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sexta-feira, 14 de abril de 2023

Dvar Torá: Silêncios que enaltecem e silêncios que destroem (CIP)


Faz uns anos, eu fui convidado a participar da cerimônia de 70 anos da Fundação Dorina Nowill para Cegos. Em meio a várias outras autoridades religiosas citando passagens de suas escrituras sagradas, eu me aproximei do púlpito com minha cópia do Pequeno Príncipe para ler a passagem em que a raposa ensina ao príncipe que “o essencial é invisível para os olhos.” [1]

Eu conto essa história porque hoje eu vou citar nossa grande filósofa Rita Lee, que em “Jardins da Babilônia” cantou: “Pra pedir silêncio eu berro, pra fazer barulho, eu mesma faço.” [2] No tema do oxímoro, hoje eu vou gastar os próximos 15 minutos sem parar de falar sobre o silêncio.

Não sei se vocês já se deram conta, mas há vários tipos de silêncio — ou pelo menos há várias formas de interpretar o silêncio. Se durante a prédica, a comunidade inteira está em silêncio pode ser um sinal de atenção e engajamento ou o oposto deles, e a única forma de descobrir qual tipo de silêncio é, é olhando nos olhinhos de vocês e tentando “ler” as mensagens não verbais que vocês emitem. Há o silêncio que indica aceitação e o que expressa a mais profunda oposição. Quando as pessoas ficam profundamente magoadas, muitas vezes é através do silêncio que elas respondem, mas o silêncio também pode indicar parceria e cumplicidade, como eu testemunhei recentemente em um casamento, no qual os olhares que os noivos trocavam em silêncio sob a chupá falavam muito mais do que um milhão de palavras poderiam.

Na tradição judaica fala-se muito em defesa do silêncio — o que, pelo menos,  cria precedente histórico para a minha prática de falar sem parar sobre o silêncio. No livro de Provérbios, tradicionalmente atribuído ao rei Shlomô, diz-se em uma passagem que “mesmo uma pessoa tola será considerada sábia se se mantiver calada” [3]; em outra passagem do mesmo livro, é dito que “a pessoa tola não almeja a compreensão, apenas revelar seus pensamentos.” [4] Em Pirkei Avot, Rabi Akiva diz que “uma cerca protetora ao redor da sabedoria é o silêncio” e vários comentaristas explicam que a construção estranha da frase é para deixar claro que o silêncio é a única proteção possível para a sabedoria. [5] Outros comentaristas indicam que, além de proteger a sabedoria, o silêncio também permite que escutemos uns aos outros com maior atenção. No Talmud, os Rabinos afirmam que “o silêncio é apropriado para uma pessoa sábia, ainda mais para um tolo.” [6] Para quem já viu uma coleção do Talmud e seus 63 tratados, que nas minhas estantes equivalem a uma enciclopédia com 44 volumes, é no mínimo curioso que o silêncio fosse tão valorizado.

Na parashá desta semana, há uma situação de silêncio que vem sendo debatida pelos nossos sábios sem que seja estabelecido um consenso sobre  de qual tipo de silêncio se tratava. De forma pouco explicada e muito debatida, Nadav e Avihu, dois cohanim filhos de Aharón são tragados pelo fogo Divino em resposta a um “fogo estranho” que eles tinham ofertado [7]. Na sequência, o texto afirma apenas que “וַיִּדֹּם אַהֲרֹן”, “Aharón silenciou”. [8]

A reação de Aharón, o pai que perdeu seus filhos, choca pela passividade. Quando Sará soube da quase morte de seu filho Itschak, diz o midrash que sua alma fugiu do seu corpo. Quando Iaacóv ouviu que seu filho Iossêf tinha sido devorado por um animal selvagem, rasgou suas roupas, pôs pano de saco nas suas costas e guardou luto por seu filho por muitos dias. Mas Aharón ficou em silêncio.

Os comentaristas procuraram compreender o silêncio de Aharón. Há quem diga que seu coração se tornou pedra e que ele não tinha mais a capacidade de dizer nada, sua alma havia partido. [9] Por outro lado. há outros comentaristas que dizem que sua espiritualidade elevada permitiu que ele estivesse na mais completa calma, justificando a decisão Divina de levar seus filhos. [10]

E o nosso silêncio hoje, também pode ser interpretado de múltiplas formas? Dentro do mundo judaico, Ellie Wiesel foi um dos intelectuais que se dedicou a estudar o silêncio. De um lado, ele não permitiu que Orson Welles, o celebrado diretor de “Cidadão Kane” transformasse seu livro “A Noite” em um filme, argumentando que ele tinha escrito silêncios entre suas palavras e o cinema não deixava espaço para esses silêncios.” [11] O livro é um relato autobiográfico da experiência de Wiesel nos campos de extermínio nazistas, no qual ele afirma: 

“Nunca esquecerei aquela noite, a primeira noite no campo, que converteu minha vida numa noite longa e trancada a sete chaves. Nunca esquecerei aquela fumaça. Nunca esquecerei os rostinhos das crianças cujos corpos vi se transformarem em espirais sob um firmamento calado. Nunca esquecerei aquelas chamas que consumiram minha fé para todo o sempre. Nunca esquecerei o silêncio noturno que me tirou por toda a eternidade o desejo de viver. Nunca esquecerei aqueles momentos que assassinaram meu Deus e minha alma, em que meus sonhos assumiram a face do deserto. Nunca esquecerei, ainda que fosse condenado a viver por tanto tempo quanto o próprio Deus. Nunca.” [12]

O mesmo homem que impediu que seu livro virasse filme para proteger o silêncio que o texto continha dedicou sua vida à militância contra o silêncio que permitiu aquela atrocidade, mesmo na presença de pessoas poderosas. Em uma cerimônia na Casa Branca na época em que Ronald Reagan era presidente, ele protestou contra sua intenção de visitar um cemitério na Alemanha onde vários soldados SS estavam enterrados. “Seu lugar é com as vítimas dos SS”, ele disse ao presidente. Quando Clinton era presidente, ele o alertou que, como judeu, não podia aceitar o genocídio acontecendo na Iugoslávia naquela época. 

Wiesel jurou “nunca ficar calado onde quer que os seres humanos sofram sofrimento e humilhação” e talvez essa seja a linha que diferencia o silêncio produtivo, que favorece a escuta, daquele que permite que atrocidades sejam cometidas com o consentimento tácito implícito na nossa inação. 

“Devemos tomar partido”, ele disse. "Neutralidade ajuda o opressor, nunca a vítima. O silêncio encoraja o torturador, não o atormentado. Às vezes devemos interferir. Quando vidas humanas estão em perigo, quando a dignidade humana está em risco, as fronteiras nacionais e as sensibilidades tornam-se irrelevantes. Onde quer que homens e mulheres sejam perseguidos por causa de sua raça, religião ou opiniões políticas, esse lugar deve – naquele momento – tornar-se o centro do universo”. [13]

Na segunda-feira à noite, marcaremos o início de Iom haShoá, a data no calendário judaico em memória às vítimas da atrocidade nazista. A data escolhida no calendário faz referência ao Levante do Gueto de Varsóvia que, em 1943, desafiou os nazistas que esvaziavam o gueto de seus moradores e os enviavam para os campos de extermínio, um ato de coragem que neste ano comemora 80 anos e que homenagearemos na CIP no Cabalat Shabat do dia 28 de abril, com a presença do Coral Tradição, da Casa do Povo.

Vivemos tempos difíceis. Uma matéria no Estadão de hoje fala que, de acordo com um levantamento da Universidade de Tel Aviv, houve em 2021 um aumento dramático de ataques antissemitas em todo o mundo. Nos Estados Unidos, onde há estatísticas disponíveis também para 2022, o aumento foi de 36% com relação a 2021, que já tinha sido o ano do tal “aumento dramático”. [14] O mundo, em grande parte, tem se calado frente a este aumento de crimes de ódio contra judeus.

Aqui no Brasil, os ianomamis foram as vítimas de um projeto premeditado de eliminação aos qual assistimos ao vivo e a cores pela TV, na grande maioria, em silêncio.

Todos os dias, nas ruas das nossas grandes cidades, pessoas pretas são mortas em números assustadores. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de pessoas pretas mortas por policiais aumentou 5,8% de 2020 para a 2021, enquanto para pessoas brancas o número caiu 30,9%. Dessa forma, 84,1% das vítimas fatais de intervenções policiais eram pretos ou pardos, porcentagem significativamente superior ao seu número na população. [15] Nossa reação, de forma geral, foi o silêncio.

Como disse Elie Wiesel, “o silêncio encoraja o torturador, não o atormentado”. Mesmo que nossos corações, assim como o de Aharón, tenham se tornado pedras calejadas com tanta violência, é hora de sairmos de nossa dormência. Falecido em 2016, Wiesel precisa da nossa ajuda para continuar cumprindo sua promessa: “nunca ficar calado onde quer que os seres humanos sofram sofrimento e humilhação.”

Shabat Shalom!



 

[1] https://www.sesirs.org.br/sites/default/files/paragraph--files/o_pequeno_principe_-_antoine_de_saint-exupery.pdf, p. 56

[2] https://www.letras.mus.br/rita-lee/48512/

[3] Prov. 17:28

[4] Prov. 18:2

[5] Pirkei Avot 3:13. Para os comentários, vejam Bartenura e Ikar Tossafot Iom Tov.

[6] Talmud Bavli Pessachim 99a

[7] Lev. 10:1-2

[8] Lev. 10: 3

[9] Abarbanel comentando sobre Lev. 10:1

[10] R. Eliezer Lipman Lichtenstein - Shem Olam (1848-1896, Polônia), conforme citado por Nechama Leibowitz, http://www.jewishagency.org/he/leviticus/content/22409

[11] https://slate.com/human-interest/2016/07/elie-wiesel-s-profound-and-paradoxical-language-of-silence.html

[12] Elie Wiesel, “A noite: Um dos mais importantes testemunhos sobre a vida nos campos de concentração.”. Pag. 70/182 (ebook)

[13] https://www.thejc.com/lets-talk/all/elie-wiesel-understood-the-power-of-silence-6MIYglTlvuDwVhFe6pDINW

[14] https://www.estadao.com.br/alias/entenda-como-o-antissemitismo-em-alta-reune-radicais-de-todas-as-direcoes-politicas/

[15]  https://pt.org.br/negros-sao-84-das-pessoas-mortas-em-acoes-policiais-no-brasil/


sexta-feira, 17 de abril de 2020

Dois paradigmas para o exercício da liderança

Shmini, a parashá que lemos esta semana, contém uma das passagens mais enigmáticas da Torá: Nadav e Avihu, dois filhos de Aharón, resolvem fazer uma oferta a Deus para a qual não haviam recebido nenhuma instrução e são imediatamente consumidos pelo fogo. (Lev. 10:1-2)

Ao longo dos séculos, muitos comentaristas têm tentado explicar essa passagem, vários deles associando a punição às motivações de Nadav e Avihu. Apesar de estarem sendo preparados para serem líderes do povo de Israel, eles demonstraram que não eram as pessoas certas para posições de liderança, exibindo arrogância (rabi Levi) e presunção (rabi Tanchuma). Rashi também aponta para a arrogância de Nadav e Avihu, argumentando que eles foram punidos por terem feito uma oferta a Deus sem consultar Moshé e Aharon, os especialistas no assunto, que poderiam tê-los ajudado. O rabino Morris Adler acredita que o que os consumiu foi o fogo da ambição, do impulso e do desejo. Em suas diferentes abordagens, estes comentaristas concordam que Nadav e Avihu não tinham as características necessárias ao desempenho de liderança e que a perspectiva de terem poder lhes subiu à cabeça e os impediu de assumir o sacerdócio.

Em contraposição, logo no início da nossa parashá, alguns versos antes desse episódio, há um outro relato, cujos comentários apresentam um modelo radicalmente distinto de liderança. Moshé convoca Aharon e seus filhos para fazerem sacrifícios (entre eles, de um bezerro) como forma de serem desculpados por quaisquer infrações que eles e o povo possam ter cometido. De acordo com Rashi, esta oferta estava ligada diretamente ao episódio do bezerro de ouro.  Aharon vacilava, com dúvidas se era ela a pessoa certa para assumir o sumo-sacerdócio, tendo em vista que não tinha impedido o povo de praticar idolatria. “Por que você vacila? Para isso você foi escolhido”, teria sido a resposta de Moshé. 

O mestre chassídico Noam Elimelech nota, a respeito da relutância de Aharon, que a vergonha é parte essencial de uma pessoa e que uma pessoa que sente vergonha peca com menos facilidade. “Seja humilde e reconheça seus erros publicamente. Isso inspirará os outros ao teu redor a praticar tshuvá também.” A resposta de Moshé, nessa interpretação chassídica, indica que foi a capacidade de Aharon de questionar suas ações e reconhecer seus erros que justificaram sua escolha para ser o sumo-sacerdote. 

Vivemos em tempos conturbados e complexos, em que muitos líderes se veem e são vistos como semi-deuses, cujas ações se auto-justificam e não devem ser questionadas. Imbuídos de tanto poder, eles se aproximam do paradigma estabelecido por Nadav e Avihu, deslegitimando sua liderança pela prática da arrogância, da presunção, da ambição e do desejo. Na crise pela qual estamos passando, precisamos e merecemos que nossos líderes adotem outros paradigmas para o exercício do seu poder: como seres humanos, pessoas no exercício da autoridade não são perfeitas, mas esperamos que elas aprendam com o exemplo de Aharón, que soube reconhecer seus erros e agir para repará-los, sendo reconhecido pela nossa tradição como aquele que “amava a paz e a buscava”.

Shabat Shalom

sexta-feira, 25 de março de 2011

Dvar Torá: Parashat Shemini (Templo Beth-El, São Paulo)


De acordo com o Rabino Nehemia Polen há pelo menos duas formas de ler a Torá, os cinco livros de Moisés. A primeira forma, que é provavelmente a mais intuitiva, enxerga a Torá contando a história da formação do povo Judeu até a chegada à Terra de Israel. Começamos com a criação do mundo, Adão e Eva, os patriarcas e matriarcas, Abrão e Sara, Rebeca e Isaac, Jacó, Lea e Rebeca. Vamos para o Egito, de onde saímos com Moisés, recebemos a Torá no Monte Sinai e passamos 40 anos no deserto batendo cabeça, brigando uns com os outros e com Deus, até que toda aquela geração morre e uma nova geração consegue chegar à Terra prometida. Nessa leitura, o finalzinho da Torá, as cenas em que Moisés já pode ver Israel, são o ápice, o ponto mais alto da história.

A segunda forma que o Rabino Polen usa para ler a Torá é a da narrativa do relacionamento do povo Judeu com Deus. Nesta leitura, a chegada à Terra de Israel é apenas um detalhe em uma história que tem seu ápice muito mais cedo, quando Deus entrega a Torá para o povo judeu e passa as intruções para a construção do Mishkan, do Tabernáculo no qual a presença de Deus residirá em meio ao povo. Os quarenta anos no deserto, longe de ser esse longa seqüência de brigas é vista como a lua de mel – uma lua de mel na qual as duas partes ainda estão aprendendo sobre o outro, mas mesmo assim uma lua de mel. Relacionamento: esta é a palavra chave desta forma de encarar o texto.

Uma dos atributos mais interessantes desta abordagem dupla que o Rabino Polen propõe é que estas duas narrativas, ainda que bastante diferentes entre si, são simultaneamente verdadeiras, como aqueles quadros em que você vê uma imagem diferente dependendo da forma como você olha.

Mas hoje eu gostaria de explorar um pouco essa idéia da Torá como a história de um relacionamento. Vaykrah, ou Levítico, o terceiro livro da Torá que começamos a ler nas sinagogas há três semanas não é geralmente um daqueles em que prestamos muita atenção. Eu não lembro de ter aprendido suas histórias quando estava nas escolas judaicas aqui e mesmo no semiário rabínico as pessoas preferem focar nas histórias da criação do mundo ou da luta de Jacó com o anjo. Vaykrah, e os intermináveis detalhes dos sacrifícios animais, perderam um pouco da sua atratividade agora que não temos mais o Templo e não praticamos mais sacrifícios.

É aí que a leitura do Rabino Polen fica mais interessante.... para ele, os sacrifícios são apenas o mecanismo, mas o mais importante é o princípio de estabelecermos várias formas de mantermos vivo o nosso relacionamento com Deus, qualquer que seja a forma como entendamos Deus.

É exatamente isso que o primeiro capítulo de Vaykrah estabelece para a realidade bíblica: um sacrifício diário, pra manter a chama acesa, como as pequenas ações do dia-a-dia que fazemos para agradar alguém a quem amamos. Um sacrifício para ocasiões especiais, quando queremos celebrar algo que aconteceu ou simplesmente dizer um sincero “obrigado!”. Há também sacrifícios para pedir desculpas, tanto para situações nas quais nosso erro foi involuntário quanto para aquelas em que intencionalmente fizemos algo errado.

Pra ser bem sincero, eu tenho alguns receios sobre essa centralidade toda pros sacrifícios como forma de relacionamento com Deus. Primeiro, por que eu não quero nem imaginar o retorno à prática de sacrifícios animais. Mas esse, eu acho, é o receio mais fácil de se resolver: há dois mil anos o Judaísmo tem evoluído sem a prática de sacrifícios, e o entendimento é que agora temos outros mecanismos para nossa prática espiritual.

Meu segundo receio é sobre a falta de espontaneidade em um sistema no qual tudo está planejado e prescrito. Eu sempre fui fã de dar rosas vermelhas em momentos inesperados – eu cheguei a dar 10 dúzias pra minha esposa, quando a gente tinha só um vaso em casa. Cartões românticos quando ninguém imaginava. Declarações de amor no meio do supermercado, em meio às atividades mais prosaicas.

O famoso rabino e teólogo norte-americano, Abraham Joshua Heschel, falava da capacidade de ser “radically amazed”, “maravilhado ou radicalmente surpreendido” no nosso encontro com o mundo, e perceber a presença de Deus nestes momentos. Eu realmente acredito no encontro com Deus lá fora, no mundo, em circunstâncias que não são coreografadas. Mas onde está a possibilidade para ser espontâneo no relacionamento com Deus que Vaykrah estabelece?

Há alguns meses eu tive a minha fascinação pela espontaneidade desafiada. Eu estava liderando os serviços religiosos no meu seminário rabínico e uma das alunas pediu para falar por alguns minutos sobre a mãe dela, que tinha falecido exatamente cinco anos antes. A mãe tinha criado os dois filhos sozinha e parecia ter sido realmente uma pessoa muito especial. Mas o que mais me chamou atenção nas palavras que a minha colega dizia sobre a mãe foi: “nunca houve um dia em que ela não tenha me dito que me amava.”

Eu não tinha certeza se a minha filha podia dizer o mesmo sobre mim. Claro, eu fazia coisas que eram o reflexo do amor que eu sentia por ela, mas será que a mensagem era tão clara quanto se eu dissesse todo dia “eu te amo”? Então eu mudei, e hoje todo dia eu digo pra minha filha quanto eu a amo. O que eu perdi em espontaneidade eu ganhei, eu acho, em clareza na mensagem. E eu continuo, é claro, com as outras ações para que ela não apenas escute, mas sinta quanto eu a amo.

A parashá desta semana traz um pouquinho mais de complicação pra essa história. A cerimônia pra instalar Aarón como sumo-sacerdote termina com um grande sucesso: um fogo veio de Deus e consumiu tudo que tinha sido ofertado. Em seguida, dois dos filhos de Arón, Nadav e Avihu, resolveram ir além do que tinham sido instruídos, e fizeram (na linguagem da parashá) “uma oferta de fogo estranho para Deus.” Imediatamente, eles foram consumidos por um fogo que veio de Deus. A passagem é enigmática e os comentaristas nem sempre têm tido sucesso em interpretá-la. Tradicionalmente, é entendido que eles fizeram alguma coisa errada, talvez eles estivessem bêbados quando trouxeram a oferta, talvez as suas intenções não fossem puras, talvez eles fossem radicais fundamentalistas. A falta de clareza do texto têm permitido que os comentaristas sejam criativos nas suas explicações.

Talvez, eles estivessem literalmente brincando com fogo. Existe uma certa ironia poética no fato de que eles trouxeram “fogo estranho” para Deus e foram tragados pelo fogo.

Mas talvez.... só talvez.... eles tenham tido sucesso em sua oferta espontânea. Talvez Deus os consumiu como consumiu o sacrifício que tinha sido ofertado durante a instalação de Aaron como sumo-sacerdote, um sinal de que Deus aceitava a oferta. A verdade, é que eu não tenho certeza de como interpretar esta história, o que a faz ainda mais interessante pra mim.

Qual é o balanço entre estrutura e criatividade na nossa relação com Deus? E na nossa relação com as pessoas que amamos? E com o resto das nossas vidas?

Como nos entregamos? Quando estamos dispostos a dar de nós mesmos, de verdade, para o sucesso destes relacionamentos?

E, lembrando de Nadav e Avihu, eu me pergunto se há situações nas quais eu me entrego tão completamente a uma relação – com outras pessoas, com Deus, com meu trabalho – que esta entrega absoluta – ainda que bem sucedida - acaba me anulando, me destruindo, me consumindo completamente.

Material pra pensar no Shabbat... Shabbat Shalom!