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sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Dvar Torá: Expandido nossa perspectiva da Torá (CIP)


Quando eu morava em Israel, e lá se vão mais de 20 anos, havia um jogo mental que os israelenses gostavam de jogar: dividir qualquer coisa em três partes. Esta cerimônia de Cabalat Shabat, por exemplo: tem as rezas que vem antes da prédica, a própria prédica e a conclusão do serviço após a prédica. A nossa sucá, onde em breve o Schinazi fará o kidush, pode ser dividida na base, o schach, sua cobertura, e a decoração. Uma bola de futebol pode ser dividida na superfície interna, a superfície externa e o ar interior. Esta ideia de dividir coisas em um número fixo de partes é tão divertida quando superficial em suas análises.

Mas vamos tentar mais uma vez: quando éramos colegas de classe no seminário rabínico, um amigo querido, o rabino Dan Mikelberg, dizia que havia dois tipos de judeus: o que comemoram Sucot e os que não comemoram Sucot. A ideia dele é que Sucot é das poucas festas judaicas que não falam de perseguição, em que os judeus não são vítimas. É uma festa na qual uma das obrigações religiosas é nos alegrarmos, é passarmos este tempo felizes, buscando formas divertidas de nos engajarmos com a tradição judaica. E, mesmo assim, a verdade é que muitos de nós estaríamos no grupo de judeus que não comemora Sucot.  Por que será?

Temos alguns bons motivos para dar como desculpa: a overdose de judaísmo em Rosh haShaná e Iom Kipur nos deixou sem forças para mais uma maratona de 9 dias de feriados judaicos, se incluirmos Shmini Atseret e Simchát Torá; não temos área em casa ou no prédio onde possamos construir uma sucá; faz frio, chove, quem de verdade é maluco de fazer suas refeições em uma cabana em que o telhado deixa passar água em pleno início de primavera em São Paulo?!?!

A verdade é que apesar de todas boas, estas são DESCULPAS que não explicam realmente porque Sucot não se tornou um campeão de audiências como Rosh haShaná, Iom Kipur, Pessach e até mesmo o serviço semanal de Cabalat Shabat.

Eu queria começar a pensar nesse assunto vindo da direção oposta: que papel você diria que o judaísmo tem na sua vida? Dito de outra forma: quando o serviço de Cabalat Shabat termina e você desliga a transmissão (ou vai pra casa se vc estiver aqui na sinagoga), o judaísmo continua atuando como uma fonte permanente de práticas, valores e abordagens ou fica adormecido até a 6a feira seguinte, quando volta a ser relevante na tua vida?

Eu costumo dizer que a educação judaica que eu recebi nos anos 70 e 80 me mostraram uma frestinha do judaísmo, uma pequena fração que me foi apresentada como se fosse o todo. Apresentado àquela versão limitada da cultura judaica, na qual eu não conseguia verdadeiramente me enxergar, minha resposta foi não dar papel algum ao judaísmo — não nos alimentos que eu comia, não nas roupas que eu vestia, não nos valores pelos quais eu vivia, não nos assuntos que eu decidia estudar ou nas causas para as quais eu me voluntariava.

Muitos anos depois, vivendo em Israel, eu descobri que a frestinha que tinham me apresentado não era o judaísmo inteiro!!! Havia um mar inteiro além daquela fresta, um universo no qual eu passei a me deliciar, a me enxergar e encontrar relevância nos mais amplos aspectos da minha vida. Foi neste segundo momento em que eu consegui enxergar em Sucot oportunidades de conexões — oportunidades de pensar nas formas em que  minha vida é cheia de vulnerabilidades (como a Sucá que é instável e vulnerável); na responsabilidade que eu tenho para com quem vive em situação de profunda vulnerabilidade o ano inteiro; no desafio de encontrarmos forças para nos alegrarmos vivendo em um mundo frágil e quebrado.

Muitos de nós, educados em um judaísmo limitado, adoramos falar em  uma vida guiada por “valores judaicos” sem sermos capazes de encher os dedos das duas mãos com quais seriam estes valores. Vivemos uma crise no relacionamento com o judaísmo, incapazes de darmos os passos necessários para superá-la.

Na parashá desta semana, temos algumas das cenas mais íntimas da Torá. Abalados pelo episódio do Bezerro de Ouro, Deus e Moshé buscam a reconciliação. Animado pela intimidade da conversa, Moshé pede a Deus que lhe mostre Sua face. Deus nega o pedido, mas diz a Moshé que passará na sua frente enquanto cobria os olhos de Moshé; depois de passar, Deus permitirá a Moshé enxergar novamente para que possa ver suas costas. [1]

Entenda esta passagem de forma literal ou de forma metafórica, mas a intimidade é incontestável. Deus ainda propõe a Moshé que esculpa duas novas Tábuas da Lei para o projeto conjunto humano-Divino de restituir as tábuas que Moshé havia quebrado.

Será que na nossa própria relação com Deus e com a tradição judaica é possível atingirmos um novo momento de intimidade e reconciliação como esta sobre a qual leremos amanhã?

Daqui a alguns dias, em Simchat Torá, terminaremos de ler a Torá com parashat veZot haBrachá. Nela, no começo de um poema-benção que Moshé dedica aos hebreus, ele afirma: “תורה ציוה לנו משה, מורשה קהילת יעקב”, “Moshé nos ordenou a Torá, uma herança para a comunidade de Iaacov”. [2].

Os comentaristas, ao longo do século discutiram qual o papel desta “Torá” que Moshé nos ordenou. O Baal Shem Tov, fundador do judaísmo chassídico, afirmou que “o objetivo de toda a Torá é que cada pessoa se transforme em uma Torá” — ou seja: que todas as nossas ações, das mais prosaicas às mais complexas; do amarrar o sapato ao desenvolver estratégias financeiras, deveriam ser exemplos do nosso comprometimento judaico. A benção que fazemos ao estudar a Torá: ברוך אתה ה׳ אלהינו מלך העולם אשר קדשנו בנמצוותיו וציוונו לעסוק בדברי תורה, Você é abençoado, ה׳, Soberano do Universo, que nos santificou com as Suas Mitsvot e nos instruiu a nos ocuparmos com as palavras da Torá, é evidência disso. A Torá não é algo sobre a qual filosofamos ou sobre a qual falamos apenas na teoria. A Torá, e aqui a intenção é toda a tradição judaica, tem a chance de ser a guia mestra pela qual vivemos todos os momentos.

Será que conseguimos renovar a relação de cada um de nós com a tradição judaica, desenvolvendo-a com criatividade, conhecimento, engajamento e paixão?

Este é meu desafio para cada um de nós neste 5782 e neste novo ciclo de leitura da Torá que se inicia no meio da semana!

Chag Sameach! Shabat Shalom!


[1]  Ex. 33:12-34:10
[2]  Deut 33:4