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sexta-feira, 10 de março de 2023

Dvar Torá: O Bezerro de Ouro e a rejeição das evidências (CIP)


Você acredita em vida inteligente extraterrestre? Eu não consegui encontrar estatísticas para o Brasil, mas de acordo com uma pesquisa recente sobre a população norte-americana realizada pelo Pew Research Center, cerca de 2/3 da população americana acredita em inteligência existindo fora do nosso planeta. Como várias outras estatísticas, o índice muda bastante dependendo do sub-grupo da população que consideramos: 76% das pessoas entre 18-29 respondem favoravelmente enquanto apenas 56% das pessoas acima de 65 anos respondem da mesma forma. 69% das pessoas asiáticas concordam que há vida inteligente em outros planetas enquanto apenas 61% das pessoas negras dizem o mesmo. O curioso pra mim foi ver como a religião impacta estes números: para pessoas que dizem que a religião é muito importante para elas, apenas 49% declararam acreditar em vida inteligente extraterrestre, enquanto para pessoas para quem a religião não é nada importante, 83% responderam da mesma forma.

Vamos, só para um exercício mental, imaginar que você NÃO acredite em vida inteligente fora da Terra. Então, um dia, você acorda e encontra o céu lilás, com uma imensa espaçonave estacionada no meio do céu. Você liga a TV e descobre que a mesma coisa aconteceu ao redor de todo o mundo; que todas as 8 bilhões de pessoas que vivem no mundo estão vendo uma espaçonave flutuando sobre suas cabeças. Eu gostaria de imaginar que a imensa maioria das pessoas, mesmo aquelas que se declaravam absolutamente convencidas de que não existia vida inteligente em outros planetas, teria mudado de opinião, considerando a força da evidência que lhes foi apresentada.

Eu digo “gostaria de imaginar” porque os fatos e as evidências têm perdido cada vez mais sua potência de convencimento frente às crenças e às opiniões. Se alguém acredita que seres humanos e todos os animais foram criados no 6º dia da Criação e lhe é apresentada evidência de que os  dinossauros viveram 65 milhões de anos antes do aparecimento dos primeiros humanos, a pessoa pode responder que os dinossauros carregados na Arca de Noé eram bebês ou que as inúmeras lendas sobre dragões são evidência de que a humanidade e os dinossauros viveram ao mesmo tempo. A minha favorita, que parece estar caindo de moda mesmo entre os criacionistas, diz que os fósseis de dinossauros que indicam que eles são milhões de anos mais velhos que os humanos, são “evidência plantada” para testar nossa fé. 

Podemos encontrar exemplos mais recentes e relevantes de como as evidências estão perdendo importância — as dúvidas crescentes sobre a eficiência das vacinas, mesmo depois de termos praticamente erradicado o sarampo, a poliomielite, a rubéola e a difteria no Brasil, graças a campanhas extremamente bem sucedidas de vacinação. Se olharmos as curvas de infecções e mortes por Covid dos últimos três anos, perceberemos que, após a introdução da vacinação, a doença se tornou muito menos transmissível e, ainda mais importante, muito menos letal. Há quem não acredite que a terra seja uma esfera, apesar de continuar assistindo programas transmitidos por satélites estacionados sobre o globo terrestre. Meu pai, que fumava dois maços de cigarro por dia, estava entre as pessoas que se recusavam a aceitar qualquer relação entre o fumo e o câncer — nem preciso dizer que ele faleceu de câncer do pulmão aos 66 anos.

Na parashá desta semana, a narrativa, que estava focada nas instruções para a construção do Mishcán, retorna ao momento em que Moshé subiu ao Monte Sinai para receber a Torá. Ao final dos 40 dias em que ele passa lá, Deus pede que ele se apresse pois o povo havia agido de forma detestável. Eles tinham construído um bezerro de ouro e disseram: “este é o seu deus, ó Israel, que te tirou da terra do Egito.”

O povo, que tinha acabado de ser libertado do Egito através da ação Divina em 10 golpes que iam da transformação da água do rio Nilo em Sangue à morte de todos os primogênitos do Egito, que tinha visto o mar se abrir à sua frente para que pudessem cruzar em segurança e como ele tinha se fechado afogando as tropas egípcias que os perseguiam; o mesmo povo que tinha vivenciado as primeiras Dez Afirmações da Revelação no Monte Sinai e que, amedrontado, tinha pedido a Moshé que só ele falasse com Deus dali pra diante. Esse povo, que tinha recebido todas estas evidências da sua relação especial com Deus, tinha resolvido negá-las e adotar uma escultura de ouro, que eles mesmos tinham criado a partir de seus brincos, como seu redentor.

Ninguém precisa acreditar nessa história de forma literal para perceber que há aqui um processo de construção de realidade paralela desconectada da experiência que cada uma daquelas duas milhões de pessoas tinha vivenciado.

Por que será que é tão fácil nos deixarmos seduzir por narrativas paralelas deste tipo, desconectadas de toda evidência empírica que temos a nosso dispor?

As pessoas que estudam este fenômeno, o negacionismo, falam em quatro motivos para que as pessoas neguem as evidências desta forma:

1- a informação vem de uma fonte que eles percebem como não confiável, em particular com viés contrário às posições na qual essas pessoas acreditam (como uma abordagem anti-religiosa, por exemplo)

2- pertencimento a um grupo social que se opõe a esta perspectiva. Eu recentemente escutei em um podcast que algumas pessoas iam se vacinar fantasiadas para garantir que seus amigos, contrários à vacinação, não soubessem que elas tinham quebrado as normas do grupo; 

3- a informação contradiz o que eles acreditam ser verdadeiro, bom ou valioso. Neste caso, há uma contradição entre a conclusão para a qual as evidências apontam e algum valor muito importante para estas pessoas e elas se recusam a abrir mão dele. Naomi Oreskes, professora de história da ciência na Universidade de Harvard, “essas pessoas não rejeitam a ciência porque não têm fatos suficientes. Eles rejeitam a ciência porque acham que ela vai contra seus valores ou ideologia”.  O resultado desta negação das evidências leva a uma dissonância cognitiva, que gera desconforto. Um artigo publicado nos anais da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos afirma que “dado esse sentimento aversivo, as pessoas são motivadas a resolver a contradição e eliminar o desconforto de várias maneiras, como rejeitar a nova informação, banalizar o tópico, racionalizar que não há contradição ou revisar seu pensamento existente (…) Criticamente, as pessoas tendem a resolver a dissonância usando o caminho de menor resistência. Para uma pessoa que fumou a vida toda, é muito mais fácil rejeitar ou banalizar as evidências científicas sobre os riscos do fumo à saúde do que alterar seu hábito arraigado. Com a dissonância, a intransigência das crenças existentes se assemelha à rigidez dos comportamentos existentes: é mais fácil rejeitar uma informação científica do que revisar todo um sistema de crenças existentes que se acumulou e integrou a uma visão de mundo ao longo dos anos, muitas vezes reforçada pela influência social. consenso.”.

4- a informação é entregue usando uma linguagem ou meio diferente daquele como a pessoa concebe este assunto. Por exemplo, quando ações concretas de consumo ético são propostos para resolver quetões consideradas abstratas como a mudança climática ou exploração do trabalho em formas análogas à escravidão, muitas vezes elas são rejeitadas de cara, sem que seu mérito seja considerado.

Todos nós rejeitamos a evidência uma vez ou outra. Algumas vezes são questões banais com a qual ninguém se importa realmente. Outras, são questões que determinam o destino de toda uma geração, como o que aconteceu com a geração do Êxodo e sua falta de entendimento de que havia sido ה׳, um Deus sem corpo, diferente das divindades que o povo tinha conhecido no Egito, que os tinha redimido da escravidão; ou a qualidade da vida que nossos descendentes terão neste planeta quando as temperaturas médias crescentes levarem a desastres naturais ainda mais radicais e devastadores do que os temos vivenciado nos últimos anos; ou ainda o retorno de doenças que haviam sido erradicadas do Brasil e que retornaram porque as pessoas deixaram de acreditar na eficiência e necessidade da vacinação de todos.

Após todas as crises, nossa parashá avança para um final feliz, com Deus e Moshé se encontrando face-a-face e Moshé retornando ao Monte Sinai para, depois de 40 dias sem incidentes, descer com o segundo jogo de tábuas da Lei. De acordo com o rabino Art Green, a relação renegociada entre Deus e o povo Judeu. As primeiras tábuas tinham sido obra do trabalho exclusivo de Deus, como se um lado tentasse impor ao outro as condições do Pacto. O segundo jogo de tábuas foram resultado conjunto do trabalho humano e Divino, condições mutuamente pactuadas e que, portanto, acolhiam e obrigavam a todos.

Que consigamos todos re-pactuar as condições da nossa convivência social, de tal forma que consigamos aceitar como verdadeiras as evidências à nossa frente e adotar condutas que amenizem os riscos e potencializem os ganhos para nossa vida conjunta nesse país e nesse planeta.

Shabat Shalom!

 

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Dvar Torá: Valorizando a incerteza (CIP)


Em algum momento da minha adolescência nos anos 80, o Hotel Transamérica no Morumbi começou a organizar festivais gastronômicos para os quais ele convidava chefs de restaurantes internacionais famosos. Em um deles, em 1986, organizou um jantar do restaurante em Roma no qual nasceu o famosos fetuccini Alfredo. Meu irmão, fã do prato e curioso por experimentá-lo na versão original, convenceu meus pais a levá-lo. Minha mãe, então, me fez a seguinte proposta: como o jantar era caro e eu não ligava tanto para o tal fetuccini, ela me daria outro presente do mesmo valor. Com quinze anos e a absoluta certeza da carreira que gostaria de seguir na vida, aceitei a oferta e pedi um livro de computação gráfica.

A computação gráfica, que hoje faz parte do nosso cotidiano, ainda não era tão popular naquele tempo. A Bela e a Fera, no qual a cena da dança foi parcialmente desenvolvida com computação gráfica, só saiu em 1991. Toy Story, o primeiro longa-metragem inteiramente desenvolvido por computação gráfica, é de 1996. Na época, minha paixão eram as curtas e interessantes vinhetas da TV Globo, obras do gênio criador de Hans Donner.

O que me interessava no livro que eu ganhei no lugar do jantar eram as lindas imagens, mas por trás daqueles modelos super realistas criados em computador estavam fórmulas matemáticas complexas. Computação Gráfica é a área da Ciência da Computação que transforma números, fórmulas e algoritmos em imagens que, com o tempo, foram ficando praticamente idênticas ao mundo real.

Como seria possível que números pudessem descrever a realidade física? Max Tegmark, um físico suéco, autor do livro Our Mathematical Universe, argumenta que o mundo físico é um “gigantesco objeto matemático.” [1] Na mesma linha de argumentação, Galileo dizia que “a Matemática é o alfabeto com o qual Deus escreveu o universo.” [2]

Mark Schaefer, autor de “A Certeza de Incerteza”, afirma que uma das vantagens da matemática como linguagem é o fato de que ela está sujeita a muito menos ambiguidade do que outros campos do conhecimento. “Não há uma tradição alternativa de matemáticos que discute se 2+2=4, nem há matemáticos dissidentes que mantém que 2+2=5 e consideram o resto hereges desesperadamente equivocados.” [3] Por isso, matemática poderia ser um sistema no qual a certeza poderia existir. O rabino David Curiel, por outro lado, argumenta que a certeza de que cada problema matemático tem uma resposta desaparece quando consideramos a Matemática Avançada [4]. Na mesma linha de demonstrar como a realidade dos estudos mais avançados de matemática diferem da nossa experiência de um campo do conhecimento no qual a certeza é possível, “O (…) físico Erwin Schrodinger disse que um modelo de representação da realidade quântica completamente satisfatório ‘não era apenas praticamente inacessível, mas até mesmo impensável.’ E ele adicionou: ‘Para ser preciso, podemos, claro, pensá-lo, mas está errado.” [5]

Pensando na prédica desta semana, eu me detive bastante nas nossas certezas e dúvidas, no espaço que damos para ambiguidades e quando exigimos respostas únicas.

É na parashá desta semana que, depois da libertação de Mitsrayim, da abertura do mar, do encontro com o Divino no Monte Sinai. Moshé demora 40 dias para voltar com as Tábuas e o povo constrói um bezerro de ouro e começa a adorá-lo. Apesar de terem vivido interações com o Divino com as quais nossa geração pode apenas sonhar, os hebreus precisavam de algo mais concreto, precisavam de certezas mais absolutas, e as encontraram na forma de uma estátua de ouro.

Em vários trechos da nossa tradição, a construção do bezerro de ouro é associada a busca de certezas absolutas e inquestionáveis. Esta pessoa é boa e aquela é má; uma cultura valoriza a vida enquanto a outra só cultua a morte; esta ideologia é certamente muito superior àquela outra. Em troca destas verdades, abrimos mão do nosso senso crítico e da nossa capacidade de questionar com sinceridade. O mestre chassídico Mordechai Yosef Leiner, mais conhecido como o Ishbitzer e pela sua obra mais famosa, o Mei haShiloach, escreveu que “a ansiedade das pessoas é que elas têm tanto medo de entrar no reino da dúvida, e por isso, há quem afirme que teria sido mais confortável se o humano não tivesse sido criado”. [6] De acordo com o rabino Leiner, Deus plantou אילנא דספיקא, ilna desfeica, "a árvore da dúvida", neste mundo, e esta é a fonte da nossa ansiedade.

De alguma forma, Moshé descia do Monte Sinai carregando uma outra forma de certeza: as Tábuas do Pacto, uma outra forma de dar concretude à relação abstrata entre Deus e o povo de Israel. Ao se deparar com a adoração ao Bezerro de Ouro, ele atirou as Tábuas ao pé da montanha, destruindo-as. Aquelas eram as Tábuas da certeza, esculpidas por Deus e inscritas por Deus. Naquele ato, Moshé pôs fim a qualquer expectativa que pudéssemos ter de que nossa tradição seria construída sobre respostas absolutas.

Quem me conhece sabe que eu adoro o papel de advogado do diabo, de nos questionarmos sobre quase tudo, de revirarmos nossas certezas até não termos bezerros de ouro para nos apegarmos. Por isso, a história de adorarmos nossas certezas me traz um incômodo particular.

No entanto, vivemos em tempos estranhos…. tem gente por aí argumentando que as vacinas incluem chips para nos controlar; há quem fale que a Terra é chata; há quem negue a ciência do aquecimento global. Semear a dúvida para colher o conflito se tornou um negócio através do qual algumas das maiores empresas do planeta ganham muito dinheiro. Ao invés de ser usada para acolher, a dúvida tem sido usada para excluir; ao invés de ser usada para salvar, ela tem servido a quem quer te colocar em risco. 

Eu adoraria oferecer aqui uma fórmula matemática que nos permitisse identificar as dúvidas construtivas, que nos levam a aprimorar nossas respostas das dúvidas destrutivas, que apenas criam discórdia sem aprimorar nada. Infelizmente, abri mão há muito tempo da certeza que eu um dia tive de que era na computação gráfica que encontraria meu futuro profissional e, com ela, a crença em respostas automatizadas para problemas complexos. Não existe resposta mágica e cada um precisa usar seu discernimento e senso crítico.

No finalzinho da parashá, Deus instrui Moshé a esculpir um novo par de Tábuas. Desta vez, elas não seriam o produto exclusivo do Divino, mas o resultado da parceria entre Deus e a humanidade. Por desenho, a dúvida foi incluída no segundo jogo de Tábuas [7]. As tábuas seriam o resultado do esforço humano e a inscrição seria Divina.

Além disso, Rashi nos conta que os fragmentos das Tábuas quebradas foram colocados na Arca Sagrada junto com o novo jogo de Tábuas. Assim, nos lembraríamos constantemente do risco de certezas absolutas, representado tanto pelos fragmentos quanto pelo Bezerro de Ouro.

Como se ainda precisássemos de mais lembretes, a parashá desta semana nos presenteia com mais um episódio que questiona as regras absolutas.  Moshé pede para ver a face de Deus, que lhe responde: “Farei com que toda a Minha bondade passe diante de você e proclamarei diante de você o nome ה׳ e o favor que concederei e a compaixão que demonstrarei, mas você não poderá ver Minha face pois um ser humano não pode ver Minha face e viver.” Ora…. 9 versos antes desta afirmação, a Torá afirma “וְדִבֶּר ה׳ אֶל־מֹשֶׁה פָּנִים אֶל־פָּנִים כַּאֲשֶׁר יְדַבֵּר אִישׁ אֶל־רֵעֵהוּ”, "vediber Adonai el Moshé panim el panim, caasher idabêr ish el-reeêhu", “Moshé falava com ה׳ face-a-face, como uma pessoa fala com a outra.” [8]

Há momentos em que temos praticamente certeza de termos estado em contato com o que há de mais verdadeiro no mundo, de termos encontrado face-a-face a verdade mais verdadeira que existe. E, apesar de relatar os momentos em que isso acontecia na relação entre Moshé e Deus, a Torá também reconhece que isso é impossível. O mais alto a que podemos almejar é ver o Divino, a verdade, a certeza, pelas costas, com um certo tempero de dúvida, como Deus ofereceu para Moshé.

Que o objetivo de toda dúvida seja sempre avançar, acolher, melhorar, aperfeiçoar. Que neste ano, no qual tendemos a fecharmo-nos cada um na sua verdade, consigamos permanecer abertos para escutar e para enxergar, para considerar, para duvidar, para conversar. Que dessa forma, em comunidade e nos apoiando mutuamente, consigamos lidar com a ansiedade de vivermos em um mundo de dúvidas.

Shabat Shalom,



[1] Max Tegmark, Our Mathematical Universe, p. 246, de acordo com citação em The Certainty of Uncertainty p. 108
[2] Mark Schaefer, “The certainty of uncertainty”, p. 107
[3] Mark Schaefer, “The certainty of uncertainty”, p. 107
[5] Martland, Religion as Art, p. 166 citado em The Certainty of Uncertainty, p. 112
[6] Mei HaShiloach, Mei HaShiloach Anthology, Talmud, Eruvin 13b:1
[7] Rashi comentando Deut. 10:2
[8] Ex. 33:11

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Dvar Torá: Expandido nossa perspectiva da Torá (CIP)


Quando eu morava em Israel, e lá se vão mais de 20 anos, havia um jogo mental que os israelenses gostavam de jogar: dividir qualquer coisa em três partes. Esta cerimônia de Cabalat Shabat, por exemplo: tem as rezas que vem antes da prédica, a própria prédica e a conclusão do serviço após a prédica. A nossa sucá, onde em breve o Schinazi fará o kidush, pode ser dividida na base, o schach, sua cobertura, e a decoração. Uma bola de futebol pode ser dividida na superfície interna, a superfície externa e o ar interior. Esta ideia de dividir coisas em um número fixo de partes é tão divertida quando superficial em suas análises.

Mas vamos tentar mais uma vez: quando éramos colegas de classe no seminário rabínico, um amigo querido, o rabino Dan Mikelberg, dizia que havia dois tipos de judeus: o que comemoram Sucot e os que não comemoram Sucot. A ideia dele é que Sucot é das poucas festas judaicas que não falam de perseguição, em que os judeus não são vítimas. É uma festa na qual uma das obrigações religiosas é nos alegrarmos, é passarmos este tempo felizes, buscando formas divertidas de nos engajarmos com a tradição judaica. E, mesmo assim, a verdade é que muitos de nós estaríamos no grupo de judeus que não comemora Sucot.  Por que será?

Temos alguns bons motivos para dar como desculpa: a overdose de judaísmo em Rosh haShaná e Iom Kipur nos deixou sem forças para mais uma maratona de 9 dias de feriados judaicos, se incluirmos Shmini Atseret e Simchát Torá; não temos área em casa ou no prédio onde possamos construir uma sucá; faz frio, chove, quem de verdade é maluco de fazer suas refeições em uma cabana em que o telhado deixa passar água em pleno início de primavera em São Paulo?!?!

A verdade é que apesar de todas boas, estas são DESCULPAS que não explicam realmente porque Sucot não se tornou um campeão de audiências como Rosh haShaná, Iom Kipur, Pessach e até mesmo o serviço semanal de Cabalat Shabat.

Eu queria começar a pensar nesse assunto vindo da direção oposta: que papel você diria que o judaísmo tem na sua vida? Dito de outra forma: quando o serviço de Cabalat Shabat termina e você desliga a transmissão (ou vai pra casa se vc estiver aqui na sinagoga), o judaísmo continua atuando como uma fonte permanente de práticas, valores e abordagens ou fica adormecido até a 6a feira seguinte, quando volta a ser relevante na tua vida?

Eu costumo dizer que a educação judaica que eu recebi nos anos 70 e 80 me mostraram uma frestinha do judaísmo, uma pequena fração que me foi apresentada como se fosse o todo. Apresentado àquela versão limitada da cultura judaica, na qual eu não conseguia verdadeiramente me enxergar, minha resposta foi não dar papel algum ao judaísmo — não nos alimentos que eu comia, não nas roupas que eu vestia, não nos valores pelos quais eu vivia, não nos assuntos que eu decidia estudar ou nas causas para as quais eu me voluntariava.

Muitos anos depois, vivendo em Israel, eu descobri que a frestinha que tinham me apresentado não era o judaísmo inteiro!!! Havia um mar inteiro além daquela fresta, um universo no qual eu passei a me deliciar, a me enxergar e encontrar relevância nos mais amplos aspectos da minha vida. Foi neste segundo momento em que eu consegui enxergar em Sucot oportunidades de conexões — oportunidades de pensar nas formas em que  minha vida é cheia de vulnerabilidades (como a Sucá que é instável e vulnerável); na responsabilidade que eu tenho para com quem vive em situação de profunda vulnerabilidade o ano inteiro; no desafio de encontrarmos forças para nos alegrarmos vivendo em um mundo frágil e quebrado.

Muitos de nós, educados em um judaísmo limitado, adoramos falar em  uma vida guiada por “valores judaicos” sem sermos capazes de encher os dedos das duas mãos com quais seriam estes valores. Vivemos uma crise no relacionamento com o judaísmo, incapazes de darmos os passos necessários para superá-la.

Na parashá desta semana, temos algumas das cenas mais íntimas da Torá. Abalados pelo episódio do Bezerro de Ouro, Deus e Moshé buscam a reconciliação. Animado pela intimidade da conversa, Moshé pede a Deus que lhe mostre Sua face. Deus nega o pedido, mas diz a Moshé que passará na sua frente enquanto cobria os olhos de Moshé; depois de passar, Deus permitirá a Moshé enxergar novamente para que possa ver suas costas. [1]

Entenda esta passagem de forma literal ou de forma metafórica, mas a intimidade é incontestável. Deus ainda propõe a Moshé que esculpa duas novas Tábuas da Lei para o projeto conjunto humano-Divino de restituir as tábuas que Moshé havia quebrado.

Será que na nossa própria relação com Deus e com a tradição judaica é possível atingirmos um novo momento de intimidade e reconciliação como esta sobre a qual leremos amanhã?

Daqui a alguns dias, em Simchat Torá, terminaremos de ler a Torá com parashat veZot haBrachá. Nela, no começo de um poema-benção que Moshé dedica aos hebreus, ele afirma: “תורה ציוה לנו משה, מורשה קהילת יעקב”, “Moshé nos ordenou a Torá, uma herança para a comunidade de Iaacov”. [2].

Os comentaristas, ao longo do século discutiram qual o papel desta “Torá” que Moshé nos ordenou. O Baal Shem Tov, fundador do judaísmo chassídico, afirmou que “o objetivo de toda a Torá é que cada pessoa se transforme em uma Torá” — ou seja: que todas as nossas ações, das mais prosaicas às mais complexas; do amarrar o sapato ao desenvolver estratégias financeiras, deveriam ser exemplos do nosso comprometimento judaico. A benção que fazemos ao estudar a Torá: ברוך אתה ה׳ אלהינו מלך העולם אשר קדשנו בנמצוותיו וציוונו לעסוק בדברי תורה, Você é abençoado, ה׳, Soberano do Universo, que nos santificou com as Suas Mitsvot e nos instruiu a nos ocuparmos com as palavras da Torá, é evidência disso. A Torá não é algo sobre a qual filosofamos ou sobre a qual falamos apenas na teoria. A Torá, e aqui a intenção é toda a tradição judaica, tem a chance de ser a guia mestra pela qual vivemos todos os momentos.

Será que conseguimos renovar a relação de cada um de nós com a tradição judaica, desenvolvendo-a com criatividade, conhecimento, engajamento e paixão?

Este é meu desafio para cada um de nós neste 5782 e neste novo ciclo de leitura da Torá que se inicia no meio da semana!

Chag Sameach! Shabat Shalom!


[1]  Ex. 33:12-34:10
[2]  Deut 33:4

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Dvar Torá: o palácio está em chamas e a ajuda está a caminho! (CIP)

Eu não sou muito fã das mídias sociais. A única que eu realmente uso é facebook, e mesmo assim eu me irrito muito rapidamente naquele ambiente e tendo a não usá-lo com frequência. Um aspecto que eu gosto, no entanto, é a forma como facebook me permite estar em contato com rabinos em muitas partes do mundo; gente que estudou comigo, que eu conheci em congressos e conferências, ou até gente que eu só conheço no mundo virtual. Logo depois de Rosh haShaná e de Iom Kipur, foram muitos os meus colegas — em particular, rabinas mulheres — que publicaram suas prédicas nas redes sociais. Através das palavras delas, eu pude ter uma ideia de como está o pulso das comunidades judaicas ao redor do globo. O que as preocupam? Quais são os seus valores? Como elas estão vendo o caminhar deste nosso mundo? Eu selecionei alguns trechos significativos das prédicas que li nas últimas semanas...
A rabina Adina Allen, que fundou o Jewish Studio Project, que junta arte e judaísmo na região de São Francisco, falou sobre a crise ambiental e climática a partir da história da Arca de Noé. Ela disse: 
As coisas no mundo exterior estão rachando e desmoronando; nossos corações e nossas histórias estão da mesma forma. Neste momento de perigo e agitação - à medida que enfrentamos a ameaça de inundações e de outros desastres - somos chamados a sair de nossas conchas para assumir riscos como nunca antes. Fazemos muito para tentar minimizar os riscos, mas evitar riscos é evitar viver. Arriscar é o que nos abre. A alternativa é permanecer seguros, fechados e estagnados.
A história do Dilúvio termina com o arco-íris, brilhante e bonito se estendendo pelo céu, um sinal, como Deus diz, de que Deus nunca fará com que esse tipo de destruição maciça aconteça novamente. "Deus" não vai, mas isso não significa que nós não vamos. (…) Hoje, de certa forma, somos todos Noé e Deus vive dentro de cada um de nós. Todos participamos de nossa destruição compartilhada e todos somos necessários para nossa salvação coletiva.
Como é a ser uma pessoa íntegra em nossa geração. O que isso nos convoca a arriscar? [1]
A rabina Luciana Pajecki Lederman, que esteve conosco aqui na semana passada para se despedir da rabina Fernanda, também falou da crise ambiental. Contou a história de um pescador que construiu uma linda embarcação e convidou as pessoas do seu reino para um passeio no lago. Quando o barco chegou ao meio do lago e todos se divertiam, o pescado tirou uma furadeira e começou a fazer um buraco embaixo do seu banco. Os convidados, desesperados, tentaram convencê-lo a parar, mas o pescador respondeu: "Meu barco, meu banco, minha furadeira, eu vou fazer este buraco…” e continuou: 
“Você não quer que o barco afunde? Você não quer se afogar? (…) Bem, me desculpe, MAS ISTO NÃO É PROBLEMA MEU!!!”. O príncipe do reino, alguém que até então tinha se importado pouco com o sofrimento de seus súditos, desperado, respondeu ao pescador: “O que você quer dizer com ‘Isto não é problema meu?!!!’ Qualquer um aqui consegue enxergar que, se eu tenho um problema, você tem um problema. E que, se você tem um problema, eu tenho um problema. Se qualquer um tem um problema, então todos têm um problema - PORQUE NÓS ESTAMOS TODOS NO MESMO BARCO!!!” [2]
Pois é… estamos todos no mesmo barco!
No ano em que a comunidade judaica americana viveu o pior ataque terrorista de sua história, contra a sinagoga Tree of Life em Pittsburgh, que tirou a vida de 11 pessoas, o antissemitismo também apareceu nas prédicas das minhas colegas. A rabina Sharon Brous, de cuja comunidade eu fiz parte quando morei em Los Angeles e que tem tido grande influência na forma como eu penso meu próprio rabinato, tratou do crescimento do antissemitismo entre outras formas de ódio ao diferente. Ela citou um amigo dela, o rabino Jon Berkun, filho do rabino da sinagoga Tree of Life, que disse: 
Quando alguém escolhe o judaísmo como adulto, o Talmud exige que o rabino primeiro avise: “Você não sabe que o povo judeu está angustiado... é desprezado e perseguido, e que frequentemente sofre dificuldades?” (Yevamot 47a). Dez anos atrás, nos Estados Unidos, eu dizia essa linha como uma espécie de piada. Ela simplesmente não refletia a experiência de ser judeu nos EUA. Mas eu dizia isso mesmo assim, em homenagem ao nosso passado doloroso. Eu não consigo acreditar, mas agora, em 2018, eu preciso dizer isso com seriedade. [3]
As prédicas que eu li pintam um retrato difícil do mundo em seu aniversário 5780. Minha querida amiga e colega de classe, a rabina Rachel Timoner, uma das pessoas mais articuladas e com maior sofisticação de análise que eu conheço, expressou assim seu sentimento na prédica de Rosh haShaná:
Se apenas nos sentássemos aqui, todos nós, e chorássemos juntos hoje, essa seria a resposta mais eloquente ao ano em que vivemos.
Essa pode ser uma maneira de ver Deus.
Hoje se chama Yom Truá. Truá é o som que o shofar faz. Truá é um choro. É um grito que chama a atenção de Deus para o sofrimento deste mundo. No judaísmo, na Torá, chorar não é fraqueza, chorar não é desistir. (…) O choro está associado aos homens de poder. Guerreiros choram e reis choram (…) Chorar é frequentemente o começo de uma nova sabedoria. (…) Chorar é o que fazemos quando não sabemos o que fazer, quando estamos presos, quando estamos perdidos, quando não podemos ver o caminho a seguir. Chorar é o que fazemos quando precisamos de ajuda, quando atingimos os limites de nosso próprio poder e precisamos extrair algo mais profundo.
E ela concluiu sua introdução dizendo: “Eu preciso admitir para vocês que eu me sinto emperrada. Eu tenho questionado se estou pronta para liderar vocês neste momento. Não sei para onde estamos indo e não sei o que devemos fazer sobre isso.” [4]
Um midrash compara nosso patriarca Avraham a alguém que estava andando quando viu fogo em um palácio. A pessoa perguntou em voz alta: “será que não tem ninguém tomando conta deste palácio?!” — e seu dono lhe respondeu: “eu sou o dono do palácio”. Segundo o midrash, Avraham teria olhado o caos do mundo e se perguntado, “será que não tem ninguém tomando conta deste mundo?!” e Deus lhe responde: “eu sou o mestre deste mundo”[5].  É hora de reconhecermos: o palácio está em chamas e, assim como minha colega de classe, muitos de nós nos sentimos emperrados — um sentimento sobre o qual eu tenho falado com alguma frequência daqui da bimá.
Amanhã de manhã leremos da Torá a porção especial para um shabat que acontece no meio de Sucot, que também fala de uma situação difícil. O contexto no qual a história se passa é o que aconteceu logo depois do episódio do bezerro de ouro. Em sua ira, Deus diz aos Filhos de Israel que não estará mais entre eles em sua jornada, pois o povo é teimoso e Deus terminaria por destruí-los. É nesse momento de crise absoluta que começa a leitura de amanhã. De uma relação fragilizada, quase destruída, renasce o relacionamento do povo de Israel com Deus. Neste momento de reconciliação, Moshé pede para Deus lhe mostrar Sua presença. Em uma das cenas mais singelas da Torá, Deus diz que ninguém pode ver Sua face e continuar vivo; por isso, cobre os olhos de Moshé ao passar na sua frente, mas permite que Moshé veja as Suas costas.
A fragilidade de um relacionamento abalado permite que Moshé e Deus se encontrem realmente, de forma verdadeira, exposta, arriscada. Paradoxalmente, ao assumirem, juntos, o risco de revelarem suas fragilidades, tomam o passo necessário para construírem uma relação mais sólida e duradoura. 
Em Sucot, saímos das nossas casas estáveis e, de forma metafórica ou concreta, abraçamos nossas fragilidades através de uma construção cujas paredes não têm tijolos, cujo teto é vulnerável ao clima. De coração aberto, sem muito mais a perder, reconhecemos nossas dores, nos expomos sem armaduras e nos permitimos enxergar e sermos enxergados com verdade. Se não podemos olhar a face do Divino, procuramos ver suas costas na fagulha divina que vive em cada uma das pessoas ao nosso redor.
Neste momento, em que tantos de nós nos sentimos vulneráveis, assustados, perdidos, é hora de reconhecermos a fagulha divina em nós mesmos para sermos parceiros de Deus no processo de reconstrução. Da nossa fragilidade, precisamos construir um mundo mais sólido. O castelo está pegando fogo e somos nós que temos que apagá-lo.
Neste shabat, celebramos um grupo de pessoas que trabalha incessantemente para manter o castelo salvo. Muitas vezes nos bastidores, sem que ninguém perceba sua presença. São voluntários da CIP, que estão com a nossa comunidade em seus momentos de maior aflição, dando dignidade às nossas pessoas queridas em sua despedida deste mundo; acompanhando os enlutados em suas rezas diárias; garantindo que esta comunidade possa continuar desenvolvendo projetos sociais no Lar das Crianças e aqui na Antônio Carlos; recebendo cada pessoa que passa pela porta desta sinagoga com um Shabat Shalom e um sorriso no rosto; dedicando grande parte do seu tempo e atenção para melhorar e ampliar a experiência comunitária da CIP.
Em resposta a um cenário difícil, nossos voluntários conseguem extrapolar sua própria dor e agem para criar um ambiente mais acolhedor, para transformar a sociedade em mais justa, para permitir que possamos encontrar aqui um lugar onde crescer judaicamente e curar as feridas das nossas almas. Por tudo isso, somos imensamente gratos — o que vocês fazem é avodat kodesh, um trabalho sagrado, e, além de agradecer e lhes prestar todo o kavod que vocês merecem, nós queremos aprender com o exemplo pessoal de cada um de vocês.
Depois de abrir sua prédica reconhecendo sua dificuldade em saber o que dizer, a rabina Rachel Timoner terminou sua prédica assim:
E nos encontramos aqui. E reunimos nossas mentes, nossos corações e nossos esforços. E nós ouvimos. E sabemos que não estamos sozinhos. E lembramos quem somos juntos. E imaginamos o que seremos juntos. E começamos a ver o caminho.
Quando nosso povo entrou nas profundezas do mar ao sair do Egito, não encontrou monstros marinhos ou dragões. Segundo um midrash, eles encontraram um pomar plantado bem no fundo do mar temível. Uma mãe segurando um bebê chorando a caminho da liberdade estendeu a mão e arrancou frutas maduras no meio da jornada. Quando tudo era desconhecido, com as ondas elevando-se acima deles e o exército do Faraó ameaçando atrás deles, havia frutas, havia beleza, havia doçura, havia sustento.
Pode haver dragões por aí em algum lugar, mas também há frutas maduras. E somos um povo que sabe que precisamos de doçura para nos sustentar em nosso caminho através dos mares perigosos. Quem sabe o que vamos encontrar lá? Podemos encontrar o rosto de Deus.
Nos conhecendo, haverá lágrimas envolvidas. Talvez lágrimas de medo e lágrimas de tristeza. Por favor, Deus permita que também haja lágrimas de redenção e alívio, de gratidão e deleite, de força, de amor, de volta e de salvação.
Queridos voluntários, alguns de vocês plantam as árvores deste pomar, outros cuidam para que as árvores cresçam bem, e há os que apontam para as doces frutas do pomar quando olhamos para trás e, desesperados, vemos as tropas inimigas se aproximando. Realmente muito obrigado! Que sejamos todos abençoados através da sua presença, da sua dedicação, do seu carinho e do seu exemplo.

Shabat Shalom e Chag Sameach!

[1] https://www.facebook.com/adina.allen.5/posts/10101812354169528 
[2] Luciana Pajecki Lederman, Teshuvá Sistêmica: Mudando nossa postura de "Não é problema meu ..." para "Estamos todos no mesmo barco"  (mimeo) 
[3] https://ikar-la.org/wp-content/uploads/YK-family-ties.pdf 
[4] https://www.facebook.com/rachel.timoner/posts/10156500453502327 
[5] Bereshit Rabá 39:1.