sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Dvar Torá: Revendo até o que está escrito em pedra (CIP)


As expressões idiomáticas sempre fazem a gente pensar um pouco sobre o seu significado, especialmente quando elas são em um idioma que aprendemos quando somos mais velhos. Sempre aparece uma tradução de “a vaca foi pro brejo”, “testa de ferro” ou “enfiar o pé na jaca” para outro idioma que evidencia como é cultural o significado que atribuímos a estas expressões. Em algumas situações, a expressão brasileira me parece bem mais apropriada: “gota d’água” faz muito sentido pra mim, que tentei muitas vezes colocar até a última gota de água na garrafa só pra me dar conta de que aquela última gota é que fez o copo transbordar. A expressão equivalente em inglês e em hebraico, “o canudo que quebrou a coluna do camelo”, não me transmite a mesma sensação de familiaridade com a situação. Tem outras situações que não parecem fazer sentido algum e que são replicadas em vários idiomas: “chorar pelo leite derramado”, por exemplo. Eu não entendo seu significado, apesar de valer em português, em inglês, em hebraico, e, quem sabe, em outros idiomas também. Uma música antiga israelense do grupo Kaveret, propunha em tom de piada derramar leite quando víssemos pessoas chorando, por que - considerando que não se chora pelo leite derramado — elas parariam de chorar [1].  Uma vez, eu deixei uma garrafa de whisky cair no chão da garagem e ela se espatifou pelo chão. Pra quem gosta de whisky, ou pelo menos gosta do cheiro de whisky, junto com a dor por ter perdido aquela garrafa, veio o prazer o cheiro delicioso na minha garagem. Ao invés de chorar pelo whisky derramado, eu sentei na garagem, fechei suas portas e passei um tempo apreciando os aromas. Será que é isso que quer dizer chorar pelo leite derramado?!

Uma expressão comum ao inglês e ao português é dizer que algo está “escrito em pedra”, ou “written in stone” querendo dizer que é imutável. Ou talvez a expressão seja mais usada no seu negativo, querendo dizer que algo “não está escrito em pedra”, querendo dizer que é negociável.

Vivemos em um momento de intransigências — em que parece que todo mundo quer que suas opiniões estejam escritas em pedra, com a garantia de que elas sejam imutáveis, independente dos fatos que sejam apresentados.  Ou que suas decisões sejam inscritas em pedra, que nunca mudem mesmo que as condições de alterem radicalmente. 

Daqui a duas semanas, vamos comemorar a festa de Purim. Pra quem se lembra de história de Meguilat Ester, o livro de Ester que lemos nesta data, ele conta que um primeiro ministro maldoso convenceu o rei da Pérsia a matar todos os judeus do Império e que foi só através da intervenção de Ester, a esposa judia do rei, que o plano foi impedido. Uma coisa que eu nunca consegui entender é quase no final da trama quando o rei diz sobre o decreto determinando o extermínio dos judeus: “וְנַחְתּוֹם בְּטַבַּעַת הַמֶּלֶךְ אֵין לְהָשִׁיב”, “algo que foi validado com o anel do rei não pode ser revogado.” [2]

Por que?? Se o rei mudou de opinião e entendeu que ele havia sido manipulado em um processo com o qual não concorda mais, por que ele não pode revogar um decreto emitido em seu nome?!

Na parashá desta semana, Deus faz os Dez Anúncios para o povo de Israel, que ficaram conhecidos como Os Dez Mandamentos. Inscritos em tábuas de pedra, estas eram palavras que determinavam balizes éticas mínimas para a nossa conduta. Não matar, não roubar, respeitar nossos pais e nossas mães.

Exceto que…. essas palavras, apesar de inscritas em pedra, também mudaram.

O segundo dos Dez Anúncios diz o seguinte:

Você não terá outros deuses além de mim. Você não deve fazer para si uma imagem esculpida, ou qualquer semelhança do que está nos céus acima, ou na terra abaixo, ou nas águas sob a terra. Você não deve se curvar a eles ou servi-los. Pois eu, ה׳ teu Deus, sou um Deus apaixonado, que visito a culpa dos pais nos filhos, na terceira e na quarta geração daqueles que me rejeitam, mas mostrando bondade para com a milésima geração daqueles que me amam e guardam as minhas mitsvot. [3]

No entanto, uma outra passagem da Torá, que aparece no livro de Devarim, Deuteronômio, vai na direção contrária, afirmando que “os pais não serão condenados à morte por seus filhos nem os filhos pelos seus pais: uma pessoa deve ser condenada à morte apenas pelos seus próprios crimes.” [4]

Um midrash explica a discrepância entre estas duas passagens da Torá  imaginando uma cena em que Moshé contesta Deus em sua decisão sobre a forma como a regra havia sido inicialmente estabelecida: 

Moshé disse: “Senhor do Universo, veja quantos malfeitores já geraram justos! Eles deveriam ser removidos pelas iniquidades de seus pais? Terach era um criador de ídolos, mas seu filho, Avraham, era justo; assim também Chizkiá era justo, mas Acaz, seu pai era um malfeitor; Ioshiahu era justo, mas Amon , seu pai era um malfeitor. É apropriado que os justos sejam feridos pelas iniqüidades de seus pais?!” Deus lhe disse: “Você Me ensinou! (…) anularei as Minhas palavras e preservarei as tuas palavras, como está escrito 'Os pais não serão condenados à morte pelos filhos, nem os filhos pelos pais’” [5]

Diferente do rei Achashverosh da história de Ester, Deus não responde que suas palavras já estão escritas em pedra e que não podem ser alteradas. Quando Lhe são apresentados argumentos convincentes, o Divino está aberto para reconhecer que até mesmos as Suas palavras podem ser alteradas — qual, então, seria o motivo para que não pudéssemos revisitar as nossas?

Metaforicamente escrever palavras em pedras implica congelar nossas opiniões, impedir que elas evoluam e respondam a novos contextos, a novas informações, às transformações pelas quais todos nós passamos. Em um cenário de tantas incertezas e de mudanças tão dinâmicas, profundas e frequentes como temos vivido, me parece que este é o pior erro que podemos cometer.

Que sejamos como Deus, prontos para revisitar até o que está escrito em pedra e humildes para reconhecer quando não temos razão.

Shabat Shalom!


[2] Ester 8:8
[3] Ex. 20:4-6
[4] Deut. 24:16
[5]  baMidbar Rabá 19:33


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