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quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

O direito de esquecer e de ser esquecido e a responsabilidade de lembrar

Nossa memória tem a capacidade interessante de suavizar os sobressaltos pelos quais passamos ao longo de nossas vidas. Como se fosse uma lixa potente tratando de alisar a textura de um móvel áspero, vamos, ao longo dos anos, lembrando de versões mais amenas de conflitos, aumentando os papéis que tiveram as pessoas que amamos, diminuindo nossas próprias falhas. É uma ferramenta importante para que consigamos continuar vivendo depois de termos passado por episódios especialmente difíceis — na sua falta, continuaríamos recordando traumas, remoendo mágoas, vivendo no arrependimento. Tal qual uma obra literária ou um filme “baseados em fatos reais”, nossa memória mantém um pé naquilo que realmente aconteceu, mas com o outro busca aliviar o ônus de vivermos permanentemente com essas lembranças.

De um tempo para cá, no entanto, essa característica da nossa memória tem sido dificultada pela quantidade de registros que vamos deixando das nossas experiências e interações. De que adianta a memória suavizar um conflito se basta uma visita às mensagens do aplicativo para nos lembrarmos exatamente da dor que tínhamos sentido? Quando cometemos um deslize, os registros nas redes sociais não permitem que nossa memória o registre em tons mais suaves do que tinha originalmente. Tudo que escrevemos, fotografamos e filmamos está indexado pelas ferramentas de busca e a um clique de distância de quem procura saber quem somos, ainda que já não sejamos a mesma pessoa que produziu ou aparece nessas peças. Não só para presidentes que o pedido “esqueçam o que escrevi” já não é mais possível — tudo o que escrevemos, seja um artigo ou um status, se torna permanente. 

Quem consegue viver com a responsabilidade perpétua por cada ato desatento? Quem consegue sustentar relacionamentos cujas falhas sempre voltam a nos revisitar como fantasmas?

O shabat desta semana é chamado “Shabat Zachor”, “o shabat em que você é orientado a se lembrar”. Uma das passagens da Torá que leremos neste sábado começa com a instrução “Lembre-se do que Amalek fez com você em sua jornada, depois que você deixou o Egito — como, sem se deixar abater pelo temor de Deus, ele o surpreendeu na marcha, quando você estava faminto e cansado, e matou todos os retardatários em sua retaguarda” e termina ordenando “Portanto, quando Adonai teu Deus te der a segurança de todos os teus inimigos ao teu redor, na terra que o Adonai teu Deus te dá por herança, apague a memória de Amalek de debaixo do céu. Não se esqueça!” [1] A tensão entre a lembrança e o esquecimento fica evidente nessas linhas. Aqui, trata-se da memória de um ato que se cristalizou na tradição judaica como a expressão paradigmática da covardia e do mal. Nessas situações, nas quais o trauma de quem as viveu é evidente, onde fica a nossa conduta: será que nos esforçamos para lembrar e garantir que ações similares nunca mais aconteçam ou garantimos que as esqueçamos, poupando as vítimas de reviver aqueles momentos terríveis?

Como em tantos outros assuntos, não há respostas absolutas que contemplem todas as situações. Em um mundo que registra cada vez mais detalhes do que falamos, do que fazemos, para onde vamos, a sedução de momentos em que possamos de fato esquecer e sermos esquecidos, é tentadora. De outro lado, há a obrigação ética de lembrar para que aprendamos das nossas experiências, garantindo que — individual e socialmente — não caiamos sempre nas mesmas armadilhas. 

Que do encontro do nosso direito ao esquecimento com nossa responsabilidade por lembrar consigamos construir situações em que possamos crescer sem carregar permanentemente o peso do mundo e das nossas memórias nas nossas costas.

Shabat Shalom,


[1] Deut. 25:17-19


sexta-feira, 6 de março de 2020

Sendo responsáveis pelo que lembramos e pelo que esquecemos

Três textos que lemos neste shabat nos convidam a pensar sobre memória, a concepção que temos de nós mesmos e sobre responsabilidade. Este é o shabat que precede Purim e que recebe um nome especial: Shabat Zachor, ou o “Shabat em que você deve se lembrar”. O nome vem do maftir, uma passagem que lemos ao final da leitura da Torá de sábado, que começa com Zachor (“lembre-se”) e termina com “não esqueça” e que faz referência à atitude de Amalek, que atacou os hebreus após a saída do Egito, quando eles estavam vulneráveis, cansados e famintos. Por essa ação, Amalek tornou-se na tradição judaica referência ao mal absoluto, à agressão injustificada e desmedida, a ataques sem nenhuma consideração pela moral ou pela ética. A passagem termina dizendo: ”você deve apagar a memória de Amalek de debaixo do céu. Não esqueça!”

O que escolhemos lembrar e do que escolhemos nos esquecer? Em particular, ao pensarmos na história judaica: nos lembramos dos momentos em que, vulneráveis, fomos massacrados ou daqueles em que, detendo o poder, tivemos a obrigação de apresentarmos um comportamento exemplar, incluindo a proteção aos segmentos mais fragilizados das nossas sociedades?

Esse debate está presente também em muitos comentários para as primeiras linhas da parashá desta semana: “instrua os israelitas a trazerem óleo claro de azeitonas batidas para iluminação, para acender uma ner tamid (chama eterna)”. Muitos foram os comentaristas que interpretaram que o “óleo claro de azeitonas batidas” é uma referência ao sofrimento judaico ao redor dos séculos e os múltiplos episódios nos quais fomos massacrados. Outros comentaristas, no entanto, focaram suas interpretações no estabelecimento de uma ner tamid (chama eterna) através das nossas ações, nos orientando a ter um comportamento que ajude o mundo a se encher de luz, especialmente em seus momentos mais sombrios.

A história do encontro com Amalek tem continuação na haftará (leitura dos livros dos Profetas) desta semana, que trata de um dos episódios mais difíceis de todo o Tanach. Nele, o profeta Shmuel instrui o rei Shaul a destruir todo o povo de Amalek: homens, crianças, bebês e animais sem distinção. Essa passagem sempre me deixou profundamente incomodado, pois me parece que o profeta está instruindo o rei a agir de acordo com as piores práticas do nosso oponente: a matar de forma indiscriminada, inclusive aqueles que são extremamente vulneráveis e indefesos.

O rei Shaul não cumpre a instrução de forma integral, poupando a vida do rei de Amalek e dos melhores animais para serem oferecidos como sacrifício a Deus. De acordo com Shmuel, por não ter seguido Suas instruções, Deus o rejeita como rei. Pensando nos exemplos de Avraham e de Moshé, que tiveram a ousadia de debater com Deus quando as ordens que recebiam lhe pareciam afrontar a própria ética que Deus transmitia, eu prefiro imaginar que a rejeição de Shaul como rei não foi causada por ele ter poupado a vida do rei de Amalek ou de alguns animais, mas por ele ter aceitado sem questionamento a instrução de destruir todo um povo.

Em múltiplas passagens, a tradição judaica nos instrui que, ao conquistarmos a terra de Israel, devemos ter especial cuidado para proteger a viúva, o órfão e o estrangeiro, pois fomos estrangeiros na terra do Egito. Assim, somos alertados a não esquecermos nosso sofrimento quando nossa vida melhorar; de alguma forma, é uma instrução para não nos transformamos, nós mesmos, em Amalek.

Vivendo na tensão entre o lembrar e o esquecer, entre ser vulnerável e abusar do poder, que as leituras deste shabat especial nos ajudem a reconhecer nossas fragilidades, ao mesmo tempo em que assumimos a responsabilidade de ajudar a estabelecer no mundo fontes permanentes de luz e proteção a quem mais precisa.

Shabat Shalom!