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quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Qual a tua narrativa neste Chanucá?

Chanucá é, entre as festas judaicas, provavelmente a que mais tem narrativas para celebrar a sua comemoração. O nome da festa Chanucá (חנוכה) significa “dedicação” ou “inauguração” e faz referência à re-dedicação do Templo de Jerusalém após a vitória militar dos Macabeus no século II aEC. Esta história, relatada nos livros Macabeus I e II, não foi incorporada ao Tanach, mas faz parte da Bíblia Católica.

Segundo os historiadores [1], a terra de Israel era dominada pelo Império Selêucida, Sírios de cultura grega (Helenista). Em seus esforços para integrar a terra de Israel ao resto do Império, os Selêucidas tinham trazido inovações urbanas para Jerusalém e outras cidades e oferecido pertencimento ao império. Para parte da população judaica, especialmente a elite, estas eram ofertas atraentes, ainda que implicassem abrir mão de parte do que diferenciava os judeus de outros povos. Para outra parte da população judaica, especialmente o campesinato, as contrapartidas para integração ao império não se justificavam e significavam romper o pacto judaico com Deus. Quando o rei selêucida Antiocus IV nomeou um de seus aliados, Jason, para a posição de Sumo Sacerdote e este revogou práticas judaicas, tais como a circuncisão, o descanso no Shabat e a proibição de sacrifícios a deuses pagãos a insatisfação dos campesinos aumentou.

Em 166 aEC, uma família de Modiin deu início a uma revolta contra a elite judaica associada aos sírios. O patriarca, Matitiahu, era o líder político do movimento; seu filho, Iehudá (apelidado Macabi, ou “martelo” em aramaico), era o líder militar. Ao longo de quatro anos, uma guerra civil dividiu o mundo judaico e, apesar de seu menor poderio militar, o campesinato derrotou a coligação da elite judaica com os selêucidas.

Quatro séculos antes, o rei Shlomô tinha celebrado a inauguração do Primeiro Templo em Sucot, com oito dias de festa [2]. Por isso, os Hasmoneus (a dinastia judaica que se estabeleceu após a vitória) decidiram seguir a mesma prática, comemorar Sucot fora de época e celebrar a reinauguração do Templo por oito dias.

Apesar desta perspectiva, na qual a batalha de Chanucá foi uma guerra civil, a história ficou marcada como uma vitória dos judeus sobre os Selêucidas (ou sobre os Gregos, de quem eles tinham herdado a cultura Helenista). Nos séculos seguintes, a região caiu sob domínio romano e os atritos entre judeus e dominadores foram se acentuando. Na primeira guerra Judaico-Romana (66-73 EC), o Templo de Jerusalém foi destruído.  Na terceira guerra Judaico-Romana (132-136 EC), também conhecida como “Revolta de Bar Kochbá”, a população judaica da Terra de Israel foi dizimada [3]. Nos séculos seguintes, os Rabinos tinham muita preocupação que a mensagem de Chanucá encorajasse novas revoltas militares contra os romanos e levasse ao extermínio no povo. Por isso, quando a história de Chanucá é relatada no Talmud, a ênfase é retirada do conflito militar e, pela primeira vez, aparece a narrativa do milagre do óleo. Em resposta à pergunta “O que é Chanucá?”, o Talmud responde: “no dia 25 de Kislev começam os dias de Chanucá, que são oito. (...) Quando os Gregos entraram no Santuário, eles tornaram impuros todos os vidros de óleo que lá estavam. Quando a dinastia dos Hasmoneus os venceu, eles procuraram e encontraram apenas um vidro de óleo com o lacre do Sumo Sacerdote e nele havia apenas óleo suficiente para um dia. Aconteceu um milagre e puderam acender [a menorá] por oito dias.” [4] Muitas das práticas que hoje temos sobre Chanucá derivam desta perspectiva, incluindo o nome “Chag Urim”, “festa das luzes”.

No final do século 19, com o crescimento do movimento sionista em partes da Europa Central e Oriental, a mensagem da auto-afirmação do povo judeu através do levante dos Macabeus  parecia bem mais alinhada com os caminhos políticos do povo judeu do que em séculos anteriores. Neste momento, a mensagem de Chanucá passa por nova transformação, enfatizando os atos de bravura dos Hasmoneus, sua coragem política e astúcia militar. Neste processo, ajudou a crescente abertura e diálogo entre as comunidades judaicas emancipadas e seus vizinhos cristãos, cuja versão da Bíblia tinha incorporado os livros de Macabeus I e II, com a narrativa histórica do feriado.

Um século antes, o mestre chassídico, rabino Levi Yitzhak de Berditchev, tinha escrito que há 3 tipos de milagres: os milagres aparentes, que subvertem a ordem natural, como as dez pragas ou a abertura do Mar, como comemoramos em Pessach. Há também os milagres escondidos que acontecem sem a intervenção humana, como a história de Purim, que, na sua leitura, é uma sequência de acontecimentos direcionados pela mão de Deus sem, no entanto, que a ordem natural seja quebrada. Finalmente, há os milagres escondidos, que acontecem através das ações humanas, como a história de Chanucá, na qual foi através das ações dos Macabeus que os poucos desarmados puderam derrotar os muitos e fortes.

Chanucá 5783 começa no próximo domingo, dia 18/12. Que em nossa comemoração possamos definir nossas próprias narrativas e que tenhamos a coragem de determinar os caminhos que vamos trilhar e a força para sustentar que até mesmo o improvável aconteça. Que ao acendermos as velas e pela nossa conduta consigamos, de fato, trazer mais luz para um mundo que tem insistido, tantas vezes, em mergulhar na escuridão.

Chag Urim Sameach!


[1] Zion, Noam & Spectre, Barbara (2000). A Different Light: the Big Book of Hanukkah, p. 53-106.

[2] Crônicas II 7:8-11

[3] De acordo com Cassius Dio, um historiador que viveu naquela época, 585.000 judeus foram mortos, além daqueles que morreram de doenças e fome. Quase 1000 vilarejos foram completamente destruídos.

[4] Talmud Bavli Shabat 21b


sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Dvar Torá: Com o que você sonha? (CIP)


Hoje de manhã meu filho começou a assistir uma nova série de ficção sobre a exploração espacial. Logo nas primeiras cenas, o mundo para para assistir a primeira pessoa a chegar na Lua — nesta versão de ficção, um cosmonauta russo. No México, uma mãe insiste para que sua filha fique em frente à TV e acompanhe tudo o que está acontecendo. “Este é o começo do futuro e você pode ser parte disso,” ela lhe diz.

Fiquei pensando nessa cena e nos nossos sonhos, tanto sonhos no sentido de planos como sonhos no sentido daquilo que imaginamos acontecer quando dormimos. 

Uma pesquisa desenvolvida pelo Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e publicada no final do ano passado [1] mostrou que, durante a pandemia, houve uma mudança significativa nos sonhos que as pessoas lhes relataram, com maior incidência de palavras ligadas à raiva e à tristeza. De acordo com os autores, “esses resultados corroboram a hipótese de que os sonhos pandêmicos refletem sofrimento mental, medo do contágio e mudanças importantes no cotidiano, hábitos que impactam diretamente a socialização.” Outras pesquisas analisaram como os sonhos mudaram durante os anos do regime totalitário da Alemanha Nazista [2]. Nestes casos, os sonhos foram profundamente impactados pelos conceitos em que as pessoas estavam vivendo.

Nas histórias bíblicas, por outro lado, os sonhos parecem ter o poder de transformar estes contextos e dar pequenas cambalhotas nas narrativas. A sequência de parashiot na qual estamos, que contam a história de Iossêf, é particularmente cheia de sonhos. Iossêf nos foi apresentado na semana passada como um menino mimado, que tem sonhos que parecem indicar subserviência de seus pais e seus irmãos a ele. Depois, o mordomo e o padeiro do faraó, que compartilham a prisão com Iossêf, têm seu destino revelado em sonhos que apenas nosso herói tem a capacidade de decifrar.  Já na parashá desta semana, Mikêts, é a vez do Faraó ter um sonho e apelar ao jovem hebreu que estava em sua prisão para revelar seu verdadeiro significado.

De acordo com Ieshayahu Leibowitz, o falecido filósofo ortodoxo e iconoclasta, irmão da comentarista da Torá Nechama Leibowitz, apenas no livro de Bereshit, o conceito de sonho é mencionado 48 vezes, o que torna este livro a referência central na questão dos sonhos de todo o Tanach. De acordo com Leibowitz, isso se explica porque este livro não é apenas o primeiro, mas também o mais profundo entre todos os livros sagrados.

Na sequência de histórias na qual nos encontramos, os sonhos servem como canal de comunicação entre o humano e outra dimensão da realidade, uma na qual o Divino se comunica e através da qual são revelados antes de acontecerem o respeito que os outros filhos de Iaacóv dirigirão a Iossêf e a fartura seguida de seca em Mitsrayim. 

Será que o que foi revelado nos sonhos já estava predestinado ou a forma como as pessoas os interpretaram ajudaram a definir suas consequências? Será, por exemplo, que se os irmãos de Iossêf não ficassem tão incomodados com o queridinho do papai, a ponto de considerar matá-lo e terminar vendendo-o como escravo, o sonho das estrelas e do Sol e da Lua não poderia ter tido um outro significado? Será que, também os sonhos do Faraó não poderiam ter sido interpretados de outra forma e levado a consequências muito diferentes?

No Talmud, há uma série de páginas no tratado de Brachot, Bençãos, que tratam da questão dos sonhos. Um ditado repetido algumas vezes nestas páginas é que “כׇּל הַחֲלוֹמוֹת הוֹלְכִין אַחַר הַפֶּה”, col hachalomot holchin achar hapé, “os sonhos seguem a boca”, que é normalmente entendido como dizendo que o significado de um sonho é definido por sua interpretação. A título de exemplo, a passagem do Talmud conta a história de Bar Hadaia, um intérprete de sonhos, que os interpretava de forma favorável para quem lhe pagava e de forma desfavorável para quem não lhe pagava. Abaie e Rava, uma dupla de mestres do Talmud, famosos pelos seus debates, buscaram a ajuda de Bar Hadaia para interpretar sonhos idênticos que eles tinham tido — Abaie pagou e Rava, não. As interpretações de sonhos idênticos foram radicalmente diferentes e todas elas se mostraram corretas, inclusive as mais trágicas, reveladas para Rava, que não havia pago pelos serviços do intérprete de sonhos.

De que forma nossa leitura da vida que nos cerca ajuda a criar a realidade? Será que não apenas os sonhos seguem a boca ou a interpretação que lhes damos mas também a própria realidade?

Uma imagem que apareceu hoje na edição digital da Folha mostra duas pessoas dentro de um ônibus, que está contornando uma serra. Uma das pessoas olha pela sua janela e vê a parede da montanha, um cenário desolador; a outro olha pela janela do outro lado e vê o Sol se pondo e iluminando as planícies, uma imagem linda. A legenda que o autor da charge lhe colocou Escolha o Lado Feliz da Vida!

Será que basta escolher ler a vida de forma positiva para que ela seja realmente feliz? 

A verdade é que esta perspectiva me parece simultaneamente um pouco Poliana e cheia de potencial. 

Que nesta festa das Luzes, consigamos iluminar nossos caminhos e enxergar o potencial e o lindo nas nossas vidas, nas nossas histórias e até nos nossos sonhos. Que nossas realidades possam ser impactadas pela forma como as interpretamos e que consigamos escolher sempre o caminho da luz.

Chag Urim Sameach! Shabat Shalom! 


[3] שבע שנים של שיחות על פרשת השבוע, ישעיהו לוובוביץ p. 152
[4] Talmud Bavli, Brachot 55a-57b
[5] Erik Alvstad , “ONEIROCRITICS AND MIDRASH On Reading Dreams and the Scripture”, p. 124
 

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Dvar Torá: Dezembro sem dilema – Judaísmo em diálogo com o mundo em Chanucá (CIP)

Além de muitas coisas para muitos grupos, esta terça feira, 24 de dezembro, marca o shloshim do rabino Henry Sobel. Quem esteve aqui na linda cerimônia que a CIP organizou em sua memória deve ter percebido que eu não compartilhei nenhuma memória dele. Tem um ótimo motivo para isso: nós mal nos conhecíamos. Ele conduziu minha cerimônia de bar-mitsvá, é verdade, mas minha família e eu quase nunca vínhamos à CIP, então ele não teria motivo nenhum para se lembrar de mim passados alguns meses da cerimônia. Um exemplo deste distanciamento: vários anos depois do meu bar-mitsvá, já na faculdade, eu comecei a namorar uma menina muito ativa na CIP. Ela acumulava duas posições profissionais aqui e ainda era ativa como voluntária na Avanhandava e na Colônia. Nosso namoro patinava porque todo tempo livre que ela tinha era passado aqui nesse prédio, para desespero do namorado (eu!), que queria mais tempo juntos. Um dia, eu não lembro bem o motivo, eu estava na CIP com ela e o rabino Sobel apareceu. Com a chutspá típica de um garoto de 20 anos, me aproximei do rabino e lhe pedi que usasse seus contatos no diálogo inter-religioso para converter minha namorada ao catolicismo, argumentando que o envolvimento dela com a comunidade judaica estava matando nosso namoro. O rabino Sobel, que certamente não se lembrava do meu bar-mitsvá, imaginou — é claro — que eu fosse católico! Por que mais alguém pediria ao rabino para converter sua namorada para outra religião?! Então, em palavras proféticas, o rabino me disse: “meu querido, muito mais fácil trazer você para perto de nós do que deixar ela ir embora.” O resto é história, mas hoje aqui estou eu, rabino, desta CIP….

Tem, no entanto, uma prédica do Sobel da qual eu me lembro claramente. Era nesta época do ano e ele se manifestava contra um costume judaico liberal americano: o “Chanukah Bush”, ou a árvore de Natal fantasiada de Chanucá. Ele se manifestava pela viabilidade do diálogo com membros de outras religiões, mas afirmava que era importante que soubéssemos manter também o que era nosso e não se apropriar do que é das outras tradições. Nesta época do ano, com abundância de celebrações conjuntas judaico-cristãs, é fundamental lembrarmos que não precisamos – mais do que isso, não podemos – abrir mão de quem somos quando entramos em diálogo com o outro.

Mais do que isso: para alguns filósofos, o encontro com o outro é passo fundamental para a definição da identidade. Num mundo em que existissem apenas mulheres – como a ilha de onde veio a Mulher Maravilha – ninguém se definiria como mulher; se todos fôssem judeus no mundo, religião não definiria identidade. É só quando encontramos alguém que difere da gente em algum aspecto que aquele aspecto ganha relevância em sua dimensão identitária.

A possibilidade deste diálogo com a diferença está no centro das questões suscitadas pela festa de Chanucá. Até onde é possível nos integrarmos a espaços diferentes de nós mesmos sem abrirmos mão daquilo que nos é mais caro? Os americanos têm uma expressão, “slippery slope”, “uma rampa escorregadia”, para falar do risco de que uma concessão acabe levando a abrirmos mão de tudo. De que forma o diálogo com outras culturas ou outras religiões é a “slippery slope”, da vez? Tomando a história de Chanucá como exemplo, até quanto podemos defender a integração com a cultura ocidental antes de vermos sacrifício de porcos a deuses pagãos em nossos templos religiosos?

Esta semana eu assisti de novo “Truman Show”, um filme de pouco mais de vinte anos, da época em que a Reality TV, os programas do tipo Big Brother, O Aprendiz, The Bachelor, Masterchef, estavam apenas começando. No filme, e aqui não vai nenhum spoiler, toda uma realidade é construída para acompanhar a vida deste sujeito que, desde o nascimento, tem todo segundo de sua vida transmitido ao vivo. Truman Burbank, o sujeito do filme, vive uma enorme mentira cinematográfica, mas acredita estar vivendo a realidade. No filme, o diretor deste enorme projeto afirma: “Aceitamos a realidade do mundo que nos é apresentada. Simples assim” – e eu fiquei me perguntando: “para quantos momentos das nossas próprias vidas, esta frase descreve a nossa abordagem com relação ao que vivemos: nós aceitamos a realidade do mundo que nos é apresentada; simples assim.” O que fazer quando percebemos que a realidade do mundo que nos é apresentada não reflete com exatidão a realidade do mundo como ela é?! Esta parece uma pergunta fundamental em uma época em que a manipulação da verdade tem se tornado cada vez mais comum. Há cerca de um mês, assisti uma matéria da BBC em que apareciam vídeo de Boris Johnson e de Jeremy Corbyn, rivais na eleição britânica da semana passada, pedindo votos um para o outro. As imagens eram as deles, as vozes eram as deles, mas os vídeos eram absolutamente forjados usando recursos computacionais avançados. Evidências manipuladas, falsas narrativas promovidas.

Mentir não é novidade, falsificar evidências também não. Na parashá desta semana, Vaieshev, os filhos de Iaacov apresentam o manto ensanguentado de Iossef como prova de que um animal selvagem o tinha atacado. O que Iaacov não sabia, mas o texto da Torá nos conta, é que os irmãos tinham vendido Iossêf como escravo e molhado sua roupa no sangue de um bezerro que eles tinham abatido. Evidências manipuladas, falsas narrativas promovidas.

Uma das falsas narrativas mais frequentemente promovidas no mundo judaico é a do isolamento da comunidade judaica ao longo dos séculos. Nessa versão da história judaica, nossos antepassados vestiam todos capotes pretos e shtreimel, aqueles grandes chapéus usados pelos ultra-ortodoxos; viviam em um shtetl em que nunca entravam em contato com não-judeus, só conheciam o mundo sob a perspectiva da tradição judaica e seguiam todas as 613 mitsvot ao pé da letra. Todas as tentativas de interação com o mundo não-judaico teriam levado a desastres - nesta versão, os feriados de Purim e Chanucá, por exemplo, seriam evidência da impossibilidade da convivência entre o mundo judaico e nossos vizinhos não judeus. Evidências manipuladas, falsas narrativas promovidas.

Os pesquisadores da história judaica não param de apontar para as interações - algumas positivas, outras nem tanto, entre a cultura judaica e o mundo exterior. O mais interessante é que estas pesquisas apontam para uma  tendência judaica a se apropriar de elementos culturais não-judaicos e re-interpretá-los de acordo com nossos valores e nossas narrativas. O seder de Pessach, eles argumentam, é uma implementação da tradição romana do simpósio — uma experiência culinária que incluía pequenas porções para serem comidas antes do prato principal, jogos para manter as crianças acordadas, vinho antes e depois da refeição, valorizavam perguntas, músicas e louvor a Deus e tinham conversa centrada ao redor do motivo para aquelas comidas. O que o simpósio romano não tinha era a discussão ao redor da liberdade analisada pela perspectiva da tradição judaica. Da mesma forma, os estudiosos da liturgia do casamento dizem que a quebra do copo está ligada a um costume pagão para espantar os maus espíritos, que teriam medo do barulho — apropriamos o costume, mas reconstruímos seu significado e valores, associando a quebra do copo à perspectiva judaica de não acreditar em absolutos e, por isso, trazer alguma tristeza à cerimônia de casamento. No caso de Chanucá, como eu já comentei com alguns grupo neste ano, o sevivon, aquele peãozinho que tem nas laterais as letras “נ, ג, ה, ש”, iniciais da frase “נס גדול היה שם”, “um grande milagre aconteceu por lá”, também teve sua verdadeira história ocultada por uma outra. Na escola, eu aprendi que os gregos não deixavam os judeus estudarem Torá então, nossos antepassados — provavelmente, vestindo capote preto e shtreimel —  estudavam Torá escondidos, mas com os sevivonim em cima da mesa. Quando as autoridades gregas chegavam, eles escondiam seus livros e jogavam sevivon para enganar os gregos. A verdade revelada pelos arqueólogos é bem diferente: o sevivon é originalmente um brinquedo católico irlandês do século XVI, parte de um jogo de apostas chamado “Totum”, ou “tudo” em latim. No século XIX, chega à Alemanha, onde as letras das suas laterais são traduzidas para que o mesmo jogo pudesse ser jogado no idioma local. Quandos as letras em alemão são transliteradas para o ídiche, dão origem à sequência נ, ג, ה, ש. Adaptamos o brinquedo católico, mas fizemos com que ele se tornasse parte de uma narrativa de Chanucá, que valoriza a busca da luz nos nossos momentos mais sombrios, que encoraja a coragem de ter atitude mesmo quando as chances são mínimas, que acredita em um mundo multicultural, em que nem todos precisem adotar as mesmas práticas. 

Estes exemplos apontam para a contínua capacidade judaica de estar presente no diálogo com o outro; que não vê a diferença como ameaça e, sim, como oportunidade de crescimento; que pretende continuar a milenar tradição judaica de se relacionar com o seu entorno e nunca se esconder dele.

Infelizmente, a perspectiva que nega estas possibilidades, que distorce evidências e manipula narrativas, tem conseguido sucesso em apresentar sua visão judaica construída com base na separação como a única verdadeira. Para alguns, convencidos de que esta visão excludente representa o “judaísmo autêntico”, é motivo para adotarem certos estilos de vida e perspectiva teológicas. Para muitos outros, no entanto, este é motivo para se afastarem totalmente da comunidade judaica, percebida como auto-centrada e desinteressada em participar do mundo como ele é. Na CIP, nós oferecemos um terceiro caminho, que não rejeita, nem o encontro, nem o judaísmo.

Comemorar Chanucá como a festa das possibilidades do diálogo, da luz frente às trevas, das múltiplas narrativas, do diálogo — mesmo com aqueles que acreditam em narrativas religiosas radicalmente diferentes — é se manifestar por um judaísmo de pontes e não de muros, no qual o encontro com outras culturas enriquece nossas perspectivas judaicas e nos ajuda a refinar nossas experiências religiosas.

É bem possível que ainda criem uma narrativa judaica para o Chanukah Bush, a árvore de Natal fantasiada para Chanucá. Diferente do rabino Sobel, eu não descarto sua viabilidade de antemão, mas quero antes entender como sua adoção enriqueceria nossa experiência da Festa das Luzes e não seria apenas uma incorporação de valores e práticas que nos são estranhos. Na minha casa, por enquanto, não tem. O que temos lá são duas chanukiot, uma acendida de acordo com a opinião de Hillel, começando com uma vela e terminando com oito, e outra acendida de acordo com a opinião de Shamai, começando com oito velas e terminando com uma. Assim, expressamos nosso absoluto comprometimento com o pluralismo judaico, com o debate de ideias, com a viabilidade de um judaísmo aberto ao diálogo, ao encontro, cheio de luzes e de kedushá!

Shabat Shalom e Chag Urim Sameach!