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sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Dvar Torá: Escolhendo ter sempre bençãos (CIP)


Eu tenho uma amiga que se recusava terminantemente a comprar rifas. Ela acreditava que temos um número limitado de eventos de boa sorte na vida e não queria gastar os seus com prêmios de melhor valor. Ela dizia: “e seu eu ganhar?!”, gastei a chance de mudar de vida com um jogo de panelas… 

Talvez isso tenha acontecido comigo. Há algumas semanas eu ganhei, não uma, mas duas vezes na loteria. Na primeira vez, depois de todo o suspense de descobrir que minha aposta tinha sido sorteada, eu abri o aplicativo pra saber quanto eu tinha ganho, sonhando em ter me tornado milionário, para descobrir que o meu prêmio total era a fortuna de R$114,00. Alguns dias depois, eu estava mostrando para alguém essa história e descobri que tinha sido sorteado também no prêmio seguinte. Novos segundos de tensão, até eu descobrir que o segundo prêmio era de imensos R$30,00! Será que eu desperdicei minhas chances de ficar milionário?! Na dúvida, eu continuo jogando, mas só quando o prêmio está acumulado — nesta semana, a Mega Sena está acumulada em R$115 milhões — isso sim, mudaria a vida de qualquer um!

Mas mudaria de que forma? Será que necessariamente boa?! No ano passado, um ganhador de quase R$50 milhões da Mega Sena, que continuava com sua sua vida pacata em Hortolândia foi assassinado por pessoas que queriam seu dinheiro. Não são raras as histórias de pessoas que ficam milionárias da noite para o dia e que, na sequência, perdem o dinheiro em pouco tempo [1]. Há a história do casal americano que torrou US$13 milhões em 15 anos ou do brasileiro que acabou com R$30 milhões em 5 anos. Mas além do risco de perder fácil o dinheiro que chegou fácil, será que  estes milhões trazem a felicidade que as pessoas esperam?

De outro lado, há notícias terríveis que recebemos ao longo da vida, em situações pessoais e profissionais e que, diferentemente do que esperávamos à primeira vista, acabam se tornando bençãos que estavam disfarçadas de maldições. Uma separação amorosa, que parecia que te levaria pro fundo do poço foi o que permitiu que você se descobrisse enquanto indivíduo, que se estruturasse de formas muito mais saudáveis dali pra frente. O mesmo com relações profissionais, uma promoção perdida, uma demissão. Situações que, em um primeiro momento, pareciam muito ruins mas que abriram novas possibilidades que você nem enxergaria se tudo “tivesse dado certo”.

Às vezes, o que parecia uma benção se revela uma maldição; e às vezes, o que parecia uma maldição nos enche de bençãos. Na nossa parashá desta semana, Deus diz ao povo, através de Moshé:


רְאֵה אָנֹכִי נֹתֵן לִפְנֵיכֶם הַיּוֹם בְּרָכָה וּקְלָלָה׃ 

אֶת־הַבְּרָכָה אֲשֶׁר תִּשְׁמְעוּ אֶל־מִצְוֹת ה׳ אֱלֹהֵיכֶם 

אֲשֶׁר אָנֹכִי מְצַוֶּה אֶתְכֶם הַיּוֹם׃ 

וְהַקְּלָלָה אִם־לֹא תִשְׁמְעוּ אֶל־מִצְוֹת ה׳ אֱלֹהֵיכֶם

 וְסַרְתֶּם מִן־הַדֶּרֶךְ אֲשֶׁר אָנֹכִי מְצַוֶּה אֶתְכֶם הַיּוֹם 

לָלֶכֶת אַחֲרֵי אֱלֹהִים אֲחֵרִים אֲשֶׁר לֹא־יְדַעְתֶּם׃ 

Veja, neste dia eu coloco diante de vocês bênção e maldição:  

bênção, ao escutarem aos mandamentos 

de ה׳, teu Deus, que Eu te ordeno hoje;

e maldição, se vocês não escutarem aos mandamentos 

de ה׳, teu Deus, se desviando do caminho que Eu te ordeno hoje,

indo atrás de outros deuses que vocês não conhecem. [2]:


Dito assim, até parece fácil reconhecer qual é a benção e qual é a maldição,  e que comportamento ter nos grandes dilemas à nossa frente mas os comentaristas ao longo dos séculos gastaram muita tinta tentando explicar esses três versículos. 

Destes, um dos que eu mais gostei, vindo do mestre Chassídico Tsvi Hirsch de Nadvorna, na Ucrânia, que viveu na segunda metade do século 18. Na sua leitura do trecho “benção, ao escutarem os mandamentos de ה׳, teu Deus”, “escutar” deve ser entendido como “se integrar”, “se tornar um”, estabelecendo um paralelo com uma passagem talmúdica em que uma palavra da mesma raiz ganha até um significado sexual, de se tornar um. Portanto, a passagem deveria ser lida assim:

Veja, neste dia eu coloco diante de vocês bênção e maldição: 

bênção, se vocês unirem seu comportamento ao que vem de Deus, 

tornando o que você dá e o que você recebe um fluxo único; 

maldição se vocês não fizerem isso. 

A forma como recebemos nossas bençãos e maldições determinam o impacto que elas terão nas nossas vida. Um tropeço pode nos ensinar a revisitar nossa arrogância e desenvolver nossa empatia, ou pode nos tornar amargurados e rancorosos. Um grande sucesso, por outro lado, pode fazer com esqueçamos de tudo que ainda precisamos evoluir e de todas as pessoas que nos ajudaram ao longo do caminho e que não receberam ainda o reconhecimento devido, ou pode ser a ferramenta da qual precisávamos para ajudar outros a ter o mesmo sucesso que tivemos.

Na teologia do livro de Deuteronômio, as consequências das nossas ações não são individuais, mas se aplicam a toda a sociedade. Quando, como sociedade, passamos a buscar outros deuses — e aqueles que buscamos hoje em dia não fazem parte do universo teológico, mas se expressam como fama, poder e dinheiro — ou, ainda pior, quando passamos a considerar a nós mesmos como semi-deuses, a Torá nos alerta que as consequências serão as terríveis, as piores maldições possíveis. O que parecia um evento positivo se revelará como um desastre, perderemos nossa humanidade na busca do conforto, afogados pelas novas tecnologias.

Se, por outro lado, formos capazes de integrar nossa conduta social aos valores que a Torá nos ensina, como amar ao nosso próximo como a nós mesmos, proteger os segmentos mais vulneráveis das nossas sociedades, agir com retidão e justiça, então mesmo o que parece uma notícia ruim se revelará uma benção, poderemos andar pelas nossas cidades sem medo, reconheceremos a face do Divino nos saudando a cada pessoa que encontrarmos, não importando quão diferente ela for de nós.

Veja, neste dia eu coloco diante de vocês bênção e maldição.

É só escolher!

Shabat Shalom!

 

[1] https://einvestidor.estadao.com.br/comportamento/ganhadores-loteria-que-perderam-tudo/

[2] Num. 12:26-28

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Dvar Torá: as muitas faces da realidade (CIP)

Nas últimas semanas, depois de muito ensaiarem e depois de terem assistido todos os filmes, meus filhos resolveram ler os livros do Harry Potter. Pra acompanhar essa leitura, cada vez que eles terminam um livro, a gente assiste o filme de novo e eles ficam me contando em cada cena como o livro é diferente do filme.

Apesar do seu caráter super-natural, das mágicas e das plataformas de trem escondidas dentro um pilar, a realidade de Harry Potter reflete uma certa ponto de vista também da nossa realidade. Dumbledore, o mago que é diretor da escola em que Harry estuda, é um sujeito acima de qualquer crítica, que parece sempre conseguir identificar o que é o bom e o que é ruim e que até aparenta saber o que os outros estão pensando ou tramando, o que sempre me deixou intrigado, me perguntando porque Dumbledore não impedia, desde o princípio, as armadilhas plantadas e tramas planejadas por seus oponentes. Voldermort, o grande vilão da série, por outro lado, representa tudo que há de ruim. É o mal absoluto que devemos, com a mais absoluta certeza, combater.

Bem diferente de Anakin Skywalker, um dos vilões de Guerra nas Estrelas, outra série de filmes que eu estou revendo, dessa vez sem os meus filhos. Anakin aparece nos primeiros filmes da série como uma criança fofa, esperta, cheia de vida, mas de alguma forma tentado pelo grande poder oferecido pelo lado negro da força; mais tarde, conforme os filmes foram avançando, esta atração pelo lado negro o leva a se transformar em Darth Vader, o principal vilão dos filmes 4, 5 e 6. Mas, no final, ainda é possível ver a humanidade e a bondade que se escondiam naquele corpo robótico.

De um lado, bem e mal absolutamente distintos, sem se misturar; de outro, uma realidade mais complicada, em que o bem vira mal, pra virar bem de novo mais tarde.

A Torá muitas vezes parece refletir um ponto de vista de absolutos: escolham entre, de um lado, o bem, a benção e a vida; e de outro lado, o mal, a maldição e a morte. No comecinho da parashá desta semana, esta perspectiva é formulada novamente: “רְאֵה אָנֹכִי נֹתֵן לִפְנֵיכֶם הַיּוֹם בְּרָכָה וּקְלָלָה׃”, “vejam, hoje eu coloco na sua frente a benção e a maldição.” [1] Dadas estas opções, a decisão não parece tão complicada — quase como a piada que diz que alguém prefere ser lindo, rico e feliz a ser feio, pobre e triste. Em geral, no entanto, nossas escolhas não são entre possibilidades em que tudo o que queremos está em uma coluna e tudo o que rejeitamos está na outra.

Em muitas situações, talvez na maior parte delas, os cenários não são absolutos, com tudo bom ou com tudo ruim. Escolher implica avaliar cenários, considerar suas implicações, seus riscos e consequências. Ponderar o que cada escolha tem de bom e de ruim, qual é sua benção e sua maldição e entender que não dá para escolher uma sem receber a outra junto.

Um exemplo: esta semana eu li e escutei muita coisa sobre a reabertura das escolas. A esta altura, já deveria estar claro para todos nós que, diferentemente do que muitos disseram no seu início, a pandemia não atingiu todos os grupos sociais da mesma forma. As pesquisas indicam que nos bairros mais nobres, menos de 10% das pessoas já foram expostas ao coronavírus; enquanto nas comunidades de menor renda, são mais 20% os que apresentam o mesmo indicador [2]. Isso é reflexo de muitos fatores, incluindo o fato de que pessoas de menor renda têm menor possibilidade de trabalho remoto e de isolamento social. Além disso, há hospitais públicos na periferia nos quais mais de 90% dos pacientes com Covid encaminhados para a UTI faleceram [3]; a média geral no Brasil é de 34% dos pacientes encaminhados para UTI falecerem [4]. Por outro lado, são justamente as comunidades mais carentes nas quais as famílias mais dependem da merenda escolar como fonte regular de nutrição para as crianças, onde as crianças têm menos condição de acesso às plataformas de ensino a distância e por isso estão sendo muito mais impactadas na sua educação com a suspensão das aulas e cujos pais, sem reservas financeiras, precisam que seus filhos estejam na escola para que eles possam voltar a trabalhar e recuperar pelo menos parte da renda perdida durante a pandemia. Nesse cenário, a escolha entre manter os filhos em casa ou exigir do poder público o retorno das aulas com maior risco de contaminação parece ser entre duas maldições. Não há benção entre as escolhas….

Tratar essa questão como óbvia ou condenar categoricamente aqueles que defendem uma ou outra solução é menosprezar sua complexidade. Em várias instâncias a tradição rabínica soube reconhecer que algumas vezes temas apresentados pela Torá em termos absolutos merecem maior sofisticação de análise.

Na meio parashá desta semana encontramos o conceito do ano sabático, no qual todas as dívidas eram canceladas [5]. O objetivo desta norma é claro: impedir o ciclo no qual algumas pessoas vivem sempre com dívidas, sempre com a corda no pescoço, nunca se sentindo totalmente livres. Em algum momento, no entanto, as pessoas perceberam que, como consequência deste preceito, os empréstimos não eram mais concedidos e as pessoas em situação vulnerável, que precisavam de ajuda financeira, tinham sido prejudicadas por uma legislação cujo objetivo claro era protegê-las. Sob a liderança de Hilel, um sábio do séc 1 aEC, foi criado um mecanismo, chamado Prozbul, que suspendia o cancelamento das dívidas e que permitiu, assim, que as pessoas pudessem contrair empréstimos quando precisassem [6]. Nem só bom, nem só ruim — as realidades são complexas e suas soluções precisam endereçar esta complexidade.

Um outro exemplo da tradição judaica, desta vez mais simbólico. O Lechá Dodi, que cantamos há pouco, foi escrito no século 16 na cidade de Tsfat, que nessa época, tinha se tornado um centro da mística judaica. Suas estrofes contém muitas camadas de significados: o casamento do qual falamos é do povo judeu com o Shabat, mas também de Deus com o povo judeu ou do casamento da Shchiná, uma manifestação feminina de Deus, com haKadosh Baruch Hu, uma manifestação masculina do Divino. Tantas uniões que celebramos no Shabat e, no entanto, as chamas das duas velas que acendemos não se tocam. Por outro lado, na havdalá, a cerimônia com que encerramos o shabat no sábado à noite, fazemos uma reza em que abençoamos as distinções entre a luz e a escuridão, entre o sagrado e o comum, entre o shabat e os outros dias da semana, entre o povo judeu e o resto da humanidade. Tantas distinções, tantas separações; a vela que usamos, no entanto, precisa ter pelo menos dois pavios e suas chamas precisam se tocar. A união do cabalat Shabat não é absoluta, nem a separação da havdalá o é. Quando abençoamos a vela da havdalá, fazemos um movimento com as mãos para que consigamos enxergar áreas iluminadas e sombrias , luz e escuridão, nas palmas das nossas mãos.

Um ditado americano diz “be careful with what you hope for”, “tenha cuidado com aquilo que você deseja”. Algumas vezes, as bençãos pelas quais mais esperamos se tornam maldições; outras vezes, algo que sempre evitamos, a maldição que sempre tememos, acabam se tornando as maiores bençãos das nossas vidas.

Nessa realidade multifacetada, categorias estanques não dão conta de descrevê-la. Certamente, não nos ajuda acreditar em absolutos, grupos que são tudo de bom ou outros que são o mal absoluto. 

Que nesse shabat, consigamos sentir o amargo no mel e o doce no limão; a luz que se esconde na escuridão e o escuro que não vemos por causa da luz. Que abandonemos as frases prontas, as visões maniqueístas e que, com coragem, apreciemos toda a complexidade da realidade.

Shabat Shalom!


[1]  Deut. 11:26.
[2]  https://soundcloud.com/revistapiaui/luz-no-fim-da-quarentena-40-18
[3] https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/08/em-uti-de-hospital-da-zona-leste-de-sp-maioria-nao-sobrevive-a-covid.shtml
[4] https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/08/10/com-a-pratica-medicos-aprendem-a-tratar-covid-e-salvam-mais-vidas-nas-utis.htm
[5] Deut. 15:1-3.
[6] Mishná Seviit 10:3-6


sexta-feira, 26 de abril de 2019

Saindo das áreas estreitas sem virar faraó


A partir deste shabat, as leituras tradicionais da Torá nas sinagogas em Israel e na Diáspora passam a ser distintas. O motivo para isso é a comemoração de um dia adicional de Pêssach na Diáspora quando comparado com Israel. 

Explico melhor: há dois shabatot, lemos parashat Metzorá e a parashá seguinte seria Acharei Mot. No entanto, o shabat seguinte foi o primeiro dia de Pêssach, que tem uma leitura de Torá especial, e, portanto, a leitura de Acharei Mot foi adiada. Estamos agora no shabat seguinte àquele: em Israel, Pêssach tem apenas sete dias e já terminou; na Diáspora, no entanto, estamos no oitavo dia da festa. Por aqui, teremos uma leitura especial do oitavo dia, adiando a leitura de Acharei Mot mais uma vez; em Israel, no entanto, Acharei Mot será lida já esta semana. Esta falta de sincronia entre os calendários de leitura da Torá em Israel e na Diáspora continuará por quase quatro meses, até que nos encontremos novamente para a leitura de parashat Devarim, no shabat do dia 10 de agosto.

Aqui, leremos uma seção de parashat Reê que trata da comemoração de Pêssach. Em um texto da hagadá que usamos na CIP, o sociólogo Bernardo Sorj nos alerta, justamente no feriado em que celebramos nossa libertação da opressão, para o risco de tomarmos o papel do opressor: “[c]elebramos Pessach para lembrar que a luta pela liberdade é o confronto constante entre o escravizador e o escravo que carregamos dentro de nós. O nosso faraó, que não aceita limites, a não ser os seus, quer ser reconhecido, mas não reconhece o direito à dignidade e à autonomia dos outros.” [1] 

A leitura da Torá deste shabat faz o mesmo alerta com instruções específicas para evitarmos este risco: se houver alguém nas tua terras passando necessidade, “não endureça seu coração” e ajude-o! A comparação com o coração endurecido do faraó é óbvia e o alerta bastante claro. Sempre temos conhecimento da nossa própria dor e das situações em que fomos oprimidos, discriminados, negligenciados. Algumas vezes, focamos tanto nas nossas situações de aflição que não percebemos como nosso comportamento pode, ainda que esta não seja a nossa intenção, oprimir, discriminar e negligenciar outras pessoas. Nossa obrigação é permitir que nossos corações sejam sensíveis às dores dos outros e nos esforçarmos para ajudá-los sempre que pudermos.

O exercício permanente da empatia é tanto uma necessidade quanto um desafio. O olhar crítico para nossas próprias ações às vezes nos leva a conclusões difíceis e desconfortáveis mas é o único caminho para que a busca pela saída de nosso Mitzraim pessoal, das nossas áreas estreitas, não nos leve a assumir o papel do faraó.

Shabat Shalom e Chag Sameach!



[1] Mishael Zion e Noam Zion, “Halaila Hazé: uma Hagadá de Pessach para o nosso tempo”, 2017, p. 23.