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quinta-feira, 30 de março de 2023

Da palavras, símbolos e resistência


Vários anos atrás, fui visitar um templo religioso na região de Chicago, onde me assustei ao encontrar um desenho muito parecido com uma suástica encravado em suas paredes. Ao questionar a pessoa que guiava nossa visita pelo espaço, fui informado de que aquele desenho já era um símbolo religioso muito antes de ser apropriado pelos nazistas como a marca de seu partido. Ainda que eu compreendesse a lógica explicada pelo guia, era difícil entender como naquele edifício, cuja construção tinha sido completada em 1953, o significado mais difundido que aquele símbolo tinha ganhado no século XX, ofensivo como era a milhões de pessoas, não tivesse sido levado em conta para que ele não fosse adotado na decoração das paredes.


Assim como os símbolos gráficos, as palavras também podem ganhar vida própria, como bem atestam os poetas. Palavras são muitas vezes escolhidas em alguns contextos pelos duplos significados que possuem, levando a situações cômicas, ou são evitadas exatamente porque podem ter seu significado mal interpretado.


A parashá desta semana, Tsáv, retorna ao tema dos sacrifícios animais, seus contextos e regras. Um dos tipos de sacrifícios oferecidos a Deus era a “olá”, na qual um animal era inteiramente queimado no altar. A tradução adotada para este termo para o grego foi “holokauston”, um conceito que já era conhecido de religiões helenísticas e que significava queima (kaustos) completa (holos) e que foi traduzido para o português como “holocausto”. 


No final do século XIX, a palavra “holocausto” passou a ser usada pela imprensa norte-americana para designar massacres de imensas proporções, como o genocídio armênio de 1915-1917. Ao final da Segunda Guerra, quando a dimensão total das atrocidades nazistas começou a ser revelada, “Holocausto” (agora escrita com inicial maiúscula e muitas vezes precedida pelo artigo definido “O”) passou muitas vezes a designar o quase-extermínio da população judaica da Europa, com o assassinato brutal e sistemático de 6 milhões de pessoas.


Assim como eu me assustei ao encontrar uma suástica em um templo religioso, muitas pessoas se assustam ao encontrar o termo “holocausto” em uma tradução da Torá, em particular em referência a uma prática religiosa. O assassinato sistemático de seres humanos e o descarte de seus corpos em fornos crematórios é a antítese da busca de relacionamento com o Divino – de tal forma, que muitos são os que rejeitam o termo “holocausto” para tratar deste trágico evento da história mundial e judaica. Entre os termos sugeridos como alternativa, “Shoá”, um termo bíblico que significa “catástrofe” acabou se transformando no termo adotado preferencialmente no mundo judaico para tratar destes eventos.


Enquanto a Shoá ainda estava em curso, um grupo de jovens militantes dos movimentos juvenis judaico-sionistas lideraram um levante contra as forças nazistas que esvaziavam o Gueto de Varsóvia e enviavam seus residentes para Campos de Extermínio. Na véspera de Pessach de 1943, que neste ano cairá na próxima quarta-feira (05/04), quando as forças da SS entraram no Gueto, se viram atacadas por combatentes judeus, que foram capazes de manter o combate por quase dois meses, constituindo um imenso ato de resistência frente a um exército em muito maior número, melhor treinado e com armamentos muito mais poderosos. Ao comentar o significado do Levante, um dos seus líderes, Itschak Cukierman, afirmou: 


“Não creio que seja realmente necessário analisar a Revolta em termos militares. Esta foi uma guerra de menos de mil pessoas contra um poderoso exército e ninguém duvidou de como seria. Este não é um assunto para estudar na escola militar. (...) Se existe uma escola para estudar o espírito humano, este deveria ser um grande tema de estudo. As coisas importantes eram inerentes à força demonstrada pela juventude judaica após anos de degradação, para se levantar contra seus destruidores e determinar qual morte escolheriam: Treblinka ou Revolta.” [1]


Neste ano, em que o Levante do Gueto de Varsóvia comemora 80 anos, a CIP homenageará sua história no Cabalat Shabat de 28 de abril, com a presença do Coral Tradição, da Casa do Povo.


Que neste shabat, possamos recuperar a força das palavras, dos símbolos e o controle sobre as nossas próprias histórias, valorizar a vida e a resistência em sua defesa. 


Shabat Shalom.



[1] http://bit.ly/3KkxwOO



sexta-feira, 18 de março de 2022

Dvar Torá: Sacrifícios e sacerdotes continuam relevantes? (CIP)


Na semana passada, trazendo meu filho da escola para casa, eu comecei a puxar conversa no carro sobre a prova que ele teria no dia seguinte. “Qual a matéria da prova?”, eu perguntei. “Pois é…” começou a resposta. “A prova é de português e tem uma parte da matéria que eu não entendi ainda”, e ele continuou: “Eu não consegui entender qual a diferença entre fonemas e dígrafos.”

Confesso que eu não me lembro de ter estudado fonemas e dígrafos quando tinha a idade dele mas, de qualquer forma, eu tampouco sabia o que estes conceitos eram. Nada como uma busca no Google para elucidá-los e poder explicar para a pobre criança desesperada.

Mas logo na sequência veio a pergunta que todo pai de filhos em idade escolar escuta, no mínimo, um milhão de vezes: “pai, pra que eu preciso aprender isso?!?! Que diferença isso vai fazer na minha vida?!?!”
Implícito nesta pergunta está a crença de que os conceitos que aprendemos na escola precisam ter utilidade neles mesmos, alguma aplicação prática que justifique gastarmos horas de aula, noites de sono e litros de café tentando entendê-los.

Um dia, eu também pensei assim, talvez fosse até um ativista por uma reforma curricular ampla que eliminasse os conceitos inúteis e focasse mais naquilo que realmente precisávamos saber. Na época, eu era representante dos alunos no Conselho do Departamento de Ciência da Computação da USP e protestava pela substituição de várias disciplinas teóricas por outras mais práticas e aplicáveis ao mercado de trabalho. Quem me mostrou como eu estava errado foi o professor Valdemar Setzer, que argumentava que a função da universidade era abrir nossas mentes, nos ajudar a pensar de distintas maneiras, conceber abordagens inusitadas para problemas que nem tinham sido formulados ainda. Esta era a verdadeira função das disciplinas teóricas que precisávamos cursar: desenvolver nosso raciocínio para que pudéssemos resolver novos problemas quando chegasse a hora. Para nos ensinar uma nova linguagem de programação, nossos futuros empregadores seriam bem melhores do que a universidade.

A parashá desta semana é uma daquelas sobre as quais meu filho perguntaria: “pai, por que precisamos aprender isso?!” A maior parte da parashá trata da oferta de sacrifícios animais, uma prática que o judaísmo rabínico abandonou há quase dois mil anos, especialmente pela classe dos kohanim, os sacerdotes no Templo, uma espécie de casta hereditária judaica que o mundo judaico liberal também, em grande parte, rejeitou.

E, mesmo assim, como eu aprendi com o professor Valdemar Setzer, é nessas passagens sem aplicação prática direta que, muitas vezes, encontramos os significados mais relevantes para nossa situação.

A ideia de sacrifício se, por um lado parece anacrônica, de outro, nunca foi tão relevante. Vivemos na época das liberdades, tema sobre o qual vamos conversar, por sinal, com o Dan Stuhlbach e o Eduardo Gianneti. Em particular, vivemos na época das liberdades individuais. Outro dia, o debate era se tínhamos liberdade para expressar ideais antissemitas ou preconceituosos contra outro grupos. Há o debate sobre o direito de portar armas em qualquer espaço. Há o debate sobre a liberdade de quem adota comportamentos arriscados, mesmo que isso coloque outros em risco ou que imponha ao coletivo arcar com as consequências destes comportamentos. Em tempos de direitos individuais, quais seriam os direitos do coletivo? Quem sacrifícios — este conceito tão presente no livro de Vaicrá e tão estranho aos nossos ouvidos contemporâneos — que sacrifícios estaríamos dispostos a fazer para o bem comum? De que forma, precisamos equilibrar  o conceito de liberdade com a noção de responsabilidade?!

Na Torá, oferecer um sacrifício não era algo fácil. Eram escolhidos os melhores animais, produtos agrícolas e alimentos. Em uma época em que a escassez era a norma, levar estes melhores produtos para que fossem oferecidos em sacrifício, implicava abrir mão de produtos valiosos, que fariam falta — mas a recompensa comunitária justificava estes atos. E, hoje, de que parte cara das nossas liberdades estaríamos dispostos a sacrificar por um benefício maior do coletivo?

Um outro aspecto que dá relevância aos sacrifícios dos cohanim, dos sacerdotes, é a própria ideia do sacerdócio. Em tempos bíblicos, eles eram — juntos com os levitas — os exemplos paradigmáticos de pessoas que dedicavam a vida a servir a comunidade e parte das ofertas em sacrifício eram destinadas ao usufruto deles. A discussão sobre o comportamento ético de nossos líderes em cargo de liderança também se aplica a realidade contemporânea. De acordo com Avraham Burg:
Qualquer um que não fizesse parte do establishment do Templo em Jerusalém compreendia que os sacrifícios equivaliam a um imposto com comissões para os que faziam parte do esquema, os sacerdotes e os burocratas do santuário, que freqüentemente tinham muito pouco a ver com santidade. A crítica profética e a crítica posterior dos sábios, surgiram contra a tendência de fazer do sacrifício um fim em si mesmo, a uma tecnologia de fé que vem no lugar de um genuíno sentimento religioso de obrigação espiritual e ética. [1]
Vivemos tempos turbulentos com relação às lideranças da nossa sociedade. A busca do poder pelo poder, por motivos escusos e  para o engrandecimento do próprio nome caracteriza muito mais líderes do que conseguimos contar. Há uma guerra — talvez mais de uma, na verdade — em curso no qual o único objetivo parece ser estabelecer o nome do líder agressor no panteão de grandes líderes do seu país. Uma lista que inclui outros opressores cujos nomes ficaram marcados para sempre na infame lista dos piores ditadores da história. 

Por aqui, no Brasil de 2022, a discussão das necessidades públicas parece ser sempre suplantada pelos interesses políticos imediatistas e pela pergunta “o que eu ganho com isso?!” Desapontados, muitas vezes abandonamos nossos próprios ideais e partimos também para uma defesa dos nossos próprios interesses, sem generosidade pela necessidade dos outros e sem a disposição de fazer sacrifícios.

Os rabinos Dov Ber ben Avraham de Mezeritch e Menachem Nachum Twersky, dois dos primeiros mestres do movimento chassídico, escreveram a respeito do verso inicial da parashá, que diz: “Adonai falou a Moshé, dizendo: ordene isto a Aharón e a seus filhos, esta é a Torá da Elevação.” Em seus comentários, eles trouxeram passagens rabínicas que comparam o estudo da Torá à oferta de todos os sacrifícios [2]. Que neste shabat possamos nos encontrar verdadeiramente com nossos textos e buscar neles relevância para os dilemas que enfrentamos hoje e agora.

Shabat Shalom!


[1] Avraham Burg, “Very Near to You”, p. 221.
[2] B Menachot 110a