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sexta-feira, 20 de maio de 2022

Dvar Torá: O Judaísmo Fora da Caverna (CIP)


Pois, é…. quem diria?! Já estamos no dia 35 da contagem do Omer! Mas o que é, afinal de contas, a contagem do Omer???

Esta semana eu estava dando uma aula sobre a contagem do Omer e nós começamos a contar as camadas históricas que iam se acumulando na minha explicação, quase sem que eu me desse conta…

A contagem do Omer é um período de 49 dias que vai do 2º dia de Pessach até a véspera de Shavuot. Em tempos bíblicos, era um período agrícola que correspondia à colheita dos grãos. Por isso, em cada dia deste período era oferecido uma quantidade de cevada em sacrifício a Deus. Essa quantidade, um pouco mais de 3,5 litros [1], era chamada de Omer, daí o nome do período. Então, nesta época, o período do Omer estava associado à colheita dos grãos.

Mas a época em que a colheita acontecia: entre Pessach — a festa da libertação de Mitsrayim — e Shavuot — a festa que os rabinos associaram à entrega da Torá no Monte Sinai — deu um significado adicional a este período. Recém libertados da servidão mas sem terem ainda encontrado o Divino no Monte Sinai e recebido a Torá, os hebreus viviam um período de alegria, de expectativa, de incertezas, até de medo. Eu fiquei pensando bastante este ano no que seria o equivalente moderno deste período e o melhor que consegui chegar foi a gravidez — já sabendo que há um bebê caminho e torcendo para que tudo dê certo, mas sem ter certeza de como o processo irá se desenvolver, novos pais passam por muitas destas mesmas emoções: excitação, expectativa, ansiedade e medo.

Perto de 14 séculos depois da saída de Mistrayim, uma nova camada histórica adiciona contexto ao significado da contagem do Omer hoje em dia. Por volta do ano 135 E.C. e, de acordo com o Talmud, 24 mil alunos de Rabi Akiva faleceram por não se tratarem com respeito. A leitura tradicional deste episódio é que uma praga acometeu os discípulos de rabi Akiva mas desde o século 19 e, em particular a partir do Movimento Sionista, ganhou força o entendimento de que os discípulos de rabi Akiva estavam envolvidos na revolta de Bar Kochba contra os romanos e que a morte deles está associada à forma brutal como as tropas romanas responderam à revolta. De acordo com algumas versões, as mortes terminaram no 33º dia do Omer; de acordo com outras versões, elas foram interrompidas no 33º dia, mas recomeçaram na sequência e continuaram até o 49º dia da contagem. Por causa da perda de vidas e de tradições judaicas representas pela morte de 24.000 estudiosos da Torá, foi determinado que o Omer fosse um período de semi-luto, no qual não realizamos celebrações — exceto pelo 33º dia, que nós chamamos de LaG baOmer [2]. Se hoje acabamos de entrar no 35º dia da contagem, fica claro que 5ª feira foi LaG baOmer.

Uma outra camada histórica desta data chega depois de outros 14 séculos. No século 16, na cidade de Tsfat, o rabino Itschac Luria determinou que LaG baOmer era o aniversário do falecimento de Rabi Shim’on Bar Iochai, que é tradicionalmente entendido como o autor do Zohar, a obra fundamental da Cabalá, o misticismo judaico.

Aqui começam as brincadeiras com o hebraico e como elas levaram às principais tradições de LaG baOmer. Zohar, em hebraico, significa “brilho” e daí veio a tradição de comemorar a vida de Rashbi dançando ao redor da luz da fogueira. Além disso, conta a lenda que durante sua vida nunca houve um arco-íris no céu — arco íris em hebraico é keshet; o arco de arco e flecha também é keshet. Então, brinca-se com arco e flecha ao redor da fogueira.

Quando o período do Omer passou a ser associado à revolta de Bar Kochbá, a tradição de dançar com arco e flecha ao redor da fogueira ganhou ares de acampamento militar na luta contra a opressão romana, mas esta não é necessariamente a origem destes costumes.

Rabi Shim’on Bar Iochai pertencia à geração de discípulos de rabi Akiva que foram treinados após a morte dos 24.000 alunos. De acordo com o Talmud [3], Rashbi tinha ofendido as autoridades romanas e, por isso, ele e seu filho tiveram sua morte decretada. Primeiro, eles se esconderam no Beit Midrash, a Academia Rabínica. Depois, com medo de que as autoridades os descobrissem lá, encontraram uma caverna e lá se esconderam. Um milagre garantiu que uma árvore de alfarroba crescesse na entrada da caverna, garantindo sobra, comida e bebida para pai e filho. Depois de doze anos escondidos na caverna, estudando Torá e crescendo em conhecimento e espiritualidade, eles receberam o recado de que o imperador havia morrido e o decreto de morte contra eles cancelado.

Rashbi e seu filho saíram da caverna e viram uma pessoa semeando e plantando. O pai disse, em tom de reprovação: “estas pessoas abandonam a vida eterna e se engajam com a vida no seu momento.” De acordo com o Talmud [4], todo lugar ao qual eles direcionavam seu olhar pegava fogo. Uma voz Divina lhes disse: “vocês saíram da caverna para destruir o Meu mundo?!? Voltem para a caverna!” Eles voltaram e ficaram lá mais 12 meses até que foram novamente autorizados a sair.

Para Rabi Shimon bar Iochai e seu filho, rabi Elazar, tudo que importava era o conhecimento e o seu próprio crescimento espiritual. Eles tratavam com desdém as atividades concretas neste mundo: o plantar e semear e colher e preparar o solo, o construir pontes e trocar fraldas e preparar o jantar e distribuir comida e cobertores e abraços e sorrisos a moradores de rua. Para eles, nada disso importava porque eles não conseguiam perceber a profunda transformação espiritual que pode vir destes atos cotidianos; para eles não era claro como muitas destas ações despertam a chama divina que brilha em cada um de nós. 

Pessoalmente, eu sou um apaixonado pelos rituais judaicos — só para falar dos rituais de 6ª feira: eu me emociono com as melodias e adoro repartir com meus filhos a chalá de chocolate quentinha depois de tê-los abençoado, um ritual que eles adoram e no qual insistem em me abençoar também. Eu vejo muita gente na nossa comunidade encontrando abrigo e acolhimento nestes momentos rituais e, como rabino, eu procuro propiciar e encorajar que eles aconteçam.

E, ao mesmo tempo, para mim é claro que o judaísmo, seus rituais, valores e tradições, tem que servir como uma lente através da qual nos relacionamos com o mundo, como interagimos com ele, nunca como um muro que nos separe do mundo. Na história de Shimon Bar Iochai, o Divino reconheceu que um engrandecimento espiritual que venha através do desprezo pelo mundo não tem espaço, tem que voltar para a caverna. Ou nas palavras do rabino e ativista Abraham Joshua Heschel, “Você não pode adorar Deus e depois olhar para um ser humano, criado por Deus à Sua própria imagem, como se ele ou ela fosse um cavalo”. [5]

Neste ano, LaG baOmer caiu na noite historicamente mais fria de maio em todos os registros da cidade de São Paulo. Quem anda pelas ruas não consegue deixar de se impressionar com a crescente quantidade de pessoas vivendo nas calçadas. Famílias inteiras que vivem nas ruas desprotegidas, desidratando sob o calor do verão, encharcadas nos temporais que esta cidade conhece tão bem, desesperadas no frio quando é ele que chega. De acordo com a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social da Prefeitura de São Paulo (SMADS), o número de pessoas vivendo nas ruas de São Paulo aumentou 31% entre 2019 e 2021, chegando a cerca de  32.000 pessoas. [6]

Levar a tradição judaica a sério tem que, de alguma forma, implicar levar também esta situação a sério. É agir para transformá-la oferecendo soluções emergenciais frente à fome, ao frio e às doenças e também soluções estruturais que garantam que os cidadãos das nossas cidades possam viver com dignidade, com um teto sobre suas cabeças, comida nas suas mesas e um futuro para o qual almejar.

A CIP tem diversas iniciativas focadas neste universo. O Lar das Crianças atende quase 500 crianças e suas famílias em situação de vulnerabilidade social; grupos da área de jovens adultos, o MOV 20:35 têm projetos que lidam diretamente como a dignidade de moradores de rua e um cursinho popular que oferece oportunidades a jovens que não tiveram o privilégio de cursar escolas particulares de também sonharem e construírem seu futuro. Outras iniciativas da comunidade judaica tem ajudado os segmentos mais vulneráveis da nossa sociedade. A Unibes está em campanha pelo Inverno Solidário; a FISESP sempre organiza a campanha do agasalho; o Ten Yad oferece refeições a pessoas de baixa renda.

Procure uma forma de participar você também. Se sensibilize, quando andar pelas ruas, não vire o olhar quando passar por alguém vivendo na calçada. Muitas vezes, um sorriso e o reconhecimento da dignidade daquela pessoa contam quase tanto quanto um prato de comida quente.

O judaísmo nos ensina a buscar nosso crescimento espiritual e também a plantar e semear. Esses são os dias em que o mundo grita pela nossa participação — e é nosso dever escutar seu chamado e não voltar para a caverna.

Shabat Shalom



[3] Talmud Bavli Shabat 33b -34a
[4] Talmud Bavli Shabat 33b
[5] https://voicesofdemocracy.umd.edu/heschel-religion-and-race-speech-text/
[6] https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2022-01/populacao-de-rua-cresceu-31-em-dois-anos-indica-censo


sexta-feira, 30 de abril de 2021

Dvar Torá: A volta pra caverna e a busca por um judaísmo contemporâneo (CIP)


Sabe aquela história do “faço o que eu digo mas não faça o que eu faço”?! Quem nunca?! Quem nunca cometeu uma pequena hipocrisia dessas, de dar um conselho de acordo com o que acredita que seja a atitude correta mas se permitiu desviar deste caminho na sua conduta pessoal? Eu sei que eu faço isso com alguma frequência, mas desde que não venha de um lugar de julgamento e maldade, também não acho que seja a pior coisa do mundo…

Um destes meus pecados, de dizer uma coisa e fazer outra, é o jurar não gostar das mídias sociais e viver encontrando assuntos para as prédicas de postagens de facebook. Desta vez, foi em um grupo de educadores judaicos, em que um rabino ortodoxo postou o seguinte comentário na semana passada: 

Amigos - revirei os olhos enquanto ouvi um aluno [meu] descrever Ticún Olam como uma mitzvá. Revirei os olhos porque estou muito ciente e muito preocupado de que a educação judaica tenha sido, essencialmente, enrolada na vaga plataforma liberal americana sob a bandeira mitzvah de "Ticún olam". Preocupado porque, sério… É isso? Será que nossa tradição de 4.000 anos pode realmente ser tão vigorosamente resumida pelas nossas ações em defesa do meio ambiente, na resposta a George Floyd? Isso é tudo?
Então desvirei meus olhos e vi claramente que, para nossa juventude, a crise climática, o racismo (…) e as questões de justiça são 1000% mais reais e mais urgentes do que questões sobre se uma mulher deve contar no minián ou nas nuances da akedá, o episódio da Torá que descreve o quase-sacrifício de Itscahk . E é claro que as pessoas vão se importar com o que é real para elas. E todo esse aperto de pérolas sobre como todas as 613 [mitsvot] foram substituídos por Ticún Olam são, na verdade, apenas os gemidos de um representante de um sistema e abordagem que estão ameaçados de irrelevância ou extinção. "Seu velho mundo está envelhecendo rapidamente. Portanto, saia do novo se não puder dar uma mão."

E eu quero saber: as coisas antigas são realmente relevantes? Por quê? Exatamente por quê? Como? E como as escolas podem tirar a poeira de seu antigo judaísmo e realmente focalizá-lo nas coisas que realmente importam para os alunos reais? Ou pelo menos torná-lo relevante?

Como um pequeno exemplo disso, existe uma maneira de ensinar a tefilá, a reza, não como um momento incômodo e irritante [em que alguém tenha que se certificar os meninos estão de kipá] e que ninguém está usando o celular [escondido], mas na verdade como uma força poderosa para mudar o mundo que [vemos] caindo aos pedaços? Pelo menos mudando a nós mesmos? E se não, podemos parar de fazer nossos alunos rezarem para, [no lugar,] talvez ir recolher algum lixo? Ou a reza é importante no processo de ajudar as crianças a ver seu mundo e ver seu papel nele, ou ela é um dinossauro do velho mundo, reforçando continuamente a narrativa de que o judaísmo é irrelevante e que não [podemos] nos preocupar com o clima e a justiça porque temos assuntos mais importantes? Como o mundo vindouro?

Nossa, gente. Socorro!!!!
Este não é um novo desafio. O rabino Abraham Joshua Heschel escreveu algo semelhante há mais de 60 anos e que, desde que eu li pela primeira vez, tem me inspirado na busca por um judaísmo de significado:
“Quando a fé é completamente substituída pelo credo
a adoração pela doutrina, 
o amor pelo hábito; 
quando a crise de hoje é ignorada por causa do esplendor do passado; 
quando a fé se torna uma herança em vez de uma fonte viva; 
quando a religião fala apenas em nome da autoridade e não em nome da compaixão 
então, sua mensagem se torna sem sentido. ” [1]
Podemos voltar ainda mais no tempo e perceber que a busca por um judaísmo de significado nas nossas vidas, que possa de fato ser uma tradição viva, que dialogue com os dilemas que vivemos em 2021 e não negue o encontro com o desconforto da nossa realidade na busca de uma espiritualidade pura, aparece também em uma das histórias mais famosas de LaG baOmer.

Em LaG baOmer, acredita-se faleceu o rabino Shimon bar Yochai, uma figura especialmente iluminada que, de acordo com um mito, foi o redator do Zohar, uma das obras centrais da Kabalá, uma expressão mística judaica.

Diz a lenda no Talmud [2] que Shimon bar Yochai foi condenado à morte pelas autoridades romanas por tê-las criticado. Ele e seu filho, Elazar, após buscarem refúgio no Beit Midrash por algum tempo, foram se esconder em uma caverna. Por milagre, uma árvore de alfarroba nasceu sobre a caverna e lhes dava comida; e uma fonte de água apareceu e lhes dava água. Todo dia, eles tiravam sua roupa e se enterravam até o pescoço na areia e, assim, eles passavam todo o dia estudando. Quando chegava a hora, eles saíam da areia, se vestiam, e rezavam para, logo em seguida, voltar a se enterrar, nús, na areia. Assim, eles garantiam que suas roupas não se gastassem… Assim eles viveram por 12 anos. O profeta Eliahu se colocou na entrada da caverna e disse “que informará Shimon bar Iochai que o imperador morreu e seu decreto foi revogado?!”. Shimon e Elazar saíram da caverna e viram pessoas semeando e arando a terra. Shimon bar Iochai disse: “como estas pessoas podem abandonar uma vida de eterno estudo da Torá e desperdiçá-la com questões terrenas?!” Todo lugar para o qual Shimon bar Iochai direcionava sua vista queimava imediatamente. Uma voz Divina apareceu e lhe disse: “Você saiu da caverna para destruir o Meu mundo?! Volte para a caverna!”

Como disse Heschel, quando o Judaísmo fecha seus olhos para as dores do presente para se dedicar exclusivamente a guardar as jóias do passado, perdemos nossa função no mundo. Quando o desempenhar funções religiosas fala mais alto que a necessidade de preservação da vida, perdemos nossa mensagem e o sentido destas funções. Quando, em troca de manter vivo o judaísmo, estamos dispostos a abrir mão da nossa humanidade, não reconheço mais esse judaísmo.

A observância judaica e o comprometimento com o mundo não precisam ser mutuamente excludentes. A textura que o calendário judaico dá à nossa experiência do tempo, a forma como as práticas religiosas judaicas permitem que abramos nossos olhos para questões que nem sabíamos que existiam, a abordagem crítica que o estudo de textos judaicos desenvolve em cada de nós, a força que a comunidade judaica tem quando se une em torno de um objetivo comum — todos estes fatores devem nos levar a estarmos mais conectados com o mundo que nos cerca.

Deus mandou Shimon bar Iochai de volta para a caverna estudar um pouco mais porque, seu desdém pelo cuidado com o mundo e com a humanidade revelados nas ações do agricultor demonstravam que, apesar dos 12 anos que ele tinha passado estudando na caverna, ele não tinha aprendido os pilares centrais do judaísmo.

Que cada um de nós consiga encontrar seu próprio equilíbrio — valorizando a tradição judaica e lhe dando um papel de destaque nas suas práticas cotidianas e que, através delas, estejamos cada vez mais comprometidos com a construção de um mundo mais justo, mais igual, mais saudável para todos.

Shabat Shalom

[1] Abraham Joshua Heschel, God in Search of Man, p. 3.
[2] Talmud Bavli Shabat 33b