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sexta-feira, 5 de maio de 2023

Dvar Torá: O que desqualifica para a liderança hoje em dia? (CIP)


Minha prédica de hoje está em diálogo com os temas que a rabina Tati desenvolveu no comentário dela [1], por isso eu recomendo fortemente que as pessoas leiam-no quando puderem para enriquecer a conversa que estamos estabelecendo.

No seu comentário, a rabina Tati trata de uma passagem particularmente problemática da parashá desta semana:

ה׳ falou a Moshé: Fale com Aharón e lhe diga: Nenhum homem da tua descendência em todos os tempos que tiver um defeito será qualificado para oferecer a comida de seu Deus. Ninguém que tenha um defeito será qualificado: nenhum homem que seja cego, ou coxo, ou tenha um membro muito curto ou muito longo; nenhum homem que tenha uma perna quebrada ou um braço quebrado; ou que seja corcunda, ou anão, ou que tenha uma protuberância no olho, ou que tenha cicatriz de furúnculo, ou inflamação das gengivas ou testículos esmagados. Nenhum homem entre os descendentes de Aharón, o sacerdote, que tiver um defeito será qualificado para oferecer a oferta queimada de ה׳; tendo defeito, não poderá oferecer o alimento de seu Deus. Ele pode comer do alimento de seu Deus, tanto do santíssimo quanto do santo; mas não entrará atrás da cortina nem se aproximará do altar, porque tem defeito. Ele não profanará estes lugares sagrados para mim, pois eu ה׳ os santifiquei. [2]

A rabina Tati, incomodada com o teor do texto, um incômodo do qual eu compartilho, pergunta: “Assim fala Deus dos Seus filhos? Pode Deus ser preconceituoso? Não somos todos criados à Sua imagem e semelhança? O amor divino não é incondicional? Somos só aquilo o que se vê? Moshé tinha dificuldade na fala e ninguém esteve mais perto da presença divina do que ele.” 

O incômodo não é apenas dos rabinos desta geração. Ainda que o tom da crítica seja mais ameno e que tenhamos que ler nas entrelinhas, percebam como a seguinte história talmúdica oferece uma critica incisiva das regras estabelecidas na nossa parashá: 

Rabi Elazar, filho de Rabi Shimon, veio de Migdal Gedor, da casa de seu rabino, e ele estava montado em um burro e passeando na margem do rio. E ele estava muito feliz, e sua cabeça estava inchada de orgulho porque ele havia estudado muito a Torá. Ele se deparou com uma pessoa extremamente feia, que lhe disse: ‘Saudações a você, meu rabino’, mas o rabino Elazar não retornou sua saudação. Em vez disso, Rabi Elazar disse a ele: ‘Pessoa sem valor, quão feio é aquele homem. Todas as pessoas da sua cidade são tão feias quanto você?’ O homem disse a ele: ‘Eu não sei, mas você deveria ir e dizer ao Artesão que me fez: Quão feio é o vaso que você fez’. Quando Rabi Elazar percebeu que havia pecado, desceu de seu burro e prostrou-se diante dele, e disse ao homem: ‘Pequei contra você; me perdoe.’ O homem lhe disse: ‘Não te perdoarei até que você vá ao Artesão que me fez e diga: Que feio é o vaso que Você fez.’ Ele caminhou atrás do homem, tentando apaziguá-lo, até chegarem à cidade. O povo de sua cidade saiu para cumprimentá-lo, dizendo-lhe: ‘Saudações a você, meu rabino, meu rabino, meu mestre, meu mestre.’ O homem disse a eles: ‘Quem vocês estão chamando de meu rabino, meu rabino?’ Disseram-lhe: ‘A este homem, que caminha atrás de você.’ Ele lhes disse: ‘Se este homem é um rabino, que não haja muitos como ele entre o povo judeu.’ Eles lhe perguntaram: ‘Por que você diz isso?’ Ele disse a eles: Ele fez isso e aquilo comigo. Eles disseram a ele: ‘Mesmo assim, perdoe-o, pois ele é um grande estudioso da Torá.’ Ele lhes disse: ‘Por causa de vocês eu o perdôo, contanto que ele não se acostume a se comportar assim.’ [3]

Está estabelecido, então, que tanto para os rabinos de hoje como para os rabinos do Talmud, uma pessoa não deve ser julgada pela sua aparência física. A rabina Julia Watts Belser, no entanto, destaca que os rabinos do Talmud mudaram o foco das exclusões mas não acabaram com elas: daqueles que tinham alguma deficiência física para aqueles que tinham dificuldade de compreensão ou discernimento. Ela escreve: “Os sábios temiam e estigmatizavam a surdez, deficiências da fala, deficiências intelectuais e cognitivas, que eles percebiam como algo que tornava uma pessoa incapaz de participar do sistema de santidade que eles criaram.” [4] Seu ponto é que cada geração estabelece um padrão de acordo com o qual suas lideranças são validadas — na época bíblica, era a capacidade e perfeição físicas, na época do Talmud, a capacidade intelectual e de articulação oral.

Em nossos dias, aprendemos que esses atributos não são nem necessários, nem suficientes. Conhecemos líderes com atributos físicos impecáveis ou com dons de oratória invejáveis cuja capacidade de liderança ou cujo comportamento ético nos desapontaram de forma profunda. Ao mesmo tempo, passamos a reconhecer a capacidade de liderança de pessoas que, de acordo com estes parâmetros adotados no passado, teriam sido desconsideradas, pessoas cujas imperfeições são óbvias e salientes — e cujas qualidades são igualmente óbvias e salientes.

No seu comentário, a rabina Tati menciona Moshé, cuja dificuldade na fala não o impediu de se tornar um dos maiores líderes do povo judeu. Em nossos tempos, penso em Stephen Hawking, cuja fragilidade física não preveniu que ele fosse reconhecido como uma referência fundamental na física teórica, e em Greta Thunberg, um exemplo de jovem ativista, que se descreve tanto como como uma ativista ambiental quanto como uma ativista pelos direitos dos autistas. Ela disse: “Fui diagnosticada com síndrome de Asperger, TOC e mutismo seletivo. Isso basicamente significa que só falo quando acho necessário. Agora é um desses momentos.” [5]

Estes são apenas dois exemplos. Pelos parâmetros antigos, teríamos perdido suas imensas contribuições — será que hoje temos novos parâmetros pelos quais julgamos e validamos as contribuições de nossas lideranças?

Não é uma discussão nova: será que líderes — em qualquer ramo de atividade — devem ser julgados apenas pela qualidade do seu trabalho ou há parâmetros mais amplos que devem ser considerados?

Recentemente, um movimento de protesto de torcedores e, especialmente de torcedoras, do Corinthians levou Cuca, o técnico que tinha sido recém contratado, a pedir demissão menos de uma semana depois de aceitar o cargo. O protesto das torcedoras vinha do fato de que ele foi condenado pela Justiça suíça na década de 1980 pelo estupro de uma menina de 13 anos e nunca chegou a cumprir sua pena. [6] Uma falha técnica ética desta proporção justifica o “cancelamento” (para usar um termo da moda) de um técnico premiado, cujo talento não é questionado por quase ninguém?

No mundo rabínico, temos exemplos similares, mas cujas consequências foram muito distintas. Shlomo Carlebach era um rabino que navegava entre a ortodoxia Chabad e o mundo Renewal. Autor de algumas melodias mais cativantes da liturgia judaica, inclusive de músicas que cantamos aqui no Cabalat Shabat da CIP. Quando eu cheguei aos Estados Unidos para estudar, em 2005, já escutávamos acusações de assédio sexual contra ele. Após o início do movimento #metoo, ganhou força o fluxo de mulheres que o acusavam. Uma pessoa pesquisando o assunto contou mais de 15 mulheres que diziam ter sido vítimas de abuso sexual por parte do Carlebach. [7] Ao mesmo tempo, enquanto boa parte da Ortodoxia rejeita o canto de mulheres, especialmente na sinagoga, Shlomo Carlebach encorajou muitas mulheres a cantarem na bimá e ordenou mulheres rabinas muito antes de outros setores da Ortodoxia. Sua filha, Neshama Carlebach, uma renomada cantora e compositora, em resposta às acusações, escreveu um artigo que ela começa da seguinte forma: 

Minhas amigas, venho humildemente perante vocês. Sou grata por ter o privilégio de compartilhar o que espero que seja uma contribuição para a conversa que estamos travando neste momento de transformação. Reconheço que quem eu sou - meu próprio nome - pode dificultar o recebimento de qualquer coisa que eu queira oferecer. Ainda assim, nossa tradição nos ensina que silêncio é consentimento, e não posso ficar calado diante de tanta dor. Minhas irmãs, eu ouço vocês. Eu choro com vocês. Eu ando com vocês. Estarei com vocês até o dia em que o mundo se comprometer com a cura e a integridade para todas, para as inúmeras mulheres que sofreram os males do assédio e da agressão sexual. [8]

Em outros trechos do artigo, ela escreveu: “Eu vi a música do meu pai curar a vida de alguém diante dos meus olhos e li sobre como essa mesma música desencadeou uma dor profunda em outras pessoas. (…) Aceito a plenitude de quem meu pai era, com falhas e tudo. Estou com raiva dele. E me recuso a ver seus defeitos como a totalidade de quem ele era.” Há sinagogas que se recusam a cantar melodias escritas por Carlebach; há outras que as usam sem atribuir autoria e há também que prefira não misturar a qualidade da obra com as imperfeições do seu criador. A Central Synagogue de Nova York estabeleceu uma moratória de um ano no qual não tocaram qualquer melodia composta por Shlomo Carlebach; ao final deste período, convidaram Neshama Carlebach, que passou a ser o destino de críticas e de boicotes pelas ações de seu pai, para cantar, junto com o chazán da sinagoga, uma melodia escrita pelo pai.

Quais são nossos parâmetros para validar nossos líderes? Em algum momento, aqui em São Paulo “rouba mas faz” era o epíteto pelo qual conhecíamos um político no qual muitos nos recusávamos a votar. Hoje, a mesma frase é usada sem qualquer pudor para classificar em quem votamos. No mundo corporativo e nas nossas referências culturais, a genialidade é frequentemente acompanhada de características indesejadas, de um ego hipertrofiado, de arrogância e de agressividade no trato inter-pessoal, atributos que são “aceitos” como o preço a ser pago pela genialidade. Há parâmetros capazes de desqualificar uma conduta mesmo que o executivo traga grande lucro para sua companhia, que o artista seja brilhante ou que o médico consiga tratar situações clínicas em que outros teriam falhado? 

Somos todos pessoas imperfeitas, cheias de defeitos, alguns que apenas nós mesmos conhecemos. Algumas das nossas falhas atrapalham a nós mesmos, podem até incomodar a outras pessoas, mas não as degradam, não as desumanizam, não lhes causam traumas profundos. E há falhas éticas e morais cujas enormes consequências recaem sobre os outros e têm impactos que, muitas vezes, nem conseguimos estimar.

Em tempos bíblicos, a falta de perfeição física desqualificava para o exercício de liderança. Na época do Talmud, era a falta de perfeição intelectual e cognitiva que fazia este papel. Hoje, rejeitamos estes parâmetros como flagrantes violações da ideia central do judaísmo de que somos todos criados à imagem Divina, dotados de uma dignidade inalienável. Precisamos, no entanto, de novos parâmetros para que alguém possa acessar posições de liderança. 

Chegamos à época em que profundas falhas de caráter e violações éticas não devem mais ser toleradas como justificáveis, nem mesmo para pessoas cujas contribuições em seus campos de atuação sejam imensas. É hora de dizer “דַּי”, "dai", “basta”, e começarmos a verdadeiramente valorizar o comportamento decente, respeitoso, humano e construtivo.

Shabat Shalom 

 

[1] https://cip.org.br/abracar-as-diferencas-e-se-comprometer-com-a-inclusao-parashat-emor/

[2] Lev. 21:16-23.

[3] Talmud Bavli Taanit 20

[4] Julia Watts Belser, “Reading Talmudic Bodies: Disability, Narrative, and the Gaze in Rabbinic Judaism”, p. 9-10

[5] https://en.wikipedia.org/wiki/Greta_Thunberg

[6] https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2023/04/28/sentenca-que-condenou-cuca-por-ato-sexual-com-menor-ha-34-anos-e-confirmada.ghtml

[7] https://www.timesofisrael.com/after-metoo-some-congregations-weigh-changing-their-tune-on-shlomo-carlebach/

[8] https://blogs.timesofisrael.com/my-sisters-i-hear-you/






sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Dvar Torá: Que bom que não pensamos todos o mesmo (CIP)


Há alguns dias, antes do anúncio público que veio só hoje, minha filha veio toda animada me contar que a Gisele Bundchen e o Tom Brady estavam se separando. Aos 14 anos, ela adora ficar a par de tudo o que acontece no mundo das celebridades, sabe a data de lançamentos de todos os álbuns da música pop e conhece no detalhe a lista de filmes e séries que seus atores favoritos fizeram.

Apesar de achar a Gisele Bundchen linda e de ter torcido muito pelos arremessos certeiros do Tom Brady quando ele jogava no New England Patriots, não me interesso nada pela vida conjugal dos dois. Isso dito, preciso reconhecer que tem um tipo de stalking que eu, sim, pratico: gosto de visitar os sites de sinagogas em outros lugares e investigar quem são seus rabinos. Em uma destas empreitadas, descobri uma colega que tinha escrito um artigo para um livro editado pela Central Conference of American Rabbis, o sindicato rabínico reformista, que trata de um tema que muito me interessa: a conexão do judaísmo com a justiça social. Não foram nem cinco minutos entre descobrir o livro e tê-lo disponível no meu Kindle. O nome do livro, traduzido para o português: Resistência Moral e Autoridade Espiritual: Nossa Obrigação Judaica com a Justiça Social [1].

Logo no primeiro artigo do livro, o rabino Seth Linner, um dos seus editores,  escreve sobre “Judaísmo e o Mundo Político”. Ele abre o artigo dizendo que inúmeras vezes lhe perguntaram por que o judaísmo se importa tanto com a política e o estrutura como uma longa resposta a este questionamento.

A pergunta faz sentido e parece especialmente apropriada tendo em vista o clima político que temos vivido no Brasil nos últimos anos. Com alguma frequência, escutamos na imprensa comentários de que as religiões deveriam se ocupar da fé, da vida espiritual de suas comunidades, e deixar o debate sobre a vida cotidiana para líderes políticos ou outros analistas. Do ponto de vista cristão pode ser que esta conduta faça sentido, mas a tradição judaica, que vai muito além da religião no que foi definido por Mordecai Kaplan como uma Civilização Judaica, sempre se preocupou com formas de santificar a o comum, o cotidiano, de lhe atribuir intencionalidade, de empregá-la com os valores que nossa tradição transmite.

Nas páginas do Tanach e do Talmud, a vida espiritual ocupa um pequena minoria dos textos. A ênfase está na discussão da forma como tratamos uns aos outros, como protegemos os segmentos mais vulneráveis de nossas sociedades, como combatemos nas guerras, como estruturamos sistemas judiciais imparciais, como pagamos nossos funcionários de forma justa, como cuidamos dos recursos naturais e até quais estruturas de segurança precisam existir em nossas construções. Esses são apenas alguns exemplos de como a tradição judaica se preocupa com o concreto, com a vida que levamos além dos momentos que poderiam ser rotulados como “rituais” ou “religiosos”.

O parágrafo final do artigo do rabino Limmer resume bem esta posição:
Por que o judaísmo se preocupa com a política? Porque a Torá nos ensina que a santidade deve entrar no mundo através de nossas interações com os outros. Porque os profetas protestaram contra a injustiça, sejam pecados no santuário ou abuso de poder no reino político. Porque o Talmud estabelece um sistema intrincado de leis que nos liga aos nossos vizinhos, quer busquemos essa conexão social ou não. Porque, por mais de três mil anos, nossa tradição nos ensinou que todo ser humano é pessoalmente responsável pela posição moral do mundo inteiro.
Tudo isso dito, é claro que não estamos defendendo que um líder religioso defenda do púlpito o voto em um candidato ou em outro — isso seria claramente abuso do seu poder religioso.

O fato de que o judaísmo encare o universo da política como uma área natural para o seu exercício torna ainda mais preocupante do ponto de vista judaico a situação que vivemos hoje. Ao longo da última semana, podcasts da Folha de S. Paulo [2], e do O Globo [3] trataram da polarização afetiva, dos conflitos entre amigos e dentro de famílias que têm levado a rupturas sociais antes inimagináveis. Parte do caldo de cultura que tem permitido que essa polarização aconteça é uma radicalização das narrativas, com a efetiva negação da legitimidade de posições políticas destoantes, além da perda de referências que faz com que já não saibamos o que é verdadeiro e o que não é. 

Dentro da extensa lista de temas sobre os quais o judaísmo se interessa, a possibilidade da divergência ocupa lugar central. Uma das passagens talmúdicas mais famosas a este respeito conta que as escolas de Hilel e de Shamai debateram por três anos um assunto sem conseguir chegar a um consenso. Após este tempo, uma voz divina anunciou: “אלו ואלו דברי אלוהים חיים”, elu veelu divrei Elohim chayim, “tanto umas quanto as outras são as palavras vivas de Deus.” [4] Apesar de opostas, as posições dos dois lados carregavam verdades. Hoje, numa eleição que já foi caracterizada inúmeras vezes como uma guerra entre o bem e o mal, me parece absolutamente improvável que alguém conseguisse enxergar verdades na posição de seu opositor político. Mais do que isso, passamos da disputa eleitoral à guerra eleitoral, um fenômeno que não tem acontecido só no Brasil. 

Na campanha presidencial norte-americana de 2008, em um evento com seus eleitores, John McCain, um eleitor se levantou e lhe disse que tinha medo porque Barack Obama, contra quem McCain concorria, estava aliado aos terroristas. A resposta de McCain foi: “eu preciso te dizer que ele é uma pessoa decente e uma pessoa de quem você não precisa ter medo como presidente dos Estados Unidos”. O público passou a vaiar seu próprio candidato. Na sequência ele disse a outra eleitora, ainda sobre Barack Obama: “ele é um homem de família decente e um cidadão, com quem eu tenho discordâncias em questões fundamentais e é sobre isso de que se trata esta eleição.” [5] Talvez tenha sido pela sua decência em defender  a verdade e seu opositor que McCain perdeu aquela eleição — como outros ciclos eleitorais demonstraram, mentiras têm um poder imenso para criar fanatismo, medo e entusiasmo na eleição. McCain perdeu a eleição de 2008, mas continua sendo apontado como um exemplo de político que não estava disposto a corromper seus valores para vencer a qualquer custo.

A possibilidade de encontrar decência na pessoa de quem se diverge, tratá-la com respeito, é vista cada vez mais como uma esperança ingênua, a descrição de um mundo ao qual nunca mais voltaremos. Quem sabe, o judaísmo e sua visão da política pode ter algo a contribuir para alimentarmos este sonho, mesmo que ele seja fruto da nossa ingenuidade.

Na parashá desta semana lemos a história da Torre de Babel [6]. O texto conta que “toda a terra tinha o mesmo idioma e usava as mesmas palavras”, “דברים אחדים”, dvarim echadim. “Palavras”,  “דברים”, dvarim — a mesma expressão usada para o que a voz Divina, reconheceu como vindas de Deus no caso de Hilel e Shamai, ainda que refletindo posições opostas, é aqui usada para fazer referência às palavras únicas da geração de Babel. As pessoas, então, decidem construir uma torre que chegasse ao céu. Incomodado com o plano, Deus destrói a torre, os dispersa por toda a terra e estabelece múltiplos idiomas. 

O filósofo israelense Ieshaiahu Leibowitz, tem uma leitura bastante inusitada desta passagem e que me parece apropriada para o momento que vivemos. Ele escreveu:
Parece-me que este decreto não foi um castigo mas, pelo contrário, uma medida tomada para o benefício da humanidade. A grande importância do episódio da Torre de Babel não é, de forma alguma, a tentativa de construir uma torre, mas remete para o que foi dito anteriormente, que "a terra – a humanidade renovada após o dilúvio – tinha uma língua e as mesmas palavras”. Após o fracasso da construção, diversos idiomas foram criados, o que levou a diversos discursos. Parece-me que a raiz do erro (ou pecado) da “geração da separação” não foi a construção de uma cidade e uma torre, mas o objetivo de usar esses meios artificiais para garantir uma situação de "uma linguagem e um discurso" – de centralização, o que, em linguagem moderna é conhecido como “totalitarismo". Uma linguagem e um discurso é, de acordo com muitas pessoas ingênuas em nossos dias, a descrição de uma situação ideal: toda a humanidade em um único bloco sem diferenciação e, como resultado, sem conflitos. Mas quem realmente entende saberá que não há nada mais ameaçador do que este conformismo artificial: uma cidade e uma torre como o símbolo da concentração de toda a humanidade em um único tópico – onde não haverá diferenças de opinião e onde não haverá mais conflito sobre diferentes pontos de vista e valores. Não se pode imaginar maior tirania do que esta, não se pode imaginar maior infertilidade mental e moral do que esta – que não deve haver exceções e que não deve haver desvios do que é aceito e acordado, situação mantida pelos meios artificiais de uma cidade e uma torre. [7]
Para Leibowitz, ingênua é a crença de que estaríamos em uma situação ideal caso todos concordássemos sobre o melhor destino para nossas sociedades. A diversidade de opiniões, por outro lado, é o que possibilita o aparecimento de novas opinões, de oxigenação de modelos, de ideias, de perspectivas. 

Parafraseando John McCain, a maioria das pessoas de quem discordamos politicamente é formada por pessoas decentes, dignas, inteligentes e bem informadas. Elas têm o direito de ter uma opinião diferente da tua sem que isso negue sua humanidade, sua dignidade ou sua honestidade. É graças à diversidade política que podemos contemplar com que modelo de sociedade sonhamos e qual o projeto político que terá maior sucesso em nos levar lá. A alternativa é adotar um modelo de “דברים אחדים", dvarim echadim, de "palavras únicas” e abrir mão da possibilidade de crescer a partir do encontro de pontos de vista que reflitam simultaneamente as palavras vivas de Deus.

Neste domingo, com toda responsabilidade, pense na sociedade com que você sonha e escolha quem te parece ter mais chances de te aproximar dela — sem ódio, sem ressentimentos, sem cancelamentos e sem rompimentos de pessoas que você sempre considerou dignas; não será o voto delas nem o teu que deve te fazer mudar essa opinião. 

Shabat Shalom e bom voto!

[1] Seth M. Limmer e Jonah Dov Pesner, “Moral Resistance and Spiritual Authority: Our Jewish Obligation to Social Justice”, CCAR Press, 2019.
[2] https://open.spotify.com/episode/1awSmQ40tNt6xUaxFtCQMU?si=a12575c5b69f4100
[3] https://open.spotify.com/episode/6hk4S3p63agYyy58EFdvwV?si=ccb1baba71354c3b
[4] Talmud da Babilônia, Eruvin 13b
[5] https://www.youtube.com/watch?v=M0u3QJrtgEM 
[6] Gen. 11:1-9
[7] Yeshayahu Leibowitz, “Earot leParshiot haShavua”, Ch. 2: Bereshit - Noach 


sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Dvar Torá: Revendo até o que está escrito em pedra (CIP)


As expressões idiomáticas sempre fazem a gente pensar um pouco sobre o seu significado, especialmente quando elas são em um idioma que aprendemos quando somos mais velhos. Sempre aparece uma tradução de “a vaca foi pro brejo”, “testa de ferro” ou “enfiar o pé na jaca” para outro idioma que evidencia como é cultural o significado que atribuímos a estas expressões. Em algumas situações, a expressão brasileira me parece bem mais apropriada: “gota d’água” faz muito sentido pra mim, que tentei muitas vezes colocar até a última gota de água na garrafa só pra me dar conta de que aquela última gota é que fez o copo transbordar. A expressão equivalente em inglês e em hebraico, “o canudo que quebrou a coluna do camelo”, não me transmite a mesma sensação de familiaridade com a situação. Tem outras situações que não parecem fazer sentido algum e que são replicadas em vários idiomas: “chorar pelo leite derramado”, por exemplo. Eu não entendo seu significado, apesar de valer em português, em inglês, em hebraico, e, quem sabe, em outros idiomas também. Uma música antiga israelense do grupo Kaveret, propunha em tom de piada derramar leite quando víssemos pessoas chorando, por que - considerando que não se chora pelo leite derramado — elas parariam de chorar [1].  Uma vez, eu deixei uma garrafa de whisky cair no chão da garagem e ela se espatifou pelo chão. Pra quem gosta de whisky, ou pelo menos gosta do cheiro de whisky, junto com a dor por ter perdido aquela garrafa, veio o prazer o cheiro delicioso na minha garagem. Ao invés de chorar pelo whisky derramado, eu sentei na garagem, fechei suas portas e passei um tempo apreciando os aromas. Será que é isso que quer dizer chorar pelo leite derramado?!

Uma expressão comum ao inglês e ao português é dizer que algo está “escrito em pedra”, ou “written in stone” querendo dizer que é imutável. Ou talvez a expressão seja mais usada no seu negativo, querendo dizer que algo “não está escrito em pedra”, querendo dizer que é negociável.

Vivemos em um momento de intransigências — em que parece que todo mundo quer que suas opiniões estejam escritas em pedra, com a garantia de que elas sejam imutáveis, independente dos fatos que sejam apresentados.  Ou que suas decisões sejam inscritas em pedra, que nunca mudem mesmo que as condições de alterem radicalmente. 

Daqui a duas semanas, vamos comemorar a festa de Purim. Pra quem se lembra de história de Meguilat Ester, o livro de Ester que lemos nesta data, ele conta que um primeiro ministro maldoso convenceu o rei da Pérsia a matar todos os judeus do Império e que foi só através da intervenção de Ester, a esposa judia do rei, que o plano foi impedido. Uma coisa que eu nunca consegui entender é quase no final da trama quando o rei diz sobre o decreto determinando o extermínio dos judeus: “וְנַחְתּוֹם בְּטַבַּעַת הַמֶּלֶךְ אֵין לְהָשִׁיב”, “algo que foi validado com o anel do rei não pode ser revogado.” [2]

Por que?? Se o rei mudou de opinião e entendeu que ele havia sido manipulado em um processo com o qual não concorda mais, por que ele não pode revogar um decreto emitido em seu nome?!

Na parashá desta semana, Deus faz os Dez Anúncios para o povo de Israel, que ficaram conhecidos como Os Dez Mandamentos. Inscritos em tábuas de pedra, estas eram palavras que determinavam balizes éticas mínimas para a nossa conduta. Não matar, não roubar, respeitar nossos pais e nossas mães.

Exceto que…. essas palavras, apesar de inscritas em pedra, também mudaram.

O segundo dos Dez Anúncios diz o seguinte:

Você não terá outros deuses além de mim. Você não deve fazer para si uma imagem esculpida, ou qualquer semelhança do que está nos céus acima, ou na terra abaixo, ou nas águas sob a terra. Você não deve se curvar a eles ou servi-los. Pois eu, ה׳ teu Deus, sou um Deus apaixonado, que visito a culpa dos pais nos filhos, na terceira e na quarta geração daqueles que me rejeitam, mas mostrando bondade para com a milésima geração daqueles que me amam e guardam as minhas mitsvot. [3]

No entanto, uma outra passagem da Torá, que aparece no livro de Devarim, Deuteronômio, vai na direção contrária, afirmando que “os pais não serão condenados à morte por seus filhos nem os filhos pelos seus pais: uma pessoa deve ser condenada à morte apenas pelos seus próprios crimes.” [4]

Um midrash explica a discrepância entre estas duas passagens da Torá  imaginando uma cena em que Moshé contesta Deus em sua decisão sobre a forma como a regra havia sido inicialmente estabelecida: 

Moshé disse: “Senhor do Universo, veja quantos malfeitores já geraram justos! Eles deveriam ser removidos pelas iniquidades de seus pais? Terach era um criador de ídolos, mas seu filho, Avraham, era justo; assim também Chizkiá era justo, mas Acaz, seu pai era um malfeitor; Ioshiahu era justo, mas Amon , seu pai era um malfeitor. É apropriado que os justos sejam feridos pelas iniqüidades de seus pais?!” Deus lhe disse: “Você Me ensinou! (…) anularei as Minhas palavras e preservarei as tuas palavras, como está escrito 'Os pais não serão condenados à morte pelos filhos, nem os filhos pelos pais’” [5]

Diferente do rei Achashverosh da história de Ester, Deus não responde que suas palavras já estão escritas em pedra e que não podem ser alteradas. Quando Lhe são apresentados argumentos convincentes, o Divino está aberto para reconhecer que até mesmos as Suas palavras podem ser alteradas — qual, então, seria o motivo para que não pudéssemos revisitar as nossas?

Metaforicamente escrever palavras em pedras implica congelar nossas opiniões, impedir que elas evoluam e respondam a novos contextos, a novas informações, às transformações pelas quais todos nós passamos. Em um cenário de tantas incertezas e de mudanças tão dinâmicas, profundas e frequentes como temos vivido, me parece que este é o pior erro que podemos cometer.

Que sejamos como Deus, prontos para revisitar até o que está escrito em pedra e humildes para reconhecer quando não temos razão.

Shabat Shalom!


[2] Ester 8:8
[3] Ex. 20:4-6
[4] Deut. 24:16
[5]  baMidbar Rabá 19:33


sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Dvar Torá: Chamando Deus para enfrentar nosso descaso (CIP)


Um midrash que eu adoro [1] compara o patriarca Avraham a um sujeito andando pela estrada quando ele vê um farol aceso, o fogo brilhando intensamente. “Como pode ser que este farol está em chamas e a torre não se consome?” Se deu conta, então, de que havia alguém que tomava conta do fogo no farol, garantindo que ele continuasse iluminando o caminho dos navegadores sem consumir a torre. Assim era Avraham, diz o midrash, que viu um mundo em movimento, pegando fogo, sem, no entanto, se consumir. Deve ter alguém que toma conta do fogo para garantir que ele não consuma o mundo. Foi assim que Avraham intuiu a presença de Deus no mundo.

Um professor querido, o rabino Or Rose, se baseia em uma obra chassídica famosa, o Kedushat Levi, escrito pelo rabino Levi Itzchak de Berditchev no final do século 18, para falar de como a presença de Deus se manifesta de formas distintas [2]. Algumas vezes, como na parashá desta semana, Deus escuta os gritos dos hebreus em servidão e interfere diretamente na história, enviando os dez golpes sobre Mitsrayim e abrindo o mar para garantir sua libertação; outras vezes Sua atuação se dá de forma bastante mais discreta e limitada. Na leitura do Kedushat Levi, Deus se revela na abertura do mar como um jovem sem barba, sem medo de demonstrar todo o Seu vigor, dizimando os inimigos em Seu caminho para atingir os objetivos que tinha estabelecido. Apenas sete semanas separam este evento do recebimento da Torá no Monte Sinai, mas o Kedushat Levi enxerga Deus se apresentando de forma muito diferente: como um senhor de longas barbas, contido, limitado, preocupado que todos os israelitas presentes àquele momento pudessem ter tranquilidade para escutar os ensinamentos sagrados da Torá.

Essa ideia de que Deus se manifesta de formas distintas, se preocupando com a maneira como espera que nós reajamos talvez nos ajude a processar o período que estamos vivendo e a decidir como agir. Nos últimos dias, temos escutado mensagens terríveis com relação ao desenvolvimento da pandemia no Brasil. As notícias que chegaram ontem de Manaus davam conta de que o oxigênio na cidade tinha se esgotado, transformado respiradores em câmaras de asfixia [3]. Hoje, a notícia é que 60 bebês prematuros tiveram que ser transferidos para outros estados por falta de capacidade de tratamento na rede hospitalar do Amazonas. Imagine ser o pai ou a mãe de um destes bebês, já angustiado pela situação, tendo agora que acompanhá-los em uma viagem que pode lhe custar a vida.

Ficamos à procura da intervenção divina nestas situações, mas não encontramos nada. Como dizia Castro Alves, 

Deus! ó Deus, onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes,
Embuçando nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde, desde então, corre o infinito…
Onde estás, Senhor Deus?…  [4]

A chama do farol está acesa mas parece que há ninguém cuidando para que o fogo não queime toda a torre.

Eu sempre me espanto como somos muitos mais racionais quando analisamos a vida dos outros do que quando tomamos decisões nas quais estamos diretamente envolvidos. No dia 04 de agosto de 2020, uma explosão gigantesca destruiu boa parte de Beirute, deixando mais de 200 mortos, 7,500 feridos e 300.000 pessoas sem seus lares. Logo nos primeiros dias da investigação, fomos informados de que a explosão tinha sido causada por uma grande quantidade de nitrato de amônio armazenada no porto da cidade por sete anos sem maiores cuidados. Quando vimos aquelas notícias, todos apontamos nossos dedos acusadores para as autoridade políticas do Líbano e para os responsáveis pela administração do porto. Como puderam agir de forma tão irresponsável, deixando tal quantidade de material explosivo sem cuidados?

Pois bem: passamos os últimos meses sendo alertados de que as festas de final de ano e as férias escolares desafiariam nossa convicção no isolamento social. E não deu outra, assim como os líderes do porto de Beirute, resolvemos jogar com a sorte e correr o risco para o qual nos alertavam. Seja pelos relatos familiares ou pelas listas que circularam pelas redes sociais, todos sabemos que a queda da nossa atenção nas últimas semanas têm levado a um aumento assustador nas infecções por Covid, não só no Amazonas. A triste verdade é que desencanamos e os resultados do nosso descaso estão aparecendo. 

A média móvel de vítimas diárias pela doença voltou a superar 1000 pessoas e já somos mais de 207 mil famílias enlutadas no Brasil [5]. Chegamos a níveis de ocupação hospitalar mais altos do que no primeiro semestre, e desta vez não temos toda a capacidade criada no começo da pandemia para expandir o atendimento. O Amazonas desativou 85% dos leitos de UTI que tinha criado em resposta à pandemia; o hospital de campanha do Pacaembu foi fechado ainda no primeiro semestre e os do Ibirapuera e do Anhembi no meio do segundo semestre. O governador do Amazonas tinha determinado o fechamento do comércio no final do ano para limitar a disseminação do vírus, mas foi forçado a voltar atrás por pressão de comerciantes e políticos [6]. O maior cargueiro da FAB, que poderia transportar tanques de oxigênio para Manaus ou vacina para todas as partes do país foi enviado no começo da semana para os Estados Unidos, onde ficará fazendo exercícios militares até o dia 5 de fevereiro. 

Em um artigo excelente do rabino Ruben no Estadão de segunda-feira, ele tratou da questão da vacina e da priorização à vida. Em uma metáfora bastante adequada, ele perguntou:

Se diante de um prédio em chamas a equipe de bombeiros começasse a debater preços, materiais, estratégias, hierarquias ou teologias, enquanto morre grande parte dos moradores, seguramente essa equipe seria processada e condenada. Pelo menos por omissão. Em algumas sociedades, por homicídio. Mais ainda se abandonasse o prédio para se dedicar a qualquer outro afazer, em vez de salvar vidas. [7]

A questão, no entanto, é que os moradores do prédio, vendo a construção  toda em chamas, continuam em suas festas particulares, sem se importar com os resultados terríveis do seu descaso.

No comecinho da nossa parashá, em uma passagem que leremos amanhã no serviço de Shacharit, Deus disse a Moshé:

Eu sou ה׳. Eu apareci a Avraham, a Itschac e a Iaacov como El Shadai, mas eu não Me revelei a eles pelo meu nome ה׳. (…) Eu escutei os gritos dos israelitas porque os Mitsrim os escravizam e eu me lembrei do nosso pacto. [8]

Eu escutei os gritos dos israelitas, שָׁמַעְתִּי אֶת־נַאֲקַת בְּנֵי יִשְׂרָאֵל, prestem atenção ao verbo שָׁמַעְתִּי, da  mesma raíz que Sh’má.

Em contraposição, o faraó é representado na parashá como alguém cujo coração está endurecido, que não tem a capacidade de notar o sofrimento alheio ou de escutar o grito que sua opressão está causando. Nesta passagem, é a empatia com a dor do outro que diferencia a conduta de Deus e a do faraó.

Como disse o Kedushat Levi, Deus aparece de distintas formas a cada geração, levando em consideração suas necessidades e potencial. Esse é o momento de permitir que nossas fagulhas divinas escutem os gritos vindo da nossa sociedade e passem a tomar conta da torre para que o fogo do farol não a consuma completamente.

שמע ישראל, Sh'má Israel: este é momento, esta é a hora.

Shabat Shalom,


sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Dvar Torá: Nossa obrigação de evitar um novo Mitsrayim nas nossas cidades (CIP)


Um ditado americano diz que “old habits die hard”, “antigos hábitos demoram a morrer”. Antes de ser rabino, eu era economista e a história da Torá que começou na parashá da semana passada e termina na desta semana é um prato cheio para economistas. Para quem não se lembra, Iossêf é a única pessoa capaz de escutar com atenção e, assim, interpretar os sonhos que angustiavam o faraó, o rei do Egito. Ele corretamente prevê que a região passará por sete anos de fartura, aos quais se seguirão sete anos de escassez. Alçado à posição de vice-rei, ele desenvolve um plano para estocar alimentos durante os sete primeiros anos, de tal forma que o Egito pudesse sobreviver ao desafio dos sete anos seguintes.

É aí que minha cabecinha de economista começa a girar…. minha abordagem às histórias da Torá não implica acreditar nelas como historicamente verdadeiras, mas sempre procurar a verdade religiosa que elas refletem — e mesmo assim, eu não consigo evitar pensar na logística de todo este esquema de armazenagem. Quantos silos teriam que ser construídos para armazenar todos estes grãos? Eles estavam distribuídos por todo o território? Como fazer para que a comida não estragasse ao longo de tantos anos? A produtividade dos primeiros sete anos teria sido suficiente para garantir que, guardando apenas 20%, todas as pessoas do Egito pudessem sobreviver à seca tranquilamente? Será que durante os anos de fartura, as pessoas já foram apertando o cinto para que sobrasse mais produção para o período seguinte?

Mas é no final dessa história que aparece meu maior incômodo, já na parashá que lemos nesta semana. Os sete anos de escassez começaram e Iossêf vendia para a população o que tinha acumulado nos anos anteriores: primeiro, em troca de prata; depois, quando ninguém mais tinha prata para trocar, em troca dos animais que os camponeses tinham; quando eles não tinham mais animais, eles entregaram suas terras em troca de grãos –– e assim, toda a terra do Egito passou a ser propriedade do Faraó, exceto pelas terras que pertenciam aos sacerdotes. Dali em diante, Iossêf estabeleceu um sistema através do qual ele entregava sementes para que os camponeses egípcios cultivassem a terra do faraó — o resultado da produção era dividido: 80% para os que trabalharam a terra e 20% para o faraó.

Enquanto a região toda passava fome e vinha ao Egito conseguir comida, o plano de Iossêf parece ter funcionado — tanto que os próprios camponeses , destituídos da sua terra e da sua liberdade, declararam que ele havia lhes dado vida [1]. No entanto, a forma como tudo foi desenvolvido gerou uma extrema concentração da riqueza egípcia nas mãos do faraó. Passados os 14 anos, sete de fartura e sete de escassez, as coisas não voltaram a ser como eram…. agora, o Faraó era dono de praticamente todas as terras do Egito, a única exceção sendo o que já pertencia à elite dos sacerdotes.

A capa da Folha de São Paulo de hoje apresenta uma foto [2] que tenta reproduzir o impacto de outra, publicada em 2004 em um caderno especial sobre os 450 anos da fundação da cidade, que havia sido tirada pelo fotógrafo Tuca Vieira e que ganhou vários prêmios internacionais [3]. Em comum, as duas fotos expõem a divisa entre a favela de Paraisópolis e o bairro do Morumbi. Na edição de hoje, a foto ilustra uma matéria sobre como a recuperação econômica será diferente para pessoas com empregos formais e aqueles que atuam sem carteira assinada. Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas, afirmou à matéria: “A mãe de todas as desigualdades é a desigualdade de educação, que vinha caindo há 40 anos. Isso não só foi interrompido, mas revertido pela pandemia. É uma cicatriz, que tem efeitos permanentes. O vento que soprava a favor começa a soprar contra. Isso vai deixar sequelas. (…) Isso gera um efeito cicatriz. Para as pessoas que param os estudos e vão para o mercado de trabalho em uma época adversa, o rendimento do trabalho deles, anos depois, e outros indicadores dessa geração, como o de violência, são afetados de forma mais permanente.” [4]

Assim como no Egito do Faraó, um resultado claro da crise pela qual estamos passando será, portanto, um processo de profunda concentração de renda, tornando ainda mais agudas as injustiças sociais sistêmicas com as quais convivemos e com as quais nos acostumamos. No começo, falávamos do caráter universal da pandemia, que atingia ricos e pobres da mesma forma; nove meses depois, não podemos mais nos iludir com essa falácia. A verdade é que a crise tem atingido de forma muito distinta o centro e a periferia das nossas cidades, mesmo que as vezes a separação entre o centro e a periferia seja só um muro — e olhando as fotos da Folha, não havia motivo algum para um dia termos acreditado que seria diferente.

Todos nós conhecemos o final da história que começa com Iossêf. Os hebreus eram parte do segmento privilegiado por sua associação com Iossêf, o vice-rei, e, assim, ficaram protegidos. Passado algum tempo, no entanto, um novo faraó subiu ao poder, um que não se lembrava mais quem Iossêf tinha sido. Em uma sociedade brutalizada pela concentração de riquezas e de poder, a decisão de escravizar um povo inteiro e de aniquilá-lo não pareceu tão absurda.

Da nossa experiência sob opressão no Egito, vem a mitsvá mais vezes repetida na Torá inteira: não oprimir o estrangeiro porque nós fomos estrangeiros na terra do Egito. Em linguagem bíblica, o estrangeiro — muitas vezes associado às viuvas e aos órfãos — é o exemplo paradigmático do oprimido, dos segmentos mais vulneráveis das nossas sociedades. É nossa obrigação judaica garantir que os efeitos nefastos desta pandemia não aprofundem ainda mais as injustiças da nossa sociedade ou penalizem de forma desproporcional quem tem menos recurso para se defender. Ainda que não esteja claro como será a vacinação no Brasil, as experiências internacionais nos dão alguma razão para um pouco de otimismo de começarmos a ver a luz ao final deste longo túnel que já custou a vida de mais 190.000 brasileiros e precisamos garantir que esta luz brilhe em todos os seus aspectos para todos da mesma forma.

Como o rabino Ruben muito bem disse na live antirracista de domingo passado, citando Heschel, “não somos todos culpados, mas somos todos responsáveis.”

Façamos nossas vozes serem ouvidas, através da forma como escolhemos gastar nosso dinheiro, pressionando nossos políticos individual e institucionalmente, nos manifestando publicamente para que o גר, o estrangeiro, o vulnerável, não pague mais uma vez a conta por todos nós.

Shabat Shalom!


domingo, 20 de setembro de 2020

Dvar Torá: Um convite para construirmos juntos o novo anormal (CIP)


Há alguns anos, estava na moda falar no efeito borboleta, parte da teoria do caos que dizia que o bater de asas de uma borboleta no Japão poderia explicar a formação de um tornado nos Estados Unidos. A ideia era que pequenas mudanças nas condições iniciais de um sistema pudessem explicar grandes diferenças nos resultados finais [1].

Em 5780, nós vivemos nossa própria versão do efeito borboleta. Um vírus que começou a se espalhar em uma cidade na China da qual a maioria de nós nunca tinha ouvido falar gerou impactos no mundo todo. Gente que nunca foi pra China, gente que nunca saiu da sua cidade no interior da África ou da sua tribo indígena no meio do Brasil foi impactada pela pandemia de Covid-19. Há muitas décadas, o discurso ambientalista tem destacado que nossos destinos pessoais estão intrinsicamente conectados com o  destino do resto do planeta e que políticas de proteção da natureza têm que ser pensadas em escala global porque a consequência de não fazer nada também é global.  A crise do Corona Vírus parece ter fortalecido o argumento de que não apenas em questão do meio-ambiente, mas também em questões de saúde pública, estamos todos no mesmo barco, não é possível encontrar soluções que salvem só alguns enquanto o resto da humanidade continua vulnerável.

Daqui a alguns minutos, nós vamos cantar o Aleinu de Malchuiot, aquela versão do Aleinu na qual fazemos a prostração total até que nossas testas toquem o chão. Apesar de atualmente encerrar os três serviços diários: shacharit, minchá e arvit, a origem do Aleinu está na liturgia de Rosh haShaná. Há tradições que atribuem sua redação a Iehoshua, o sucessor de Moshé, ainda na época da conquista da Terra de Israel, e normalmente é entendido que Rav, um sábio da época do Talmud, estabeleceu que o poema deveria ser lido antes da seção de Malchuiot em Rosh haShaná. Foi só muitos séculos depois, que o Aleinu se estabeleceu como parte da liturgia diária [2].

Eu confesso que, assim como muitos outros judeus liberais, eu tenho sérios problemas com as primeiras frases do Aleinu. Em sua tradução literal elas dizem: “Nós devemos louvar o Senhor de tudo e expressar a grandeza ao Criador do universo, que não nos fez como as nações das terras e não nos colocou como as famílias do solo, que não fez nossa parte como as deles, nem nosso destino como o de todos eles”. Muitas são as comunidades liberais que mudaram estas linhas nos seus sidurim; outras, como a CIP, mantiveram o original em hebraico mas suavizaram a tradução — vocês podem checar na página 150 do Machzor de Rosh haShaná. 

Há alguns bons anos, eu protestei junto a um professor querido, perguntando por que mantínhamos estas linhas nas nossas rezas diárias. Sua resposta foi que nenhum judeu liberal acredita neste texto e que só o mantemos para honrar a tradição. O problema, na minha opinião, é que ao repetirmos estas palavras três vezes ao dia, corremos o risco de acabar acreditando no que elas dizem. Podemos achar que é possível um futuro no qual o nosso destino não esteja totalmente conectado com o que acontecer com os outros doze milhões de habitantes da cidade de São Paulo ou até mesmo com os outros 7 bilhões de seres humanos com quem compartilhamos o planeta.

Em uma das passagens mais complicadas da Torá, que lemos ontem de manhã, depois que seu filho Itschak nasceu, Sará pediu a Avraham que expulsasse Hagar e seu filho, Ishmael, que também era filho de Avraham e assim ele o fez. O motivo alegado era para que “o filho desta escrava não receba a herança junto com meu filho, com Itschak” [3]. Que ilusão da nossa primeira matriarca! Apesar da expulsão, os descendentes de Itschak e de Ishmael continuamos disputando esta herança até hoje….não só do ponto de vista concreto, com cada lado argumentando que tem a mais sólida justificativa religiosa para possuir a terra de Israel, mas também no nível da narrativa: o quase sacrifício de Itschak, que tradicionalmente lemos no segunda dia de Rosh haShaná e sobre a qual conversaremos daqui a pouco, também faz parte da tradição muçulmana, só que lá o filho querido que Deus pede a Avraham para sacrificar é Ishmael [4]. 

As correntes de água e as massas de ar são apenas parte da entropia natural do universo, que faz com que soluções que separem o “nosso” destino do “deles” nunca funcionem.

Neste Dia do Julgamento, um dia em que a prática de tshuvá, o reconhecimento dos nossos erros tem papel central, é importante reconhecermos como permitimos que a mentalidade do Aleinu  determinasse muitas das nossas ações no ano que está terminando: deixamos de ir aos supermercados e aos restaurantes para nos proteger da Covid, enquanto ciclistas e motociclistas dos aplicativos, muitas vezes sem dinheiro para fazer nenhuma refeição nos longos dias que passavam entregando comida para os outros, se expunham aos riscos de contaminação, sem qualquer direito trabalhista [5]. Nos orgulhamos das altas taxas de sucesso dos nossos hospitais para recuperação de pacientes com Covid enquanto os hospitais da periferia, aqueles que tratam nossos co-cidadãos que continuaram se expondo no transporte público e trabalhando nos supermercados, nos açougues, nas farmácias, nas empresas de entrega, tinham pacientes morrendo em taxas absolutamente alarmantes, algumas vezes acima de 90% [6]. Buscamos refúgio em condomínios no interior e no litoral [7] [8], ao mesmo tempo em que boa parte da cidade continuava apertada em seus espaços na periferia ou, ainda pior, jogada nas ruas sem proteção alguma.

Frente a uma realidade que unia todos os destinos, continuamos achando que Deus “לֹא שָׂם חֶלְקֵנוּ כָּהֶם, וגוֹרָלֵנוּ כְּכָל-הֲמוֹנָם” “não fez nossa parte como as deles, nem nosso destino como o de todos eles” e operando dentro desta visão de mundo. Da bondade dos nossos corações, é bem verdade, desenvolvemos inúmeras ações de ajuda, mas foram poucas as que realmente vieram do lugar da Tsedacá, o conceito judaico de justiça social, que entende que o nosso compromisso com o bem-estar do próximo não deve depender da nossa generosidade, mas de uma obrigação permanente para com a construção de uma sociedade justa — que se manifesta tanto no desenvolvimento de ações emergenciais, quanto na luta pela transformação das estruturas que permitiram tanta desigualdade e injustiça.

Agora, temos que imaginar o mundo daqui pra frente e a expressão “novo-normal” me assusta. Nos acostumamos com situações inóspitas quando elas se repetem e se transformam em rotineiras. É um mecanismo de defesa importante, que permite, por exemplo, que saiamos de casa em São Paulo ou no Rio de Janeiro, apesar dos altos números de violência urbana — mas este mesmo mecanismo de defesa pode nos levar a enxergar o inaceitável como normal.

Passamos a aceitar um ritmo mensal de mais de 20.000 vidas perdidas no Brasil para a Covid-19 como se fosse normal; nos acostumamos a aceitar o Pantanal e a Amazônia queimando, cada ano a ritmo recorde, como se fosse normal; nos acostumamos a aceitar famílias inteiras vivendo nas calçadas das nossas ruas como se fosse normal; nos acostumamos a aceitar pacientes morrendo nos corredores dos hospitais públicos da cidade mais rica do Brasil como se fosse normal. 

A verdade é que eu não quero voltar pra esse normal. Eu quero te convidar a imaginar como podemos sair deste estado de coisas e sonhar com a transformação da nossa cidade, da nossa sociedade, do nosso sentido de responsabilidade mútua uns com os outros. Como Avraham, o hebreu contestador sobre quem o rabino Michel falou na 6a feira, eu quero ter a coragem de estar na outra margem, de imaginar como poderia ser e não só descrever como é.

À mentalidade das primeiras linhas do Aleinu, à ideia de que nós temos direito a um destino diferenciado, se opõe a perspectiva da criação de um único ser humano, masculino e feminino, criado à imagem Divina, que comemoramos em Rosh haShaná. De acordo com a Mishná, Deus fez que toda a humanidade descendesse de uma única pessoa para que um não pudesse dizer ao outro “meu pai é maior que o teu” [9]. Estamos juntos nesse bote salva-vidas e somos todos necessários para manter seu equilíbrio. Não há sobrevivência que não envolva cuidarmos uns dos outros.

Deus, a energia viva que corre em todos nós, que hoje estabelece este tribunal em que apresentamos nossas histórias e pedimos a inscrição no Livro da Vida, nos urge a considerar nossa responsabilidade em sermos guardiões de todos os nossos irmãos.  Não sejamos como Cain, o primeiro assassino da Torá, que perguntou a Deus, de forma desafiadora “?הֲשומֵר אָחִי אָנוכִי ”, “E eu sou o guardião do meu irmão?!” [10] Que em 5781 possamos todos responder com um sonoro “Somos!”

Shaná Tová!


[1] https://en.wikipedia.org/wiki/Butterfly_effect
[2] https://en.wikipedia.org/wiki/Aleinu
[3] Gen 21:9-14
[4] https://en.wikipedia.org/wiki/Binding_of_Isaac#Muslim_views
[5] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/06/21/entregadores-se-unem-por-melhores-condicoes-de-trabalho-nos-aplicativos-entrego-comida-com-fome-diz-ciclista.ghtml
[6] https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/08/em-uti-de-hospital-da-zona-leste-de-sp-maioria-nao-sobrevive-a-covid.shtml
[7] https://www1.folha.uol.com.br/sobretudo/morar/2020/09/paulistanos-trocam-capital-pelo-interior-e-aquecem-mercado-de-casas-no-campo.shtml
[8] https://brasil.elpais.com/internacional/2020-08-03/bilionarios-se-preparam-para-o-fim-da-civilizacao.html
[9] Mishná Sanhedrin 4:5 
[10] Gen 4:9



sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Dvar Torá: Alinhando o que dizemos e o que fazemos (CIP)

Meu pai era arquiteto e foi em um apartamento construído pela construtora na qual ele trabalhou por mais de três décadas que eu cresci. Como em casa de ferreiro, o espeto é de pau, às vezes, na mesa de jantar, meu pai assumia o papel de construtor e minha mãe, o papel de cliente, e as discussões sobre algum aspecto do apartamento iam esquentando até parecerem um tribunal de pequenas causas.
Uma coisa que meu pai nunca conseguiu entender era a insistência da minha mãe para que os armários da cozinha tivessem fundo. Do ponto de vista dele, não tinha problema nenhum se, ao abrir um armário vazio, enxergássemos os azulejos, que são duráveis, fáceis de limpar e tinham sido escolhidos por serem esteticamente atraentes. Minha mãe, por outro lado, nunca abriu mão do fundo do armário da cozinha — e, como cliente tem sempre razão, ela sempre levou a melhor nesta disputa.
A parashá desta semana foca em questões de construção. Nela, começamos a receber as detalhadas instruções para a construção do Mishkán, uma espécie de Templo móvel, através do qual os hebreus poderiam focar seus esforços religiosos enquanto estivessem vagando pelo deserto. Em um verso famoso e interessante logo no começo da parashá, Deus diz a Moshé: “וְעָשׂוּ לִי מִקְדָּשׁ וְשָׁכַנְתִּי בְּתוֹכָם”, “[que eles] construam para mim um Santuário, para que eu possa viver entre eles.”[1] O texto não diz que Deus passará a viver no Santuário, cujas instruções de construção estão sendo transmitidas — mas que o processo de construção do Santuário fará com que Deus resida dentro do povo. Guardem essa ideia, que já vamos revisitá-la…
Como primeiro passo para a construção do Mishkán, vêm as instruções para a montagem do Arón, a arca na qual ficariam guardadas as Tábuas da Lei. Pra desespero do meu pai, as instruções para a construção do Arón concordam com a visão de armário da minha mãe e determinam que ele precisa ser revestido de ouro puro por dentro e por fora! Os Rabinos ficaram muito incomodados com esta instrução… pensem em uma caixa de jóias que vocês tenham: elas são, normalmente, decoradas pelo lado de fora mas de veludo preto ou vermelho do lado dentro. Porque a arca que conteria as Tábuas da Lei precisava ser revestida de ouro por dentro e por fora?! A resposta é dada em um midrash [2]: esta instrução veio para ensinar a um talmid chacham, um discípulo de sábio que תּוֹכוֹ כְּבָרוֹ, "tochô ke'varô", o que ele projeta para o mundo exterior deve corresponder ao seu interior. Nas palavras do rabino Hillel Silverman, “este é o real significado de integridade. O exterior de uma pessoa — suas palavras e ações — devem refletir seu caráter e personalidade interior. Nós devemos acreditar no que dizemos e dizer aquilo em que acreditamos.” [3]
O significado transmitido pelas nossas ações contam tanto quanto o significado transmitido pelas nossas palavras. Depois de me formar rabino, eu trabalhei nos EUA por alguns anos e, em 2013, eu voltei para o Brasil para assumir a Diretoria da Área Judaica do Peretz. Naquela época, nós organizamos alguns encontros com famílias do Fundamental 1 para discutir qual era a formação judaica que elas esperavam que a escola oferecesse. Havia quem pedisse mais hebraico e quem quisesse menos hebraico; quem quisesse um ensino mais religioso e quem quisesse menos; quem quisesse mais sionismo e quem pedisse menos. Em um assunto, no entanto: havia consenso — todo mundo queria que o ensino judaico da escola fosse em valores judaicos!
O que são estes valores judaicos? Pela frequência com que este termo é repetido, deveria ser alguma coisa absolutamente clara para todos nós, conceitos sobre os quais estaríamos prontos para palestrar sem aviso prévio. Será que vocês conseguem pensar em uma lista de dez valores judaicos em alguns segundos?
Aqui vai uma lista dos dez primeiros que vieram à minha mente:
  1. Be’tselem Elohim: a ideia de que fomos todos criados à imagem Divina, que nos confere dignidade inalienável;
  2. Shabat: um dia diferente dos outros 6 dias da semana, para desconectarmos do mundo como ele é e nos inspirarmos com como o mundo poderia ser;
  3. Le’dor va’dor: o profundo respeito pela tradição conforme ela tem sido transmitida e transformada de geração em geração;
  4. Tshuvá: a possibilidade permanente de retornarmos à melhor versão de quem somos;
  5. Elu ve’elu: a valorização do pluralismo judaico, reconhecendo que perspectivas contraditórias podem ser simultaneamente verdadeiras e válidas;
  6. Zachor et Ietsiát Mitsrayim: a valorização da liberdade física e espiritual;
  7. Zachor et asher assá lechá Amalek: a obrigação de buscar extirpar o mal do mundo;
  8. Ki guerim heeitem: a lembrança dos momentos em que fomos oprimidos e da nossa obrigação em ajudar aqueles que vivem sob opressão hoje em dia;
  9. Hachnassat Orchim: a hospitalidade, fazendo com que todos se sintam acolhidos, ouvidos e enxergados;
  10. Tsedacá: a generosidade do nosso tempo e dos nossos recursos.
תּוֹכוֹ כְּבָרוֹ, tochô kevarô, a ideia de que o nosso interior deve corresponder à impressão que deixamos no mundo , implica buscarmos praticar estes valores nos quais dizemos acreditar. Implica pensar no impacto das nossas ações, mesmo das ações cotidianas, que todo mundo faz sem pensar. Esta ano, encorajados por uma das nossas morot, abandonamos o uso de glitter e de purpurina no programa de Bar e Bat-Mitsvá da CIP. Sim, é divertido; sim, todo mundo usa; mas os impactos ambientais são terríveis e nós consideramos que não fazia sentido ensinarmos aos nossos alunos sobre as formas como o Judaísmo valoriza o meio-ambiente quando nossas ações testemunhavam na direção contrária. 
Nossas ações dizem tanto quanto nossas palavras, talvez até mais. Se queremos criar espaço para o sagrado em nossas vida, um Templo que possamos carregar a todo lugar a que vamos, de tal forma a garantir que Deus se aloje entre nós, o primeiro passo precisa ser garantir que o nosso revestimento de ouro, nossa melhor aparência, não seja só pra inglês ver, que ela tenha tanto impacto do lado de dentro quanto tem do lado de fora.
Martin Buber conta que o mestre chassídico Mendel de Kotzk perguntou aos seus discípulos: “onde é a morada de Deus”, ao qual eles lhe responderam sem pensar duas vezes: “מְלֹא כָל הָאָרֶץ כְּבוֹדוֹ”, “todo o mundo está cheio da Glória de Deus”. O rabino, então, respondeu sua própria pergunta: “Deus mora em todo lugar em que deixamos Deus entrar.” [4]
וְעָשׂוּ לִי מִקְדָּשׁ וְשָׁכַנְתִּי בְּתוֹכָם”,  quando criarmos o alinhamento entre nossas declarações, nossas ações e nossos desejos, quando formos prova viva dos valores que dizemos querer preservar, tenho certeza de que Deus estará entre nós.

[1] Ex. 25:8
[2] Midrash Tanchuma Vayakhel 7:3.
[3] Harvey J. Fields, A Torah Commentary for Our Times: Volume Two, Exodus and Leviticus. UAHC Press: New York. 1991. p. 67
[4] Harvey J. Fields, A Torah Commentary for Our Times: Volume Two, Exodus and Leviticus. UAHC Press: New York. 1991. p. 64