no país.”

Nesta semana começamos Vaicrá, o terceiro livro da Torá. Nesta primeira parashá, o texto trata de diversos tipos de sacrifícios, incluindo a “chatat” e o “asham”, ofertas para casos em que as pessoas deixavam de cumprir as instruções da Torá por negligência, descuido ou má fé [6]. Uma parte importante dessas regras dizia respeito à preservação da integridade do sistema judicial, garantindo que não houvessem testemunhos falsos nem omissão em testemunhos que poderiam inocentar um suspeito. 

A decisão sobre sua estrutura judicial pertence apenas aos israelenses, mas suas implicações claramente nos afetam também. Se informe sobre o processo em curso, procure formar a sua própria opinião e, se achar apropriado, se manifeste e ajude a defender a Democracia israelense!

Shabat Shalom!


 

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Abandonando os lugares que nos aprisionam

Ein mucdám u-meuchár ba-Torá” é um princípio rabínico de acordo com o qual as passagens relatadas na Torá não estão, necessariamente, em ordem cronológica. Algo que apareça mais cedo no texto pode ter acontecido depois de algo que será relatado mais tarde. Na esperança de que este princípio valha para a forma como tratamos do calendário judaico, vou me permitir tratar de Pessach, festa para a qual ainda faltam mais de cinco meses!

Durante o seder e a contação da história na hagadá, em geral damos pouco destaque à discussão entre Rav e Shmuel, dois sábios da primeira geração de Amoraim da Babilônia, tendo vivido no terceiro século da Era Comum. Rav e Shmuel travavam debates frequentes que foram registrados nas páginas do Talmud. Com relação ao seder de Pessach, ambos aceitavam o princípio estabelecido na Mishná (que havia sido compilada na geração anterior, a última dos Tanaim), de que “Os pais devem ensinar de acordo com a inteligência e a personalidade de cada criança. Comece descrevendo degradação e culmine com a libertação” [1] Ees debatiam, no entanto, qual era o significado da degradação e da libertação sobre a qual deveriam ensinar as crianças. 

Shmuel disse: comece com “fomos escravos na terra do Egito” e continue contando, da escravidão física à libertação política. Rav disse: comece com Terach, o pai de Avraham, e o estado de idolatria em que nossos antepassados se encontravam. “Um dia nossos antepassados eram escravos da idolatria e idolatravam deuses pagãos. Agora, depois do Har Sinai, Deus nos trouxe mais próximos do serviço Divino.”

A parashá desta semana, Lech Lechá, nos traz o início do processo de redenção espiritual sobre o qual Rav entendia que o Seder de Pessach deveria tratar. Nela, Deus diz a Avram: “Abandone a sua terra, do lugar em que você nasceu e a casa do teu pai e vá para a terra que te mostrarei”. O movimento de Avraham, ao deixar a casa dos seus pais e buscar seu caminho em direção à terra de Cnaán não foi apenas uma migração geográfica: foi um processo de renascimento espiritual.

Somos, na imensa maioria, descendentes de imigrantes, de pessoas que deixaram suas terras de origem e se instalaram no Brasil, um processo muitas vezes doloroso de desenraizamento de um lugar conhecido e busca de novas referências em uma nova terra. Somos, por característica cultural, um povo que segue o exemplo de Avraham, sempre em busca de novas referências de visão de mundo; um processo que pode ser igualmente difícil e doloroso, de rejeitar as antigas certezas mas de ainda não estar seguro de quais serão as novas crenças.

A jornada de Avraham, que tem início na parashá desta semana, pode nos servir de referência nessa travessia. O caminho não é, nem nunca foi, linear. Avraham avança e recua, demonstra bondade e caráter (como quando resgata seu sobrinho Lot, que havia sido sequestrado) ao mesmo tempo em que também comete seus erros (como quando, no Egito, tenta passar Sará como se fosse sua irmã). Nossos caminhos tampouco são lineares, aprendemos ao longo da jornada, nos fortalecemos e nos preparamos para os novos desafios.

Que neste shabat consigamos abandonar os lugares e as crenças que nos aprisionam e busquemos nossa redenção no caminho, no esforço de caminhar e aprender.

Shabat Shalom!


[1] Mishná Pessachim 10:4

[2] Bereshit Rabá 39:11



quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Distantes no calendário, próximas nos valores

Muitas vezes, representamos o calendário judaico como um círculo, ao redor do qual escrevemos os meses, os feriados, as estações do ano e as espécies agrícolas cuja colheita na terra de Israel acontecem em cada época. Mais apropriado, me parece, seria representar o ano judaico como uma elipse, na qual existem dois pontos focais: os feriados da primavera, notadamente Pessach e Shavuot, e os feriados do outono, Rosh haShaná, Iom Kipur,  Sucot e Simchat Torá. Muitas são as semelhanças (e também as diferenças) entre as comemorações, apesar das diferentes narrativas e  de estarem diametralmente opostas quando vistas no ciclo anual.

Pessach é conhecida por comemorar a nossa libertação da servidão mas, nas páginas do Talmud, há uma disputa rabínica sobre qual é a servidão da qual fomos libertados. Shmuel acreditava que se tratava da escravidão física aos egípcios e que comemorar Pessach significava celebrar um processo de libertação política. Rav, por outro lado, acreditava que se tratava da escravidão espiritual à idolatria e ao paganismo. Para ele, comemorar Pessach implicava falar de um processo de libertação espiritual.

Rav provavelmente se sentiria validado pelos primeiros feriados de Tishrei, Rosh haShaná e Iom Kipur, que focam no nosso processo de crescimento espiritual, na introspecção e na avaliação das nossas condutas. Shmuel, por outro lado, gostaria de Sucot, na qual mudamos nossa orientação para o que é mais concreto, para a fragilidade dos lugares em que vivemos, em particular os segmentos mais vulneráveis das nossas sociedades.

Em determinado momento do seder de Pessach, abrimos as portas e cantamos Eliahu haNavi, lembrando-nos do profeta que, de acordo com a tradição, anunciará a chegada da Redenção. Sempre pensei que fazíamos este gesto com a esperança de que seria neste ano que chegaríamos à Era Messiânica. Há alguns anos, escutei do rabino Neil Gilman z”l outra interpretação para o gesto: de acordo com ele, depois de passarmos tantas horas cantando sobre a liberdade, poderíamos sair do seder com a ilusão de que o mundo já havia sido libertado. Assim, abrimos a porta para nos dar conta de que há muito trabalho ainda a ser feito para chegarmos a um mundo em que todos possam celebrar sua redenção pessoal e libertação nacional. Da mesma forma, há uma tradição de fincar a primeira estaca da sucá ao sairmos da sinagoga ao final de Iom Kipur. Depois de tantas horas focadas no nosso crescimento espiritual, buscamos equilíbrio trabalhando no mundo, martelo e estacas na mão.

O estudo e a prática da tradição judaica também fazem parte das mensagens destes dois pontos focais do calendário. No foco da primavera, comemoramos em Shavuot a entrega da Torá no Monte Sinai e celebramos passando a noite inteira em estudo; no foco do outono, celebramos a conclusão e o reinício do ciclo de leitura da Torá. Como uma criança que acaba de escutar uma história e, por ter gostado profundamente, pede para que a contem de novo, o povo judeu mal termina um ciclo de leitura da Torá e começa um novo, com muita dança e alegria.

Dois pontos focais na elipse do nosso calendário com mensagens muito semelhantes: a vida judaica deve buscar um equilíbrio entre o crescimento espiritual e o trabalho no mundo e a Torá, com suas setenta faces e inúmeras interpretações, é a ferramenta fundamental para atingir-se este equilíbrio.

Neste domingo à noite (dia 09/10), começamos as comemorações de Sucot e na próxima segunda-feira à noite (dia 17/10), começaremos a comemorar Simchat Torá. Cheque a programação e aproveite a chance de trazer mais significado e textura ao teu ano!

Shaná Tová e Chag Sameach!


sexta-feira, 15 de abril de 2022

Dvar Torá: A Tradição que ganha vida hoje (CIP)


A primeira professora que eu tive no meu processo de formação rabínica foi Rachel Adler. De vez em quando, no meio de uma aula ou de outra, ela soltava comentários sobre sua jornada pessoal. Crescida em uma família judia reformista, ela adotou um estilo de vida ortodoxo quando se casou com um rabino ortodoxo aos 21 anos. [1] Neste período, ela se estabeleceu como uma influente líder do movimento feminista ortodoxo. Com o tempo, no entanto, sua militância feminista a levou por caminhos distantes da ortodoxia. Ela se divorciou, se re-aproximou do Judaísmo Reformista da sua juventude, completou um doutorado em Teologia Judaica e se formou rabina  aos 69 anos. Em um artigo comovente que ela escreveu nesta nova fase [2], ela reclama que artigos que ela escreveu quando pertencia à ortodoxia continuam influenciando novas gerações feministas ortodoxas, apesar de que ela mesma não acredita mais naquelas palavras. “Algumas vezes,” ela escreveu, “não podemos nos repetir. Podemos apenas nos transformar.”

Já aconteceu com vocês dizerem ou escreverem algo do qual se arrependem, mas as pessoas continuam te procurando porque concordam com a sua antiga posição?!  Comigo QUASE aconteceu….

Deve fazer uns trinta e cinco anos… estávamos no colegial e, junto com um grupo de amigos, organizamos um sêder de Pessach do Grêmio para os alunos da escola. Eu escrevi um texto de abertura para nossa comemoração que tomava como ponto de partida a ideia de 

בְּכָל דּוֹר וָדוֹר חַיָּב אָדָם לִרְאוֹת אֶת עַצְמוֹ כְּאִלוּ הוּא יָצָא מִמִּצְרַיִם, 
שֶׁנֶּאֱמַר: "וְהִגַּדְתָּ לְבִנְךָ בַּיוֹם הַהוּא לֵאמֹר: בַּעֲבוּר זֶה עָשָׂה יְיָ לִי בְּצֵאתִי מִמִּצְרָיִם"
Em toda geração, toda pessoa é obrigada a ver a si mesma como se ela mesma tivesse saído de Mitsrayim, assim como está escrito: “conte ao teu filho naquele dia, dizendo: ‘é pelo que Deus fez por mim quando eu saí de Mitsrayim.’”

No texto que eu escrevi na minha adolescência, o tom que eu adotava me alinhava com a abordagem lacrimosa para a história judaica, enxergando-a como uma série de perseguições e desastres, que tinham transformado aquele conceito em uma maldição.

A verdade é que, diferentemente do que aconteceu com a Rachel Adler, provavelmente ninguém além de mim se lembra daquele sêder e muito menos do meu texto de abertura… mas minha visão da história judaica mudou desde aquela época.

O que não mudou foi o entendimento de que a parte paradoxalmente mais importante e mais difícil do sêder de Pessach é fazer com quem cada um de nós se sinta realmente sendo libertado hoje à noite. Em geral, cantaremos músicas que já conhecemos, leremos poemas e histórias que já sabemos de cor, desfrutaremos comidas que nos transportam para sedarim de outros tempos, com pessoas muito queridas que já não estão mais, — e tudo isso cria ritual, gera continuidade, leva a memórias afetivas que vão nos acompanhar pra sempre. Tudo muito bom — mas na contramão de nos percebermos, neste ano, neste momento, libertados.

O rabino Arthur Waskow conta que para ele tudo mudou no sêder de 1968, o ano em que Martin Luuther King Jr. foi assassinado uma semana antes de Pessach. Naquele sêder, em Washington, com tropas federais ocupando os bairros negros para evitar distúrbios, as coisas começaram a mudar para ele. Em suas próprias palavras:
Em algum lugar dentro de mim, mais profundo que meu cérebro ou respiração, meu sangue começou a cantar: "Este é o exército do faraó e estou voltando para casa para fazer o sêder” (…) Sim, nas ruas está o exército do faraó e estou voltando para casa para fazer o sêder. De novo, não! Nunca mais uma bolha no tempo. Nunca mais uma recitação ritual antes da vida real, da refeição real, da conversa real.

Pois naquela noite, a própria Hagadá, a Contação da nossa escravidão e da nossa liberdade, tornou-se a verdadeira conversa sobre nossa vida real. Os alimentos rituais, a amargura da erva amarga, o pão pressionado pela opressão de todos, o vinho da alegria na luta, tornaram-se a verdadeira refeição.

Pela primeira vez, paramos no meio do próprio Maguid, para conectar as ruas com o sêder. Todo ano, desde que aprendi a ler, recitava a passagem que diz: "Em toda geração, todo ser humano é obrigado a dizer: 'Nós mesmos, não apenas nossos antepassados, saímos da escravidão para a liberdade’".

Incrível! - não "todo judeu", diz: "Todo ser humano!" [3]
O esforço do rabino Waskow tem sido o esforço de todo o povo judeu ao longo da nossa história de se perguntar como saída de Mitsrayim é a história que estamos vivendo hoje. Para os chassidim, Pêssach era a oportunidade de nos libertarmos das amarras de nossos egos hiper-inflados, o verdadeiro chamêts; sobreviventes da Shoá encontraram relevância no ritual imaginando os capatazes do faraó com insígnias nazistas; os chalutsim, os pioneiros sionistas que voltaram a Israel no começo do século XX para recolonizar a terra, imaginando o chachám, o filho sábio da hagadá, como um jovem do kibutz, pronto para largar os livros e sujar sua mão no solo; para vítimas de violência doméstica hoje em dia, Pessach é a chance de sonhar com dias diferentes; para meus avós, imigrantes da Europa Oriental, Pessach era a oportunidade de falar da sua condição, tendo fugido de uma situação terrível e, mesmo assim, muitas vezes sentido falta dos aromas, dos sabores, do idioma da terra que eles tinham abandonado.

O processo continua. Todos os anos, há novas hagadot sendo publicadas, com textos inovadores e tradicionais, sempre buscando relacionar a liberdade com a nossa situação pessoal. Há algumas semanas, recebi o texto que Bernardo Sorj, sociólogo e um dos mais interessantes intelectuais do judaísmo no Brasil, escreve todo ano para o sêder. Desta vez, ela relaciona a atitude arrogante do faraó com o conflito entre Rússia e Ucrânia e com o momento político que vivemos no Brasil. 

בְּכָל דּוֹר וָדוֹר חַיָּב אָדָם לִרְאוֹת אֶת עַצְמוֹ כְּאִלוּ הוּא יָצָא מִמִּצְרַיִם, 
שֶׁנֶּאֱמַר: "וְהִגַּדְתָּ לְבִנְךָ בַּיוֹם הַהוּא לֵאמֹר: בַּעֲבוּר זֶה עָשָׂה יְיָ לִי בְּצֵאתִי מִמִּצְרָיִם"
Em toda geração, toda pessoa é obrigada a ver a si mesma como se ela mesma tivesse saído de Mitsrayim, assim como está escrito: “conte ao teu filho naquele dia, dizendo: ‘é pelo que Deus fez por mim quando eu saí de Mitsrayim.’”

E você?! O que vai fazer para que o ritual não fique apenas na repetição de velhas fórmulas, e para que sirva de inspiração para a tua libertação pessoal?

Shabat Shalom e Chag haCherut Sameach!


[2] “In Your Blood, Live: Re-visions of a Theology of Purity.” in Lifecycles 2, edited by Debra Orenstein and Jane Litman. Woodstock, VT: Jewish Lights, 1997. ps197-206

quinta-feira, 3 de março de 2022

O que vem depois da saída de Mitsrayim?

Duas conversas que eu tive esta semana apontaram em direções opostas. Em uma delas, a pessoa me disse: “o que é, é; o que não é, não é”, com uma convicção evidente de quem acredita na clara distinção entre as categorias das quais falava. Na outra conversa, a pessoa mencionou a Caixa de Schrödinger, o experimento teórico da Física Quântica na qual um gato é mantido em uma caixa de metal fechada, com um dispositivo atômico e um vidro de veneno. Passada uma hora, sem sabermos se o dispositivo atômico havia sido ativado, o experimento considera que o gato está paradoxal e simultaneamente vivo e morto. A menção a este conceito abstrato foi para exemplificar que, às vezes, as categorias se misturam e as coisas estão em várias delas ao mesmo tempo.

Fiquei pensando nisso ao ler a passagem da Torá deste shabat. Nela, alguns conceitos centrais do comprometimento judaico com a Justiça Social, que já tinham sido mencionados em outras partes da Torá, são relembrados. Um trecho se destaca: “Não haverá necessitados em teu meio – pois Adonai te abençoará na terra que Adonai, teu Deus, te dá como posse hereditária na condição de que você escute a voz de Adonai, teu Deus, mantendo e cumprindo toda esta mitsvá que Eu te ordeno hoje. (...) Se, no entanto, houver uma pessoa necessitada em teu meio, um de teus parentes em qualquer um dos teus assentamentos na terra que Adonai, teu Deus, te dá, não endureça teu coração nem feche a tua mão para o teu necessitado.” [1]

Assim, Deus deixa claro que a garantia do bem estar do povo de Israel depende de que nós mesmos sigamos os valores judaicos de ajuda ao próximo. A tradição judaica já nos dá as ferramentas para garantir uma situação de bem estar social, sem a necessidade de milagres ou de intervenção Divina direta. De alguma forma, o sistema que estabelece estes valores e regras já é a intervenção Divina. E, considerando a forma integrada como a comunidade judaica vive em muitas partes (incluindo o Brasil), nosso comprometimento não deve ser apenas com outros judeus, mas com todos aqueles com quem compartilhamos esta terra, em suas maravilhas e em seus desafios.

Mas por que esta é a passagem escolhida pela tradição para ser lida em Pessach? Haverá, certamente, quem argumente que é pela menção ao sacrifício de Pessach, à contagem do Omer e à comemoração das três Festas de Peregrinação (Pessach, Shavuot e Sucot) no final da passagem [2] e eles estão, provavelmente, certos. Eu gostaria de propor um motivo adicional para que esta seja a leitura neste momento do ano. A saída de Mistrayim e a conquista da liberdade pelos hebreus são a narrativa fundacional mais importante da tradição judaica, cara em particular aos conceitos relacionados ao nosso compromisso com a Justiça Social. Em inúmeras passagens da Torá, a proteção aos vulneráveis é explicitamente vinculada ao conceito de que “vocês foram estrangeiros na terra de Mitrayim.” No seder de Pessach revivemos a dor da opressão e a alegria da redenção – por isso, renovamos nosso compromisso com a criação de um mundo no qual possamos viver todos em liberdade e com dignidade. O texto da Torá desta semana reafirma que este compromisso não pode existir apenas de forma abstrata - ele  tem implicações concretas sobre nossa conduta, determinando ações que devemos ter e outras nas quais não podemos nos engajar.

Da mesma forma que o Shabat nos permite viver um “gostinho do mundo vindouro” e renova nosso compromisso com construir esta realidade já a partir da Havdalá, Pessach deve renovar nosso comprometimento com um mundo mais justo, onde Liberdade não seja privilégio de alguns, mas possa ser a realidade de todos. Esse é o lembrete que a leitura da Torá deste 8º dia de Pessach nos deixa.

Shabat Shalom,


[1] Deut. 15:4-5,7. 

[2] Deut. 16:1-17.

[3] Veja, por exemplo, Ex. 22:20, Lev. 19:34, Deut. 10:19.


 


quinta-feira, 1 de abril de 2021

Traga o Divino que você gostaria de ver no mundo!

De acordo com a tradição, foi no sétimo dia de Pessach, 21 de nissan, que o povo hebreu cruzou o Mar de Juncos e abandonou a terra das águas estreitas (Mitsrayim) para encontrar a liberdade na imensidão do deserto. Neste ano, 21 de nissan cai no shabat, quando o trecho da Torá tradicionalmente incluirá Shirat haYam, o poema que os hebreus cantaram ao cruzar o mar [1].

Não é difícil imaginar a angústia pela qual passavam aqueles hebreus antes da abertura do mar: de um lado, as tropas egípcias chegando; de outro, o mar à sua frente. Se ficassem, seriam mortos pelos soldados que os perseguiam; se seguissem, morreriam afogados. Finalmente, Moshé levantou seu cajado e o segurou sobre as águas do mar e Deus fez com que ele se abrisse, permitindo que o povo hebreu fizesse a travessia em segurança.

Ao analisar esta passagem, um antigo midrash diz que no Mar de Juncos, Deus apareceu ao povo como uma pessoa jovem e no Monte Sinai Deus lhes apareceu como uma pessoa idosa.[2] O mestre chassídico Levi Itschac de Berditchev, explica que esta ideia de que Deus era jovem quando abriu o mar se refere ao fato de que Deus subverteu as leis da natureza para abrir o mar, da mesma forma que jovens não prestam especial atenção às regras. A abertura do Mar, no entanto, foi uma exceção -- Deus costuma agir dentro das regras naturais, como o próprio Levi Itschac comenta a respeito das comemorações de Chanucá e Purim.[3]

Muitas vezes, ainda esperamos do Divino o nível de intervenção direta que vimos na narrativa de Pessach, comandando os eventos da história, prestando atenção aos clamores do povo, estabelecendo a justiça onde ela estava em falta. Nossa experiência histórica, no entanto, aponta em outra direção, na qual Deus espera que a humanidade aja, escutando os clamores dos vulneráveis, corrigindo suas injustiças (especialmente as sistêmicas), cuidando da Terra e de todos que nela vivem. O Deus jovem da abertura do mar deu lugar à “voz mansa e delicada” [4] e dependemos da fagulha divina em cada um para observarmos a ação Divina no mundo.

Não foram raros os momentos do nosso passado recente em que esperamos, passivos, a intervenção divina, mas parece que não vivemos na época do Deus jovem que subvertia as leis da natureza e hoje é nossa ação que se faz necessária. Em seu discurso na Marcha em Washington em 1963, imediatamente antes de Martin Luther King proferir seu famoso discurso “Eu tenho um sonho”, o rabino Joachim Prinz disse que, baseado em sua experiência vivendo na Alemanha Nazista, “o mais urgente, o mais vergonhoso, o mais vergonhoso e o mais trágico problema é o silêncio.”

Deus se manifesta de forma distinta em cada momento -- que este Shvií shel Pessach (o sétimo dia de Pessach) no qual voltamos a cruzar o mar dos juncos, nos inspire novamente e nos encorage a agir para um mundo em que todos possam chegar à sua amplidão e liberdade.

Shabat Shalom


[1] Ex. 15:1-18

[2]  Pessicta Rabati 21:5

[3] https://www.huffpost.com/entry/divine-light-human-hands-_b_793011

[4] 1 Reis 19:12


sexta-feira, 19 de março de 2021

Dvar Torá: Mudanças que vão além da superfície (CIP)


Pessach está chegando em 8 dias. O primeiro sêder será na noite de 27/03 e eu quero convidar todo mundo a participar deste evento comunitário garantindo toda a segurança, mantendo-se nos seus núcleos familiares limitados e integrando a comunidade através da transmissão do sêder da CIP com a condução do rabino Michel com o Alê Edelstein.

Uma das tradições na preparação de Pêssach é fazer a limpeza da casa e eu tenho estado envolvido neste processo há algum tempo. Em uma caixa perdida que eu não tinha aberto deste que me mudei para São Paulo há mais de dois anos, encontrei um monte de receitas médicas. Lá no meio, as receitas do óculos que eu devia usar mas nunca uso… Eu comecei a usar óculos logo depois de me formar na faculdade. Depois de me formar na GV de São Paulo, meu primeiro emprego foi no Banco Bozano, Simonsen, no Rio. A mudança de cidade, a construção de um novo circulo de amigos oferecia a possibilidade de me re-inventar, de sair do casulo tímido em que eu tinha vivido até então sem ter que me preocupar com as expectativas que as pessoas que já me conheciam tinham a meu respeito. Pra ajudar, vieram o óculos, novo apetrecho que possibilitaria que o tímido Clark Kent virasse o destemido Superhomem. 

Tolo engano… alguns meses vivendo no Rio, uma grande amiga que eu tinha conhecido lá descreveu como ela me via. Era um retrato idêntico ao que meus amigos de São Paulo teriam descrito, com exceção do óculos que eu tinha adicionado ao visual.

Mudanças de contexto oferecem a possibilidade de transformarmos aquilo que nos incomoda na realidade que estamos vivendo — mas elas não tem nenhum poder mágico. Se quisermos realmente transformar como interagimos com o mundo e os resultados que obtemos, não há substituto para o duro de análise das nossas ações e mudanças de condutas.

Essa é uma semana cheia de mudanças. Já na segunda-feira entraram em vigor no Estado de São Paulo as novas regras para o estado de emergência em que nos encontramos de acordo com as quais templos religiosos não são mais considerados atividades essenciais e nós aqui na CIP corremos para repensar as cerimônias todas e fazê-las cada um da sua casa. Nesta semana, mudou o ministro da Saúde. Nesta semana, começamos um novo livro da Torá.

Vaicrá ou Levítico, o livro que começamos esta semana, coloca a ênfase no trabalho ritual dos sacerdotes e nos detalhes intricados dos sacrifícios, a forma de relacionamento com o Divino naquela época. Para um leitor contemporâneo, ler estas passagens traz uma certa medida de choque, especialmente para quem acredita que o judaísmo que praticamos hoje é exatamente o mesmo que nossos antepassados praticavam na época da Torá. O mundo mudou, as sociedades mudaram e o judaísmo mudou junto. 

Os rabinos tiveram a coragem de examinar as práticas descritas na Torá de forma crítica e propuseram novas formas de relacionamento com o Divino. A reza que praticamos hoje é resultado deste processo de transformação profunda. Em um diálogo imaginado pelos Rabinos de um midrash [1], Deus teria lhes dito que precisava apenas de palavras e que elas tinham a vantagem de que podiam ser ditas nas sinagogas, nas cidades, nos campos, até mesmo nas camas ou nos corações das pessoas. Não foi uma mudança fácil, muitas pessoas disseram que isso era um absurdo, que a vontade de Deus estava claramente refletida nas práticas descritas na Torá, que a mudança era ofensiva e inconcebível. Confrontadas com o esforço de mudar, esses grupos resolveram continuar apegados ao passado. Hoje, os conhecemos pelas páginas dos livros mas eles deixaram de fazer parte do presente judaico.

Nas páginas de Vaicrá, vamos buscar valores e inspiração para nossas práticas cotidianas. Ao evitarmos uma leitura que determinasse que as práticas prescritas no texto devem determinar nosso comportamento de forma literal, garantimos que a Torá, corpo central da nossa tradição, mantenha-se relevante ainda que tudo ao nosso redor tenha se transformado. Na parashá desta semana, por exemplo, lidamos com os erros que cometemos com ou sem intenção, em particular quando as pessoas que cometem estes erros ocupam posição de liderança e inspiram outros a seguir pelo mesmo caminho. Ainda que a prática de sacrifícios e libações não façam mais parte do nosso arsenal de respostas a estes erros, esta conversa inspirada pela Torá nos leva a considerar como podemos responder a esta situações quando elas acontecem na nossa própria época.

Uma frase famosa, constantemente atribuída a Albert Einstein define insanidade como fazer a mesma coisa muitas vezes e esperar resultados diferentes. Vivemos hoje uma crise sanitária sem precedentes na história recente. O número diários de mortos pela Covid se aproxima de 3,000. Como bem lembrou o querido Theo Hotz, ex-moré da CIP e no caminho de se tornar um colega rabino em alguns anos, “Em 2001, no ataque às torres gêmeas do World Trade Center, 2977 pessoas foram vítimas do terrorismo. No Brasil, temos um 11 de setembro por dia por causa de uma única doença.” [2] Aproveitando as palavras atribuídas a Einstein, é insano acreditarmos que podemos continuar fazendo as mesmas coisas e esperarmos resultados diferentes. A situação exige a mobilização de todos nós.

É fácil colocar a culpa nos outros — apontar para políticos que pregam o contrário do que diz a ciência ou se sujeitam a pressão de grupos organizados, andar pela rua e culpar quem ainda anda pela cidade com a máscara no queijo, como se ela fosse um amuleto que pudesse salvar vidas por proximidade. E, ainda assim, continuar com suas vidas e visitar alguns poucos amigos para um choppinho no final de semana; planejar o seder de Pessach com a família porque todos estão se cuidando; pedir comida pelo aplicativo todo dia, porque o entregador precisa trabalhar também, não é mesmo?!

O salvar-vidas só vai acontecer quando cada um de nós mudar nosso comportamento pra valer — abrir mão de práticas que nos são caras e entender que a mudança cosmética pode causar impacto mas não muda nada de verdade.

Quando a gente começou a fazer os serviços remotos, falaram muito de como falar para a sinagoga vazia era diferente, gerava incômodo. Eu confesso que este novo formato com cada um em sua casa gera um incômodo muito maior — mas nada comparado à possibilidade de salvarmos uma vida que seja ao transformarmos nossa conduta. Estamos tentando fazer a nossa parte e eu quero encorajar cada um de vocês a considerar o que vocês podem fazer também como a parte de vocês.

Em Pessach, nos lembramos da transformação dos filhos de Israel no povo hebreu, um processo baseado na solidariedade e na construção de um caminho conjunto. Que as cenas terríveis que assistimos em Manaus e em outras partes do país nos sensibilizem para a necessidade de mudanças urgentes e verdadeiras.

Shabat Shalom 



sexta-feira, 10 de abril de 2020

Dvar Torá: Vamos sair dessa! (CIP)

Viktor Frankl foi um neurologista e psiquiatra judeu, sobrevivente da Shoá, famoso por ter desenvolvido o conceito da busca humana pelo sentido em sua obra “Em Busca do Sentido”, publicada logo depois do final da 2a Guerra. Diferente de outros psicólogos e psiquiatras, que identificavam a busca pelo poder ou pelo prazer como a motivação humana básica, de acordo com Frankl, é a busca por significado em nossas vidas que nos motiva: alguns encontram sentido nas suas vidas profissionais; outros na dedicação à família ou à arte ou ao esporte; há quem o encontre na relação com Deus ou na trabalho voluntário e na filantropia. Eu acho que todos nós conseguimos nos enxergar nessa busca permanente pelo significado, que não é estático ao longo da vida e vai mudando conforme vamos crescendo, ganhando novas responsabilidades e competências — e de alguma forma, eu acho que o nosso objetivo, de rabinos e de chazanim, é ser parceiros de vocês nessa busca. Chazanim com sua música, rabinos com suas palavras, nós queremos facilitar pra cada um de vocês a busca pelo significado.

Neste Pessach tão diferente de todos os outros Pessachim passados, é natural que tentemos encontrar na nossa tradição um significado para o que estamos vivendo. Como a Festa da Liberdade nos ajuda a encontrar sentido nesta nossa quarentena? Na quarta-feira à noite, tivemos um seder comunitário online, com a participação de mais de 600 famílias. O Avi e eu conduzimos a maior parte do sêder, mas toda a equipe litúrgica da CIP participou e era possível identificar como todos nós, cada um à sua maneira, estávamos tentando dar significado ao que estamos vivendo.

O rabino Michel, por exemplo, falou da esperança que temos de que o profeta Eliahu nos visite na noite do sêder para anunciar a chegada da era messiância e da visão judaica liberal de que este novo tempo não será marcado pela visita de uma pessoa, mas será o resultado de um esforço coletivo para o qual cada um de nós tem que se engajar. Ele falou sobre como isso implica “sairmos da nossa zona de conforto e assumir total responsabilidade pelos caminhos da humanidade” e que “[a]brir a porta na noite do seder pode representar uma opção simbólica pela construção de um mundo diferente.” A pergunta implícita nos comentários do rabino Michel é “Qual papel cada um de nós é chamado a desempenhar para garantir que a visita de Eliahu haNavi às nossas casas ante-ontem à noite não tenha sido em vão?”

O rabino Ruben explicou e o Avi cantou o Há Lachmá Aniá, uma das primeiras músicas do seder, que fala da matsá como o pão da pobreza e da aflição e que nos convida a incluir em nosso seder quem está realmente em situação de vulnerabilidade, precisando de acolhimento. O rabino Ruben desejou que possamos deixar de lado as visões dicotômicas entre pobres e ricos, entre vulneráveis e fortes, entre jovens e idosos, entre sadios e doentes e que descubramos “que todos precisamos um dos outros e que somente com a solidariedade verdadeira, abrindo as portas das nossas casas, das nossas mentes, de nossos corações e de nossas mãos é que vamos conseguir sair da terra da escravidão para a terra da liberdade.”

O Alê Edelstein escolheu cantar e comentar uma passagem da hagadá que diz que “de geração em geração, cada pessoa precisa sentir-se como se ela mesma tivesse sido pessoalmente libertada de Mitsrayim”, e desejou que esta seja uma chave para o desenvolvimento de empatia, para que possamos nos colocar verdadeiramente no lugar do outro e sairmos juntos do nosso Egito.

O Alê Schinazi comentou sobre o paralelo entre as incertezas que vivenciamos hoje e aquelas vividas pelo povo de Israel na saída de Mitsrayim e nos 40 anos seguintes no deserto, sem saber exatamente o que aguardar, até quando esperar e quando seria a hora de avançar.

Estamos todos, do lado de cá e do lado de lá dessa telinha, tentando encontrar significados nessa crise. Pessach é também a festa da Primavera na terra de Israel e lembramos dela durante o seder comendo o carpás depois de mergulhá-lo na água com sal, símbolo das lágrimas dos nossos antepassados. Essa dimensão agridoce, da mistura da alegria da redenção com a dor da opressão está representada também no sanduíche de Hilel, que junta o doce do charosset com o amargo do maror. Yehudá Amichai tava certo, “uma pessoa precisa amar e odiar ao mesmo tempo, rir e chorar com os mesmos olhos, atirar pedras e juntá-las com as mesmas mãos. Fazer amor na guerra e guerra no amor. E odiar e perdoar e lembrar e esquecer, e organizar e confundir e comer e digerir o que a história leva anos e anos para fazer.” 

Essa crise — e eu não quero, de jeito nenhum, minimizar a sua extensão — não é só a água com sal, ela também tem o seu lado primavera, tem um tanto de charosset pra misturar com o maror. Ela nos oferece a capacidade única de nos reinventarmos, de nascermos de novo com a sabedoria que acumulamos e  de construirmos novas estruturas que reflitam melhor quem queremos ser daqui pra frente.

O episódio do Bezerro de Ouro, em que o povo acreditou que um objeto poderia ser Deus, foi, provavelmente, a crise mais séria no relacionamento entre Deus e o povo de Israel até então.  Naquele episódio, Moshé tinha quebrado as Tábuas da Lei, que tinham sido preparadas e inscritas por iniciativa única e exclusiva de Deus. Na parashá que leremos amanhã, Deus pede a Moshé que prepare um segundo conjunto de tábuas sobre os quais Deus escreverá os mandamentos. O rabino Art Green sugere que Deus reconhece que as primeiras tábuas, em cuja preparação apenas o Divino tinha participado, não ofereciam espaço para a manifestação humana e, por isso, estavam fadadas ao fracasso. Ao pedir a ajuda de Moshé para as segundas tábuas, Deus Se transforma e possibilita um pacto com Israel muito mais estável e sólido.

Agora, somos nós quem temos a oportunidade de nos transformarmos, de reconstruir nossas sociedades como comunidades muito mais estáveis e sólidas, com empatia, com preocupação com a inclusão — especialmente a dos mais vulneráveis —, em que cada um de nós possa escutar seu chamado para construir aqui nesse mundo a utopia representada pela era messiânica. O momento é agora para começarmos a sonhar, a imaginar, a planejar como serão nossas vidas do lado de lá desta longa travessia.

Nós mergulhamos o carpás na água com sal para nos lembrarmos das lágrimas dos nossos antepassados. Um dos comentários que eu mais gosto sugere que olhemos a questão por outro ponto de vista e pergunta: “porque a água com sal deve ser tocada pelo carpás, símbolo da primavera?” e ele mesmo responde: “para nos lembrar que chega a hora em que paramos de chorar.” Essa hora vai chegar e não vai demorar muito.

Shabat Shalom!

quinta-feira, 19 de março de 2020

De Purim a Pessach: Proteção e Vingança em Diálogo no Calendário Judaico (ou os riscos do 'perseguido' se transformar em 'perseguidor')


Todo ano, no começo de fevereiro, o mesmo cenário: em esquinas-chave de São Paulo, encontramos grupos de jovens, suas caras pintadas com os nomes das faculdades em que foram aprovados, pedindo dinheiro aos motoristas para poderem ir beber cerveja com os novos colegas. Acompanhando a alguma distância, estão os recém-veteranos, alunos do segundo ano, comemorando o fato de já não serem mais eles quem precisa passar pelo vexame. Pedir dinheiro nas esquinas é, provavelmente, a prática mais visível e inocente do trote pelo qual passam os calouros que, em alguns casos, envolvem episódios sérios de violência física e moral. A cada tantos anos, voltam à imprensa casos menos visíveis e menos inocentes, que nunca deixam de causar polêmica.

Penso muito na transição de calouro para veterano e sobre como, nela, o oprimido de um ano passa facilmente para a condição de opressor, no ano seguinte; o pensamento corrente parece ser: “se alguém sofreu o trote no seu ano, por que abriria mão de dar o trote no ano seguinte? ” Todas as práticas que incomodavam e humilhavam, gerando alguma revolta, passam a ser justificadas, usando os mesmos argumentos que, no ano anterior, eram prontamente rebatidos. 

Escrevo este artigo próximo de Purim, a festa judaica que comemora a salvação dos judeus da Pérsia. Segundo a história do Livro de Ester, o pérfido primeiro-ministro Haman tinha planejado um genocídio contra os judeus, que só foram salvos porque Ester, a rainha que tinha sido escolhida em um concurso de beleza, era secretamente judia e intercedeu junto ao rei para evitar a tragédia. Há um lado da história desta festa, no entanto, também descrito no Livro de Ester, para o qual se dá, tradicionalmente muito menos atenção: no final da história, com um judeu tendo substituído Haman na posição de primeiro-ministro e com a autorização do rei de que utilizassem armas para se defender, os judeus da Pérsia cometeram um massacre e mataram mais de 75.000 pessoas. 

Oprimidos sob risco de genocídio, esses judeus conseguiram chegaram próximos do poder e, em sua sede de vingança, se tornaram aquilo que eles mesmos mais rejeitavam. No shabat que antecede Purim, chamado Shabat Zachor, uma leitura especial da Torá nos instrui a não nos esquecermos de apagar a memória de Amalek que, na tradição judaica, é associado à violência contra aqueles em situação de vulnerabilidade e tem, entre seus descendentes, Haman, o vilão da história de Purim. Uma leitura possível deste mandamento é que devemos erradicar fisicamente Amalek e seus descendentes; outra possibilidade é que a Torá está nos alertando para que não nos transformemos nós mesmos em Amalek, nos orientando para olharmos a história de Purim e vermos como os judeus se transformaram em Haman. 

Infelizmente, não é só no trote universitário ou na história de Purim que encontramos a transformação de oprimido em opressor. Não são raras as vezes em que escutamos histórias de como “meus avós não tinham nada e foram capazes de se estabelecer e prosperar. Quem não consegue progredir é por preguiça e falta de esforço. ” Em vez de gerar solidariedade e empatia, a experiência de ter vivido sob condições extremamente difíceis e conseguido escapar delas pode dar origem a um sentimento de superioridade que impede a conexão com quem vive às margens da sociedade, hoje.

A perspectiva oposta a esta tem centralidade na tradição judaica, por exemplo, em Pessach, a festa que celebramos depois de Purim e na qual nos lembramos da libertação dos hebreus do Egito, onde tinham sido mantidos como escravos. Nossa experiência vivendo sob opressão no Egito determina que devemos ser especialmente cuidadosos para proteger quem vive em condições similares hoje em dia. Segundo o Talmud, a obrigação de “proteger o estrangeiro porque fomos estrangeiros na terra do Egito” aparece pelos menos 36 vezes no texto da Torá. De acordo com muitos autores “guer” (a palavra bíblica para “estrangeiro”) é uma metáfora para a condição de opressão sob a qual os estrangeiros viviam. Portanto, a obrigação deve ser entendida como nos instruindo a “proteger o oprimido porque fomos oprimidos na terra do Egito”.

A centralidade de obrigação judaica para com os menos favorecidos na nossa sociedade é inquestionável, tanto pelo número de vezes em que é repetida no texto da Torá como pelo diálogo que estabelece com muitos outros textos judaicos, que caracterizam e implementam esta preocupação. Trata-se de mandamentos sobre a forma como devemos pagar salários em dia ou deixar áreas dos nossos campos para que quem precisa possa entrar e se alimentar, entre muitos outros. Pode-se argumentar que foi ao redor da ideia de proteger o vulnerável que toda a tradição judaica foi construída: nossa experiência como escravos determinou de tal forma a identidade judaica que a preocupação com justiça social passou a fazer parte de forma indissociável do judaísmo. Ao mesmo tempo, no entanto, precisamos reconhecer que uma leitura vitimizacionista e revanchista para Purim também faz parte da tradição judaica — ignorá-la seria um erro conceitual e, ainda pior, um erro estratégico para a promoção de um judaísmo que acredita na defesa permanente dos direitos humanos como um dos seus eixos fundamentais.

sexta-feira, 26 de abril de 2019

Dvar Torá: Um judaísmo de relevância também para adultos! (Hebraica)

Davizinho volta pra casa com uma cara de poucos amigos e um bilhete da diretora da escola. Quando o pai se senta pra ler o bilhete, descobre que seu filho foi suspenso por roubar os lápis do estojo de uma coleguinha. Tomado de vergonha e pena, o pai decide ser compreensível. Chama o menino e, calmamente, lhe pergunta o que tinha acontecido. O menino não quis dizer. “No bilhete, a diretora disse que vc roubou lápis da sua colega. É verdade, meu filho?”. Sem levantar os olhos, o menino acena com a cabeça, indicando que foi isso mesmo. “Me conta por que, meu filho…” “Meus lápis acabaram, pai, e eu precisava escrever o que a professora estava colocando na lousa. O estojo da Hanna tava cheio de lápis, então eu fui lá e peguei um para não perder as anotações da lousa.” O pai entendeu que foi uma ação sem maldade por parte do menino e que, ainda assim, ele precisa reforçar a necessidade de respeitar a propriedade dos outros; indicar-lhe que ele não pode sair pegando as coisas dos outros, mesmo que tenha acesso fácil. “Filho, aqueles lápis eram da Hanna e você não tinha o direito de pegá-los sem a autorização dela. Isso é muito sério, a gente precisa respeitar as coisas dos outros, se não vira uma bagunça completa. Você ia gostar que alguém entrasse aqui no seu quarto e pegasse alguns brinquedos seus, porque não tem nada com que brincar?! Da próxima vez, filho, me avisa quando seus lápis acabarem e eu trago alguns lápis da empresa para você colocar no seu estojo!”

Eu confesso que, quando eu li uma versão desta anedota no livro “A mais pura verdade sem desonestidade” do israelense Dan Ariely, eu pensei que este teria sido o tipo de escorregão ético que eu poderia ter cometido sem me dar conta…. e, ao mesmo tempo, a história explicita uma verdade que, muitas vezes, nos recusamos a enxergar: nossos filhos prestam atenção tanto a nossas ações quanto a nossas palavras e não são raras as vezes em que estas duas dimensões enviam mensagens disconexas. No linguajar popular, é o bom e velho ditado “faça o que eu digo, não faça o que eu faço.” Para o bem ou para o mal, uma educação que se contradiz destas forma tem poucas chances de prosperar.

As pesquisas indicam, por exemplo, que um dos fatores mais importantes para o desenvolvimento de jovens leitores é o hábito de leitura dos pais. Filhos que vêem seus pais lendo jornais ou livros por prazer têm uma probabilidade muito mais alta de desenvolver o gosto pela leitura do que crianças que nunca vêem seus pais lendo. Dizer para nossos filhos que a leitura ou o estudo é importante quando eles nunca nos vêem lendo ou estudando dá poucos resultados, pelo mesmo motivo que a mensagem do pai do Davizinho era confusa com relação ao comportamento ético esperado dele.

Hoje começamos o último dia de Pêssach, uma festa cujas comemorações têm na preocupação com as crianças um eixo central. Afinal de contas, há quatro passagens na Torá que nos instruem a contar aos nossos filhos sobre nossa Libertação de Mitzrayim, dando origem ao seder de Pêssach e à sua preocupação com a didática, adaptando o que ensinamos de acordo com a maturidade e capacidade de cada criança aprender e com atrativos (como o Afikoman) para que eles fiquem acordados até o final e desfrutem de todo o ritual.

A verdade é que o seder de Pêssach é um dos maiores sucessos da tradição judaica. Das celebrações mais ortodoxas às mais seculares, essa é uma tradição que tem mantido viva ao longo dos séculos da vivência judaica, cada grupo adaptando um pouco o ritual para a sua visão judaica de mundo. Nas casas das famílias e nas celebrações comunitárias, eu escutei de sedarim com casa cheia e muita criatividade!

Esses são resultados que, com certeza precisam ser celebrados! A narrativa da saída de Mitzraim e a lembrança da nossa opressão são pilares judaicos centrais que transmitimos na celebração de Pêssach. Mas será que esses resultados são suficientes?

Saímos de Pessach em direção a Shavuot. Ao final desta travessia de sete semanas, chegaremos à base do Monte Sinai. Da mesma forma que o objetivo do sêder é que nos sintamos pessoalmente libertados, na noite de Shavuot, devemos nos sentir presentes na entrega da Torá, um processo que repetimos de ano em ano, de geração em geração.

Mas será que temos o que entregar para a geração dos nossos filhos?! Será que nos apropriamos verdadeiramente da tradição judaica, a tornamos nossa, para podermos passá-la em frente? Ou será que, como o comportamento ético para o pai do Davizinho, consideramos que o Judaísmo é algo essencial para a criação dos nossos filhos mas que perde a relevância uma vez que chegamos à vida adulta?

Em uma das quatro passagens que eu mencionei antes sobre contarmos aos nossos filhos sobre a saída de Mitzraim, o texto diz: “quando vocês entrarem na terra que ייַ te dará conforme te disse, vocês devem observar este ritual. E quando teus filhos te perguntarem: ‘o que é este ritual para você?’, você deve responder.” A Torá parte da premissa de que o Judaísmo terá relevância nas nossas vidas e que o desafio será somente transmiti-lo à próxima geração; mas nós sabemos que nosso desafio hoje em dia é muito mais profundo. 

Ele começa por encontrar relevância e significado na tradição judaica para as vidas complexas e sofisticadas que levamos neste começo de século XXI. Os americanos falam em um abordagem pediátrica ao Judaísmo, que acontece quando nos tornamos adultos juízes federais, cirurgiões bem sucedidos, arquitetos renomados, artistas sofisticados - mas judaicamente continuamos crianças que interromperam seus estudos judaicos ao completarem 12 ou 13 anos ou, no melhor dos casos, ao terminarem o Ensino Médio aos 17.  A matemática que tínhamos aprendido aos 12 anos não tinha a mesma sofisticação daquela que vimos na faculdade; nem as aulas de história, nem as de biologia. Por que seria diferente com as aulas de Judaísmo?

Ao nos aproximarmos do final de abril, eu sempre me pergunto o que o Judaísmo tem a dizer sobre nossas declarações de imposto de renda. Hoje, em reunião com jovens da CIP, eles tinham curiosidade sobre o que o Judaísmo tem a dizer sobre o aborto e sobre questões de sexualidade. Um líder comunitário tinha uma grande preocupação com o envelhecer e o que o Judaísmo tinha a dizer sobre situação em que nossos pais já não tm pleno controle sobre suas faculdades mentais. Dado o clima que vivemos no Brasil hoje, o que o Judaísmo tem a dizer sobre a relação entre a vontade da maioria e os direitos das minorias? Na decisão sobre vacinar ou não os nossos filhos, o que o Judaísmo tem a nos ensinar?

Questões complexas, tratadas judaicamente de formas sofisticadas e plurais ao longo dos séculos - mas que a maioria de nós nunca viu porque elas não tem relevância para crianças de 13 anos ou para jovens de 17.

O Judaísmo tem muito a ensinar a nós e aos nossos filhos, tanto na juventude deles quando em sua vida adulta, mas eles dificilmente acreditarão nisso enquanto as palavras ditas pelas nossas bocas forem negadas pelas palavras ditas pelos nossos atos. Como o pai do Davizinho, não podemos esperar comportamentos dos nossos filhos diferentes daqueles que temos.

A travessia de sete semanas entre Pessach e Shavuot é uma excelente oportunidade para tomar a decisão de se engajar em estudo judaico profundo e tornar o judaísmo algo realmente relevante para a sua vida. Na CIP, estamos  já há alguma semanas preparando o XII Ticún da Virada, o festival de estudo judaico com o qual comemoramos a festa. Coloquem a data de 8 de junho nas suas agendas e venham dar, conosco, o primeiro passo de um engajamento judaico adulto.

Shabat Shalom e Chag Sameach!

domingo, 23 de abril de 2017

Entre o Pacto e a Tribo

(artigo originalmente publicado no blog Pinat Brasil)

Há alguns anos, o representante da diretoria voluntária de uma escola judaica mencionou, em seu discurso durante uma cerimônia de formatura, tudo o que ele tinha aprendido na aulas de Cultura e História Judaicas daquela mesma escola, onde ele também tinha estudado. “Está tudo resumido em uma velha piada”, ele disse. “Tentaram nos matar, não conseguiram, agora vamos festejar”. O discurso continuou, endereçando a necessidade de união da comunidade judaica frente às ameaças externas, o perigo do antissemitismo fora dos muros escolares e a necessidade de garantirmos que as próximas gerações fossem educadas dentro do judaísmo.

Para muita gente que escutava o discurso, sua mensagem era certeira: na sua visão, a principal função da educação judaica é garantir que reconheçamos as ameaças à nossa existência e que aprendamos a nos defender e garantir a perpetuação do povo judeu. Para outro segmento não menos representativo, no entanto, o incômodo era claro. Para eles, a educação judaica deve focar nos valores humanistas da nossa tradição, central entre eles a dignidade de todo e qualquer ser humano.

O rabino Sid Schwarz, escrevendo sobre dinâmicas muito semelhantes que acontecem na comunidade judaica norte-americana, chama o primeiro grupo de “judeus tribais” e o segundo grupo de “judeus do pacto”. “Judeus tribais”, escaldados pela seqüência de perseguições contra os judeus, valorizam a proteção física da comunidade judaica; estão preocupados com o “corpo” do judaísmo. “Judeus do pacto” se ocupam com o papel que valores judaicos terão na forma como a comunidade judaica se conduz e como ela trata a proteção aos oprimidos, sejam eles quem forem; eles se preocupam com a “alma” do judaísmo.

Às vésperas de Pessach, chegamos ao terceiro e último feriado da trilogia da piada mencionada: “tentaram nos matar, não conseguiram, vamos comer!” As histórias de Chanucá, Purim e Pessach, lidas sob esta perspectiva, reforçam dimensões de compreensão da experiência histórica judaica que sempre nos enxergam como vítima. Na capacidade de vítimas, nossa responsabilidade se limita à nossa própria (e legítima!) defesa.

É difícil negar que esta seja uma dimensão plausível para a compreensão das narrativas destas três festas judaicas – ela não é, no entanto, a única narrativa possível, nem mesmo a lente através da qual devamos estabelecer a compreensão fundacional da experiência histórica e do calendário judaicos.

Em cada uma destas três festas, valores centrais que se opõem à narrativa da vitimização perene são, frequente e propositalmente, ignorados. Entre outros assuntos possíveis, em Chanucá, deixam de discutir a relação entre o poder hegemônico e as minorias culturais; em Purim não falam dos riscos do abuso de autoridade; em Pessach, deixam de lado a conversa sobre a possibilidade de resistirmos aos faraós do nosso tempo – abordagens que falam da responsabilidade judaica para com o mundo ao mesmo tempo em que discutem as ocasiões em que fomos nós os oprimidos.

O que a visão que privilegia a auto-preservação judaica sobre qualquer outro valor omite é que o paradigma judaico fundamental para a compreensão da nossa própria opressão estabelece a empatia para com os oprimidos em toda parte como a principal lição a ser aprendida destes episódios. כִּי־גֵרִים הֱיִיתֶם בְּאֶרֶץ מִצְרָיִם (“por que vocês foram estrangeiros na terra do Egito”) é uma das poucas frases repetidas múltiplas vezes na Torá, sempre seguindo instruções para que protejamos os estrangeiros na nossa terra.  Na perspectiva da Torá, a experiência judaica como vítimas não nos dá o direito de nos preocuparmos apenas com a nossa própria segurança; ao contrário, ela determina que devemos proteger aqueles que hoje estejam em situação de vulnerabilidade.

A triste verdade, no entanto, é que a fala do diretor voluntário na formatura da escola reflete o pensamento de grande parte da liderança institucional judaica, que não apenas educa dentro de parâmetros unicamente etnocêntricos, mas também deslegitima qualquer visão de mundo alternativa. A falha em reconhecer estas múltiplas perspectivas possíveis de engajamento com a nossa tradição tem feito com que um segmento expressivo da comunidade judaica (especialmente, mas não apenas, a sua juventude) não se sinta representado pelas instituições comunitárias que, por sua vez, não se sentem comprometidas a considerar sua opinião na formulação de políticas e programas. Um ciclo vicioso que vem se desenrolando há muito tempo e que  agora, ao que parece, chega ao seu ápice sem que as questões de fundo sejam, efetivamente, discutidas. “Judeus do pacto” e “judeus da tribo” não se reconhecem mais como pertencendo a uma comunidade na qual compartilhem valores ou uma visão de futuro que tenha espaço para ambos.

Passados os dois sedarim, entraremos no Omer, período de 49 dias que serve de ponte entre Pessach (quando nossos corpos deixaram de estar sob permanente ameaça) e Shavuot (quando recebemos a Torá e, com elas, os valores que devem guiar nossas ações). Tradicionalmente, estes 49 dias são de introspecção, apresentando até mesmo sinais de luto. Podem ser uma ótima oportunidade para esfriar os ânimos e se perguntar como fazer para que a defesa dos corpos dos judeus e a proteção da alma judaica não sejam projetos mutuamente exclusivos!

quinta-feira, 12 de maio de 2011

Dvar Torah on Parashat Boh -- A final assignment for a Midrash Halakhah class

 Mah ha-avodah ha-zoht LACHEM”, “what is the meaning of this ritual TO YOU?” – to “you” and not to “us”, this child asks. And you know what kind of answer the “evil” child that would ask such a question deserves. Or, at least, you think you know.

 This is how Torah instructs to answer this question: “It is the Passover sacrifice to Adonai, because God passed over the houses of Israel in Mitzrayim when God struck Mitzrayim, but saved our houses.” (Ex. 12:26)


When commenting these verses, it is not clear to the Mekhilta whether it is a good sign or a bad one. To the rabbinic mind, on the one hand, it is problematic that your children won’t know the meaning of this ritual anymore, but on the other hand, it should be celebrated sign that many generations in the future, you will have children who will be in contact with your rituals. In any case, there is no sign of the contempt that characterizes the answer to the ‘so-called” rashah. 

 

That harsher approach is developed by Mekhilta when commenting a second occurrence of a child asking about the meaning of the rituals (Ex. 13:14). In that midrash, we get the story of the four children that we know from the haggadah: chacham, rashah, tam, and she-einoh yodeah lish’ol. Three of the children receive answers that seem appropriate to their interests, but the “rashah” is all but excluded from the community: “if you had been in MItzrayim, you would not have been redeemed.”

 

The difference between what the Biblical text says and the way the Rabbis interpret it is astonishing! As we saw, the question that the Rabbis considered “evil” received a fairly innocent answer in the Torah.  There, it was the child that doesn’t ask a question that received the tougher answer (Ex. 13:8.) And nowhere we are instructed to teach the detailed norms of kashrut le-Pesach, the answer that the midrash assigns to the “good” kid.

 

A professor of mine, Rabbi Stephen Pasamaneck, used to say that “the Torah means whatever the Rabbis say the Torah means”, but it is easier for me to accept when they transform “an eye for an eye” into financial compensation than when they transform texts that instruct us to transmit the story of the formative event of our communal history into an attack on the challenging members of our own community. 

 

I don’t know why the Rabbis were so angry at their challenging children and their constant pursuance of meaning, but I find the message carried by this midrash dangerous. If I have learned anything from being a parent is how inappropriate and counter-productive this kind of chastisement is and I want to publicly reject it. I keep it at my Passover seder, as the starting point of a conversation about othering and inclusion, and how to embrace those in our communities who don’t feel totally comfortable with part of our tradition and how to create the safe space for them to explore their questions. 

 

An environment not so different from the one we live in right now in the Jewish community. Last year, Abby Backer, an undergraduate student at Columbia University, visited a synagogue in Stamford, Connecticut, together with JStreet’s president, Jeremy Ben-Ami. Abby tells that, as she was leaving the place,  

 

An elderly woman confronted [her] in the synagogue lobby. “I should spit on you!” she yelled at [her] in front of a group of shocked onlookers. “Excuse me?” [Abby] replied. Glaring, she taunted: “Are you a Palestinian? You must be a Palestinian!”[1]

 

Another professor of mine, Rabbi Reuven Firestone, who is a scholar of Islam, told us that we would be shocked if we searched our holy literature for expressions of lack of tolerance for diversity. The midrash of the four children is certainly one of these expressions, and the reaction Abby experienced in Stamford is a result of the mentality it might engender. 

 

“You are either with me, or against me.” Having grown up in a country that was ruled by a dictatorship, this kind of position is neither unknown nor tolerable to me. Denying the right of members of our community to wrestle with our tradition, with our communal policies, and with Israel, will only result in their alienation and total disengagement from the Jewish community. As a self-fulfilling prophecy, by threatening the “rashah” with exclusion from the community, we are actually sending them away.

 

As we count the days for matan Torah and, as do many of us here, for matan semichah, may we be blessed with the wisdom and the ability to foster communities that open their doors wide and welcome everyone who wants to engage.



[1] . http://www.jstreetu.org/latest/exclude-me-at-your-own-peril