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domingo, 25 de setembro de 2022

Dvar Torá: Dando vida às metafóras sobre Deus. Rosh haShaná 5783 (CIP)


Eu quero começar a prédica com uma história chassídica que eu adoro ensinar e que eu encontrei em um livro de Shai Agnon [1], o autor israelense que ganhou o prêmio Nobel de Literatura de 1966. 
Um chassid um dia visitou seu rebe, o Rabino Elimelech de Lizensk nos dias entre Rosh Hashaná e Iom Kipur e lhe pediu se podia assistir a forma como o rabino conduzia a Capará.
Para quem não conhece o termo, Capará é uma tradição antiga na qual os pecados de uma pessoa eram transferidos para uma galinha na véspera de Iom Kipur, rodando o animal sobre a cabeça da pessoa. O animal era, então, abatido junto com todos os pecados da pessoa e doado. Com o tempo e a preocupação com o bem estar dos animais, algumas pessoas passaram a fazer o mesmo ritual, mas transferindo os pecados para notas de dinheiro que, então, eram doadas. Que fique claro que essas práticas não são mais praticadas pela imensa maioria do mundo judaico liberal.
A resposta do rabino, de alguma forma, surpreendeu o chassid:

 – “Eu estou honrado que você queira me ver fazendo a mitsvá de capará, mas eu preciso te dizer que nesta mitzvá especificamente, minha performance não é nada extraordinária. Se você quiser ver alguém que a faz de uma forma especial, vá ver o Moishe, que toma conta do albergue.”

Na manhã antes de Iom Kipur, o jovem chasid foi até a casa do Moishe observar como ele fazia Capará e ficou espiando pela fresta da janela.

Moishe começou sentando em uma cadeira de madeira em frente a uma pequena lareira em sua sala com“seus dois livros de teshuvá” ao seu lado. Moishe pegou o primeiro livro e disse:

– “Ribonô shel Olam”, Senhor do Universo, chegou a hora de acertarmos as contas  de todas as nossas transgressões do último ano, pois a Capará se aplica sobre todo Israel.”

Ele abriu o primeiro livro, leu o que estava escrito com muito cuidado e começou a chorar. O jovem chasid escutou atentamente enquanto Moishe lia uma lista de pecados (todos sem maior importância) que Moishe tinha cometido no ano anterior. Quando terminou de ler, Moishe pegou seu caderno encharcado de lágrimas, balançou-o sobre sua cabeça e o jogou no fogo. Ele, então, pegou o outro livro, bem mais pesado que o primeiro. E disse:

- “Ribonô shel Olam, Senhor do Universo, antes eu listei todas as minhas transgressões, agora eu vou contar todas as transgressões que Você fez.”

Moishe imediatamente começou a listar todos os episódios de morte, sofrimento, doença e destruição que tinham acontecido durante o ano anterior para todos os membros de sua família. Quando terminou de listar, Moishe disse:

- “Ribonô shel Olam, se formos calcular com exatidão, Você me deve mais do que eu te devo, mas eu não quero ser tão preciso nas contas, por que hoje é véspera de Iom Kipur e somos todos obrigados a fazer as pazes uns com os outros. Portanto, eu desculpo todas as Suas transgressões contra mim e minha família e Você também desculpa todas as minhas  transgressões contra Você.”

Com isso, Moishe pegou o segundo livro, que também estava encharcado de lágrimas, balançou sobre sua cabeça e jogou no fogo.

Ele então colocou vodka no seu copo, fez a benção, e disse “Le chayim!” bem alto. Se sentou com sua esposa e teve uma boa refeição em preparação ao jejum.

O jovem chasid, chocado, voltou ao seu rebe e lhe contou as heresias que Moishe tinha dito a Deus. O Rabino lhe disse:

– “Pois saiba que nos céus, todo ano Deus e toda a Sua corte se juntam para escutar com muita atenção as coisas que Moishe diz. E como resultado, há alegria e satisfação em todos os mundos.”
Como eu disse, eu adoro ensinar esta história porque há nela um elemento transgressor fundamentalmente judaico que acabamos perdendo no último século e meio. Quando eu dou a primeira aula no Curso de Introdução ao Judaísmo, eu digo aos alunos que, enquanto para a maioria das outras tradições religiosas, ser uma pessoa devota significa dizer “Sim, Senhor” para a mensagem Divina, no Judaísmo, um judeu comprometido responde ao chamado de Deus com “como você ousa me pedir uma coisa dessas?!”. Foi assim que Avraham, o primeiro patriarca respondeu quando Deus o instruiu a destruir Sodoma e Gomorra [2]; foi assim que Moshé respondeu quando Deus lhe disse que iria destruir o povo após o episódio do Bezerro de Ouro [3]; foi assim que os rabinos responderam quando Deus tentou se intrometer em uma das suas discussões rabínicas [4]. O nome que o povo judeu recebe na maior parte da tradição rabínica, o povo de Israel, reflete, de alguma forma, esta perspectiva: “Israel” quer dizer, literalmente, “aquele que duela com Deus”. O mais incrível é que Deus parece não se incomodar com o questionamento de Suas ações, pelo contrário: em um episódio em que sua opinião é recusada pelos rabinos, Deus sai sorrindo e dizendo “meus filhos me derrotaram”, orgulhoso como um pai cuja filha o derrota no jogo de xadrez.

Quando eu ensino a história do Moishe fazendo sua capará inovadora, as pessoas parecem apreciá-la, e eu acho que a razão para isso é que elas admiram a conduta dele. Mas a verdade é que eu acho que elas também se identificam com a conduta do chassid, que acha que trata-se de heresia. 

Queremos um novo modelo de relacionamento com o Divino mas temos uma dificuldade imensa de abrirmos mão do modelo atual, mesmo que nos sintamos profundamente incomodados com ele.

Na preparação para esta predica, eu estava lendo um livro chamado “Deus o quê? O que nossas metáforas para Deus revelam sobre nossas crenças sobre Deus”. Logo no começo do livro a autora, Carolyn Jane Bohler, oferece um questionário sobre as nossas crenças e ela sugere que os leitores o preencham antes de ler o livro e, de novo, depois de terminá-lo. 

Pessoalmente, depois de todos os anos de seminário rabínico, me considero um sujeito com uma educação judaica sofisticada, cuja compreensão de Deus não está baseada, de forma alguma, no que eu chamo de “o Deus Papai Noel”, de longas barbas brancas, sentado em um trono no céu, observando cada detalhe das nossas vidas. Meu entendimento do Divino é fluido, mas está muito mais próximo de Mordecai Kaplan, o fundador do movimento Reconstrucionista, que definiu Deus como “a força que causa a Salvação” ou de quem entende Deus como um processo ou ainda de Maimônides, o filósofo racionalista para quem a humanidade nunca seria capaz de afirmar com convicção o que Deus é, apenas o que Deus não é, como dizer que Deus não tem um corpo. E, apesar disso tudo, ao final do questionário, que tinha afirmações como “Deus continua trabalhando em nós, nos moldando”, “Deus e a humanidade compartilham poder e responsabilidade”, e “Deus toma o que é e, uma vez após a outra,  busca criar o melhor com o quem tem”, eu me surpreendi em me dar conta que a maior parte das minhas respostas partiam da premissa do “Deus Papai Noel”, aquele no qual eu não acredito. Eu fiquei me perguntando por que será, se essa não é o entendimento que eu tenho do Divino, que eu respondi as perguntas assim?

Porque o contexto que nos cerca conta e o contexto repetido conta ainda mais. Não sei quem acompanhou a polêmica do lançamento do trailer do filme com atores reais da Pequena Sereia, no qual o papel da protagonista é desempenhado por Halle Bailey, uma atriz negra. De um lado, fãs revoltados com o fato de que a Pequena Sereia do filme não terá a pele clarinha, quase branca, da versão em desenho animado. De outro,   crianças negras emocionadas em descobrir que sua heroína será retratada como alguém parecido com elas…. Eu nunca encontrei uma sereia nem conheço ninguém que tenha encontrado uma. Não sei a cor da sua pele nem do seu cabelo, não sei a altura nem o seu tom de voz — e mesmo sem conhecermos uma sereia, ninguém reclamou quando a personagem criada por Hans Christian Andersen no século 19 foi retratada como uma mulher branca de cabelo ruivo em um desenho da Disney. Sem deixar de lado o fato de que várias reclamações tinham uma inspiração racista, há também a verdade de que, depois de retratada branca e ruiva em inúmeros filmes infantis, a imagem ficou gravada nas nossas consciências. São bonecas, desenhos animados da Disney e de outros estúdios, roupas, e muitos ítens martelando essa ideia na nossa cabeça desde 1989, quando o longo metragem de animação foi lançado. Esse processo de repetição de uma imagem torna aquela que seria apenas uma possibilidade de leitura da aparência da personagem na única concepção verdadeira que ela poderia ter.

O mesmo fenômeno acontece com nossas percepções teológicas. Dentro do mundo judaico, toda vez que vamos dizer uma brachá usamos a fórmula “ברוך אתה ה׳, אלהינו מלך העולם”, “Você é Abençoado, ה׳, nosso Deus, Rei do Universo”. Vários aspectos do Divino estão implícitos nessa curta fórmula: Deus é outro, a quem endereçamos por אתה, Você — e portanto não é parte de nós. Deus é Masculino. Deus é hierárquico, nosso Rei e de todo o mundo. Na cultura mais ampla, quando Deus é personagem de um filme é, na imensa maioria das vezes, retratado como uma pessoa branca, idosa e de voz bem grave. Mesmo os humoristas mais desconstruídos, que mais questionam perspectivas religiosas tradicionais retratam Deus desta forma — outro, masculino e hierárquico. Quando Deus é apresentado como algo fora deste figurino — e tivemos várias tentativas assim nos últimos anos — tem a mesma recepção que a Capará do Moishe: é heresia!

Eu fiz um exercício com grupos de educadores e alunos nos últimos meses: lhes perguntei que atributos eles dariam a Deus de acordo com a forma como é retratado na Torá e na liturgia judaica. A maioria das respostas esteve longe de ser acolhedora: “punitivista”, “egocêntrico”, “dogmático”, “temido”, “violento”, “misógeno” foram algumas das expressões que me foram dadas. No entanto, quando eu perguntava sobre o que eles acreditavam a respeito de Deus, recebia respostas completamente diferentes, que falavam em acolhimento, parceria e horizontalidade. Pelos textos que lemos, pelas rezas que dizemos, pela realidade cultural em que vivemos, passamos a aceitar que a perspectiva “correta” de Deus é uma na qual, muitos de nós não acredita mais.

“Não acredita mais” também precisa ser qualificado por que está implícito nesta formulação que um dia os judeus acreditaram neste Deus. O rabino Larry Hoffmann é um dos principais — se não, o principal — especialista em liturgia judaica dentro do mundo judaico liberal. Ele contesta a ideia da qual fomos convencidos de que nossos antepassados acreditavam nestes textos de forma literal. Em suas palavras:
 
Para complicar a situação, ainda é muito ruim nossa compreensão de nossos antepassados, que consideramos santos sem humor que não tiveram que sofrer os problemas com a reza que nos atormentam. Mas e se eles fossem mais parecidos conosco do que pensamos? As mesmas rezas que nos incomodam os incomodaram - um Deus todo-poderoso, todo-bom e onisciente que permite que crianças inocentes morram, por exemplo? Quando encontraram essas alegações litúrgicas, eles as levaram literalmente? Ou eles já haviam chegado a um acordo com a impossibilidade de expressar o profundo? Eles tiveram que aguardar críticas literárias modernas para desenvolver aquilo que agora chamamos de "estratégias de leitura" - ou eles já sabiam o suficiente para ler da maneira que fazemos, reconhecendo a poética da símile, da hipérbole, da personificação, etc? Afinal, o fato de viverem em tempos medievais não os torna nem infantilmente ingênuos nem mentalmente incompetentes. Alguns deles eram gênios como Maimônides, que negaram a corporalidade de Deus e anteciparam nosso mal-estar com rezas que tratam Deus como se Deus fosse um juiz humano demais que requer pacificação por reza e petição. Mas Maimônides foi o único que pensou em tais "heresias" ou era apenas uma pessoa particularmente importante que ousou dizê-las em voz alta? Os grandes escritores nem sempre desenvolvem idéias que ninguém jamais teve, mas as expressam com palavras que evocam saberes de leitores que mais ou menos suspeitavam dessas verdades de qualquer maneira, mas não tinham como expressá-las.

Da mesma forma, o que diríamos sobre os autores dessas rezas? Como saberíamos se eles escreveram ironicamente, em vez de literalmente, por exemplo? O hebraico deles não era vocalizado, deixando a nós, leitores, adivinhar pontuação como vírgulas e pontos, mas também pontos de exclamação por intensidade, pontos de interrogação para indicar incertezas retóricas e aspas para alertar contra uma compreensão literal do que eles colocam. E se estivermos entendendo tudo errado? Podemos ver, por exemplo, com que frequência eles citaram a Bíblia; mas se a principal preocupação deles fosse citar, como saberíamos se eles pretendiam que as citações fossem verdades literais? Citamos as “sete eras do homem” de Shakespeare para transmitir a idéia de desenvolvimento humano, mas não para dizer que existem sete dessas eras especificamente pelas quais os “homens”, mas não as mulheres, passam. Se alguém escreve "divinamente", não queremos dizer que realmente escreva como Deus. E se nossos escritores de reza mais talentosos quase nunca interpretassem seus escritos literalmente? E se eles fossem talentosos do jeito que os escritores são hoje - capazes de esticar a linguagem com imaginação suficiente para transmitir o que o pensamento conceitual comum nunca chegará? [5]
Eu li na semana passada um artigo do Fernando Reinach segundo o qual encontraram um esqueleto em Bornéu, na Indonésia, que teve uma perna amputada entre o joelho e o pé 31 MIL anos atrás. As marcas nos ossos demonstram que não foi um acidente, mas uma amputação cirúrgica. A cirurgia aconteceu quando o paciente tinha 14 ou 15 anos e ele viveu até os 20 anos. De acordo com Reinach:
O que me parece óbvio é que essa descoberta vai levar os cientistas a reconsiderar o grau de desenvolvimento tecnológico e cultural desses povos. Como essas populações não conheciam a escrita e praticamente não construíam obras arquitetônicas, tudo o que sabemos sobre elas foi aprendido escavando locais em que viviam e estudando os ossos, as pinturas, os restos de alimentos e os poucos artefatos encontrados. Com tão pouca informação, é natural subestimarmos o progresso dessas sociedades. Uma descoberta como essa vai nos forçar a reavaliar o conhecimento e as tecnologias que essas pessoas já dominavam. [6]
Há mais de 30 mil anos a humanidade já conseguia amputar órgãos mas continuamos imaginando que nossos antepassados acreditavam na Torá de forma literal e que nossos rabinos escreveram a liturgia judaica sem nenhuma dose de licença poética, sem uso de metáforas e sem ironias. Todas essas seriam técnicas modernas para escapar de uma realidade teológica com a qual não conseguimos nos adequar.

Em seu livro “Teologia Metafórica: Modelos de Deus na Linguagem Religiosa”, Sally McFague defende que a leitura de textos religiosos com se eles tivessem um significado único e literal constitui “idolatria da linguagem religiosa”: 
Os antigos eram menos literalistas do que nós, conscientes de que a verdade tem muitos níveis e que quando se escreve a história da vida de uma pessoa influente, a perspectiva de alguém colorirá essa história. A nossa é uma mentalidade literalista; a deles era uma mentalidade simbólica. [7]
E se uma leitura simbólica fosse uma possibilidade ao nosso alcance? E se nos permitíssemos ter uma leitura generosa e radicalmente metafórica dos poemas litúrgicos que leremos nesses dias de Grandes Festas?

No livro sobre metáforas religiosas que eu mencionei acima, a autora propões técnicas para sermos capazes de usar estas metáforas com intenção, sem sentir que estamos nos submetendo a uma teologia que não é a nossa — e também para reconhecer que algumas destas metáforas não funcionam conosco e que devemos buscar outras referências. Em um desses exemplos no qual a releitura foi possível, ela fala da imagem de Deus como ceramista,  que faz parte da liturgia de Iom Kipur e que me era cara e incômoda. Me incomodava a ideia de Deus como ceramista porque ela me colocava no incômodo e passivo papel de argila, sem agência alguma e sujeito à vontade do meu Criador. Carolyn Jane Bohler, a autora, conta no livro que seu filho trabalha com argila e o que ela aprendeu com ele é que são necessárias várias tentativas até que o produto final esteja pronto. Ela continua, dizendo que o Ceramista Divino gosta de ser criativo, de nos editar, nos moldar e nos dar forma.

Com uma leitura generosa assim, sem ofender o sentido do texto mas tampouco assumindo que seus autores tinham a intenção que adotássemos uma leitura literal, eu consegui enxergar uma forma como o Divino que reside dentro de mim, de forma não hierárquica e sem assumir qualquer gênero, me ajuda a me transformar o tempo todo, em diálogo comigo, e como buscamos juntos que eu me transforme na melhor versão de mim mesmo. A própria autora reconhece que nem todas as metáforas dão espaço para este tipo de busca simbólica. No livro do profeta Hoshea, Deus se compara a um marido abusivo — uma imagem, talvez impossível de ser resgatada, especialmente para vítimas de abuso doméstico. Muitos outras, no entanto, foram o bebê proverbial jogado fora junto com a água suja.

Na melhor prédica que eu já li, a rabina Margaret Moers Wenig retrata Deus como uma velha mulher esperando seus filhos visitarem em Iom Kipur. Em um certo momento, Deus reclama dos cartões postais que seus filhos lhe mandam, com palavras impressas escritas por outros, nas quais eles apenas assinam seu nome — no final do texto, fica claro que estes cartões postais são as páginas do machzor, o livro de rezas de Rosh haShaná e Iom Kipur, palavras que repetimos como se fossem nossas, como se tivéssemos a intenção que elas transmitem, sem nem ao menos pararmos para refletir sobre o seu significado.

Moishe, o dono da hospedagem, teve a coragem radical de fazer cheshbon hanefesh, a contabilidade da alma, por ele e por Deus e, assim, dar significado ao ritual de Capará. Será que nós também somos capazes deste tipo de coragem radical e de transformar a experiência destes dias temíveis em algo verdadeiramente significativo e transformador?

Shaná Tová! Que seja um 5783 transformador e muito doce para todos nós!


[1] S. Y. Agnon, “A Conta”, Yamim Noraim, parte II, cap. 22
[2] Gen. 18:25
[3] Ex. 32:11-13
[4] Talmud Bavli Bava Metsia 59b
[5] Lawrence A. Hoffman, Talmud Bavli Bava Metsia 59b “Prayers of Awe, Intuitions of Wonder”, Who by Fire, Who by Water: Un’taneh Tokef. Lawrence A. Hoffman (ed.), Woodstock, Vt: Jewish Lights Pub, 2010. pp. 4-12.
[6] Fernando Reinach, “A mais antiga perna amputada”, Estado de São Paulo, 17 de setembro de 2022
[7] Sallie McFague, Metaphorical Theology: Models of God in Religious Language, p. 23/401 (e-book)

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Dvar Torá: Passos concretos em direção à Redenção (CIP)

Sabe quando você faz planos e só na hora de colocá-los em prática se dá conta de que o teu planejamento não levou em conta nem metade das complicações que poderiam aparecer?

Comigo, aconteceu um exemplo disso há quase quinze anos. Uma amiga tinha encomendado a um marceneiro uma cama em formato de carro para o seu filho quando ele era pequeno, com para brisa, espelho retrovisor, direção e até placa com o nome do menino. Agora, que a criança tinha virado um adolescente e não queria mais dormir dentro do carro, a amiga procurava um novo lar para a cama. Na mesma época, estava na hora do meu sobrinho trocar de cama e acabamos ficando com a cama do filho da amiga e pedido ao mesmo marceneiro que a reformasse antes de mandarmos ao nosso sobrinho. Poucos dias depois de ele ter recolhido a cama, ele nos liga: toda a madeira estava comprometida com cupim; só dava pra aproveitar as partes de plástico! Já tendo assumido o compromisso com o sobrinho, pedimos que ele fizesse uma cama nova, seguindo o projeto que ele mesmo tinha feito anos antes e o resultado ficou absolutamente magnífico — mas deu muito mais trabalho do que originalmente imaginado!

Uma coisa parecida aconteceu aqui na CIP. Nossos sidurim de Shabat estavam ficando velhos, as capas descolando, fascículos soltando… era raro encontrar um exemplar que estivesse inteiro. Decidimos fazer uma nova impressão e para isso lançamos uma campanha pedindo doações. Faríamos pequenas mudanças, correção de erros que tinham sido identificado ao longo dos anos, atualização de algumas partes da reza para se adequar a mudanças de que tinham acontecido na CIP ao longo dos mais de 20 anos desde a primeira impressão. A comunidade respondeu prontamente, buscando homenagear seus entes queridos nas páginas do sidur e as doações começaram a chegar. O problema aconteceu quando fomos buscar os arquivos para fazer as atualizações, descobrimos que só tínhamos os fotolitos, resquício de outra época tecnológica e que não permitia nenhuma alteração. Para quem doou e está surpreso que o sidur ainda não está pronto, este é o motivo: assim como a cama em formato de carro, o sidur teve que ser completamente refeito.

A boa notícia é que recebemos há algumas semanas as provas finais, que estamos revendo minuciosamente par que o sidur possa ficar pronto o mais breve possível. Como eu disse, além da re-impressão, teremos a atualização de algumas passagens e a inclusão de trechos do serviço.

A mudança da liturgia, que muitas vezes se torna muito mais polêmica do que precisaria ser, é — ao contrário do que muitos podem pensar — um ato de profundo respeito pela seriedade da reza. Conheço gente (incluindo gente que eu respeito profundamente, incluindo alguns dos meus professores no seminário rabínico) que afirma nas suas rezas o exato oposto daquilo em que realmente acredita. Quando confrontadas, estas pessoas dizem “mas estas são apenas as palavras da reza, ninguém acredita nelas”. Em resposta a esta postura, o rabino Mordechai Kaplan, um dos mais influentes pensadores do judaísmo plural do século XX, é famoso por ter dito “We must mean what we say when we pray”, “nós precisamos querer dizer o que dizemos quando rezamos”. Para aqueles que, como eu, acreditam no poder transformador da tfilá, é difícil entender como repetir diariamente palavras em que não acreditamos possa ser considerada uma forma de honrar a tradição.

Uma das mudanças na nova impressão do sidur tem a ver com uma linha da Amidá, a Grande Oração.  Se vocês virarem para as páginas 31 e 32 do sidur, as últimas linhas dizem המביא גואל לבני בניהם למען שמו באהבה, que literalmente está agradecendo a Deus “por trazer um redentor aos filhos dos seus filhos pelo Seu nome, com amor”. Tudo muito lindo, não fosse o fato de que boa parte dos judeus liberais não acreditam na vinda de um redentor, uma pessoa que irá, através da sua ação pessoal, transformar toda a nossa realidade. Esse conceito, na opinião de muitos — entre os quais eu me incluo — corre o risco de dar origens a líderes carismáticos e populistas, que desdenham das instituições e acreditam que eles, e somente eles, são capazes de fazer as transformações necessárias. 

Já há muitas décadas que muitos sidurim liberais, nos movimentos reformista, conservador e reconstrucionista, substituíram o termo “גואל”, “redentor” por “גאולה”, “redenção”. Acreditamos que o arco da história tem o potencial de nos levar a um mundo mais justo, mais equilibrado, mais humano — mas esta construção depende do esforço de cada um de nós.

Na primeira das duas parashiot desta semana, “Chucat”, Miriam morre em Kadêsh. A frase seguinte na Torá nos conta que o povo não tinha água — um midrash liga estes dois eventos e nos conta que havia uma pedra da qual jorrava água e que seguia Miriam pelo deserto. Era assim que o povo se mantinha hidratado enquanto Miriam estava viva; quando ela faleceu, parou de jorrar água da pedra.

Nesta nova impressão do sidur, adicionamos uma música por Miriam ao final da havdalá, a cerimônia com que encerramos o shabat [1]: 

מִרְיָם הַנְּבִיאָה עֹז וְזִמְרָה בְּיָדָהּ

מִרְיָם תִּרְקוֹד אִתָּנוּ לְהַגְדִּיל זִמְרַת עוֹלָם

מִרְיָם תִּרְקוֹד אִתָּנוּ לְתַקֵּן אֶת-הָעוֹלָם.

בִּמְהֵרָה בְיָמֵינוּ הִיא תָּבִיאֵנוּ אֶל מֵי הַיְשׁוּעָה.


Miriam, a profetiza, força e música na sua mão. 

Miriam, dance conosco para aumentar a música do mundo. 

Miriam, dance conosco para consertar o mundo. 

Em breve, ainda nos nossos dias, elas nos guiará para as águas da Redenção.

Ela vem logo depois da música por Eliahu haNaví, o profeta Eliahu, que, de acordo com uma tradição, virá em um Sábado à noite anunciar a chegada da Redenção. Eu gosto de pensar que cantamos por Eliahu haNaví no sábado à noite para lembrarmos que o descanso terminou e precisamos voltar a trabalhar para garantirmos que caminhemos em direção à Redenção.

Mas esse é um trabalho intenso, para o qual nem sempre conseguimos enxergar os resultados. É um fenômeno conhecido que ativistas por mudanças estruturais muitas vezes esgotam suas forças e abandonam seus projetos antes que eles dêem resultado. Por isso, clamamos a Miriam e por seu poço de água para garantirem que estejamos sempre nutridos pelo carinho da sua liderança, pela doçura da sua voz e da sua dança, e acima de tudo pela clareza da sua visão.

E o que devemos fazer para chegar a este caminho da Redenção, vocês podem perguntar… O lindo da tradição judaica é que ela nos dá este mapa de ação todo dia de manhã. Quem tiver o sidur Shabat Shalom físico em mãos pode abrir nas páginas 101 e 102, as Bençãos da Manhã que repetimos todo dia, que nos ensinam como um mundo redimido deve ser:   um mundo que reconheça a dignidade de todo ser humano criado à imagem de Deus; um mundo em que todos possamos praticar nossa fé religiosa sem opressão; um mundo em que sejamos todos livres; um mundo em que ajudemos todas as pessoas a superar as suas deficiências; um mundo em que ninguém passe frio ou more nas ruas das nossas cidades; um mundo que dê fim às guerras e seus prisioneiros; um mundo em que respeitemos a natureza e vivamos com ela em harmonia; um mundo em que não nos sintamos tão desorientados; um mundo em que todos tenham suas necessidades básicas atendidas; um mundo em que Deus nos dá força para caminhar nesta direção.

Que neste shabat, consigamos respirar fundo, recarregar as baterias do corpo e da alma, viver por 25 horas como se o mundo fosse perfeito. E que ao final do shabat, animados pela perspectiva da Redenção trazida pelo profeta Eliahu e nutridos pelas águas do poço de Miriam, comecemos a trabalhar para transformar o sonho de Redenção em realidade.

[1] https://www.ritualwell.org/sites/default/files/imce_uploads/image.2005-07-22.3940936502.mp3


sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

As muitas faces de Deus e as portas que elas nos abrem

Um midrash famoso diz que toda pessoa é conhecida por três nomes: um pelo qual seus pais a chamam, um pelo qual as outras pessoas a chamam, e um que ela constrói para si mesma [1]. O midrash aponta para o fato de que apresentamos diferentes facetas de nós mesmos em momentos diversos das nossas vidas: somos carinhosos e cuidadosos ao pegar um bebê recém nascido nos braços, animados quando celebramos uma data importante, agressivos quando reclamamos de uma injustiça.

Logo no começo da parashá desta semana, o texto indica que esta dinâmica também se aplica à relação de Deus com as pessoas. Deus diz a Moshé: “Eu sou Adonai.  Apareci a Avraham, Itschak e Iaacov como El Shadai, mas não permiti que eles conhecessem meu nome Adonai.” [2] (no texto da Torá em hebraico, Deus usa seu nome impronunciável, que eu traduzi como “Adonai”)

Nesta fala, Deus reconhece que o tipo de relacionamento que teve com os três patriarcas, fundadores da fé e da família que daria origem ao povo judeu, não era o mesmo que teria com Moshé, líder de uma nação escravizada, seu libertador e representante político.

O mestre chassídico Levi Itschac de Berditschev, comparou Deus no momento de abrir o mar para a saída dos hebreus do Egito a um jovem sem barba mas disse que, ao revelar a Torá no Monte Sinai, Deus apareceu como um velho, com longas barbas que envolviam e vestiam o mundo. Para o rabino, a saída do Egito é um modelo de força Divina, enquanto a entrega da Torá é um exemplo de Deus se controlando e limitando Seu impacto. [3] Neste seu comentário, ele reconhece que mesmo na relação com Moshé e a geração que foi libertada do Egito, Deus se comportou de formas distintas, respondendo às demandas de cada momento.

Da mesma forma, cada um de nós desenvolve seu próprio relacionamento com o Divino, que evolui e se transforma ao longo das nossas vidas. Quantas vezes não pedimos que Deus agisse como “curador-chefe”, nos livrando de uma doença que nos afligia? Em outros momentos, podemos ter pedido para que Deus fosse mais enérgico, nos encorajando a sair de uma estado de passividade para que assumíssemos a condução de nossa própria vida ou que Deus nos acolhesse e permitisse que, metaforicamente, deitássemos em Seu colo, recebêssemos cafuné e chorássemos nossa tristeza.

Esta riqueza de imagens para a realidade Divina é parte fundamental da tradição judaica que, em sua pluralidade teológica, acolhe até mesmo os mais racionais e aqueles para quem a palavra “Deus” não remete ao inexplicável, ou àquilo que está além da nossa compreensão. Para alguns, imagens mais consolidadas de Deus, tão presentes em filmes e até em muitas partes da liturgia judaica (Deus como Rei, como Pai, como Pastor), ao invés de abrirem a conexão espiritual, a bloqueiam e impedem que se estabeleça um vínculo. Para estes casos, talvez ajude a pensar em Deus como “fonte da vida”, “alma de toda coisa viva” ou “fagulhas da alma”, como sugere a poetisa judia americana Marcia Falk [4].

Se Deus se revela com todas estas faces e com todos estes nomes, cabe a cada um de nós deixar a porta entreaberta para que ao menos um aspecto do Divino possa nos acolher e encher nossos dias de significado e de possibilidades. Que assim seja este nosso Shabat!


[1] Midrash Tanhuma, Parashat Veyekel, ítem a 
[2] Ex. 6:2-3
[3] Or Rose, “Divine Limitation and Human Responsibility”, in Righteous Indignation: a Jewish Call for Justice, pgs. 25-27.
[4] Marcia Falk, The Book of Blessings.