sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Dvar Torá: Sodoma: uma cidade como as nossas (CIP)


Nesta semana nós tivemos a segunda aula de um curso que eu estou dando com a arte-educadora Karen Greif Amar juntando midrash e as artes plásticas. Como nós começamos o curso algumas semanas depois de Simchat Torá, estamos um pouco atrasados em relação ao ciclo de leitura semanal. Nesta segunda semana do curso tratamos da segunda parashá da Torá: Noach.

Entre os midrashim que lemos, há um [1] que conta que, antes de criar este mundo em que vivemos, Deus criou vários outros. Criou e destruiu, criou e destruiu, criou e destruiu, até que se satisfez com este mundo e resolveu mantê-lo. Ao que parece, a resolução para manter este mundo sem ser destruído não durou muito. Ainda no finalzinho de parashat Bereshit, o texto indicava:
ה׳ viu quão grande era a maldade humana na terra - como todo plano elaborado pela mente humana não era nada além do mal o tempo todo. E ה׳ lamentou ter feito a humanidade na terra. Com o coração entristecido, ה׳ disse: “Exterminarei da terra os homens que criei: os homens com os animais, os répteis e as aves do céu; pois lamento tê-los feito.” [2]
Todos nós conhecemos ao final daquela história: um grande dilúvio veio e matou quase toda a vida sobre a Terra. Noach e sua arca salvaram alguns animais de cada espécie para que pudéssemos continuar nossa jornada por aqui. Para indicar que nunca mais Deus faria outro dilúvio destruir toda vida sobre a terra, Deus estabelece o arco-íris, sinal do pacto que Deus firmava com Noach.

Eu fico pensando na história de Noach quando leio a parashá desta semana, Vaierá — em particular, o começo da história de Sodoma e Gomorra, quando Deus se dá conta do que está acontecendo nestas cidades:
Então ה׳ disse: “A indignação de Sodoma e Gomorra é tão grande, e seu pecado tão grave! Descerei para ver se eles agiram de acordo com o clamor que Me alcançou; se não, tomarei nota.” [3]
Apesar da decisão prévia simbolizada pelo arco-íris, Deus decide — depois de considerar os protestos de Avraham — destruir as cidades, ainda que poupasse o resto do mundo. Podemos ir pela tecnicalidade de que desta vez não foi um dilúvio, mas uma chuva de enxofre e fogo, que matou tudo que lá vivia mas, pela segunda vez, Deus retoma o hábito de criar mundos e destruí-los, que parecia ter abandonado quando criou o nosso universo.

O que pode ter levado Deus a reverter sua decisão depois de tê-la reafirmado após o Dilúvio? Os midrashim buscaram com afinco esta explicação.

Alguns textos [4] afirmam que Sodoma era uma cidade extremamente rica, de solo fértil e cheia de prata, ouro e pedras preciosas. No entanto, apesar de serem caracterizados como as pessoas mais ricas da Terra, seus cidadãos não se preocupavam com o bem estar alheio. Cometiam fraudes contra os visitantes, impediam que as aves pudessem comer dos frutos da terra, cometiam inúmeras injustiças que mantinham seus privilégios intactos.

Algumas história contam que eles estabeleceram regras que proibiam a ajuda aos necessitados, um crime cuja pena era a pena de morte. Há diversas versões com relação a quem foi a jovem e quem ela ajudava, mas os midrashim apontam para uma moça que, tendo ajudado uma pessoa em necessidade e tendo sido descoberta pelos moradores de Sodoma, foi morta na fogueira. Teriam sido os seus gritos que chegaram aos ouvidos de Deus, justificando Sua intervenção. 

Mesmo antes dos midrashim, os profetas já apontavam em direções semelhantes para a má conduta de Sodoma. No livro do profeta Ezequiel, ele diz, em nome de Deus: “Este foi o pecado de sua irmã Sodoma: arrogância! Ela e as filhas tinham muito pão e uma tranquilidade imperturbável; no entanto, ela não apoiou os pobres e necessitados.” [5]

Quando eu comecei a estudar esse assunto, nunca tinha escutado sobre essas histórias que falam de arrogância, de egoísmo, de manutenção de privilégios, de indiferença para com os segmentos mais vulneráveis. Histórias que falam da tendência humana de, muitas vezes, se preocupar apenas com seus próprios desejos e necessidades, sem considerar quem mais é afetado pelas suas ações. Quando conseguimos ser a melhor versão de nós mesmos, reconhecemos estes impulsos e podemos atuar para amenizá-los. Em outras situações, simplesmente nos rendemos e somos tomados pelo que há de pior na humanidade. Por tudo isso, teria sido apropriado que esses midrashim tivessem se tornado os textos básicos de uma religiosidade preocupada com nossa conduta no mundo. Não foi o que aconteceu.

O mais curioso, ou o mais triste, é que a destruição de Sodoma e Gomorra recebeu uma outra narrativa. Ao invés de destacar a falta de solidariedade, de empatia, de generosidade, muitas tradições religiosas preferiram apontar para as práticas sexuais da cidade, insinuando que teria sido a homossexualidade de seus habitantes que teria dado origem à ira Divina. Sodomia, ainda hoje, aparece no dicionário como uma prática de homosexualidade masculina. 

Ao invés de olhar para nossas próprias falhas e identificar áreas em que podíamos crescer, estas abordagens ao texto apontaram para o “outro” como o problema, como a causa da ira Divina. Erramos e perdemos duas vezes: ao não percebermos em Sodoma e Gomorra um espelho para nossas próprias ações de egoísmo, arrogância e violência e ao apontarmos o dedo acusador para grupos inocentes de qualquer culpa.

A prática de responsabilizar o grupo com menos chance de responder ao nosso ataque não ficou restrito às lições religiosas de Sodoma e Gomorra. Ao longo da história — da NOSSA história — inúmeras são as situações em que, ao invés de reconhecer sua responsabilidade pelos problemas que a cercam, a humanidade elegeu atribuir a culpa a um grupo apontado como bode expiatório.

Que as lições da destruição de Sodoma e Gomorra sejam de fato aprendidas, que procuremos nossos fantasmas e resolvamos nossos problemas olhando mais pra dentro e apontando menos o dedo acusador para o primeiro que passar.

Shabat Shalom

[1] Bereshit Rabá 3:7
[2] Gen. 6:5-7
[3] Gen. 18:20-21
[4] Tosefta Sotá 3:3, Pirkei de Rabi Eliezer 25
[5] Eze 16:49-50

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Abandonando os lugares que nos aprisionam

Ein mucdám u-meuchár ba-Torá” é um princípio rabínico de acordo com o qual as passagens relatadas na Torá não estão, necessariamente, em ordem cronológica. Algo que apareça mais cedo no texto pode ter acontecido depois de algo que será relatado mais tarde. Na esperança de que este princípio valha para a forma como tratamos do calendário judaico, vou me permitir tratar de Pessach, festa para a qual ainda faltam mais de cinco meses!

Durante o seder e a contação da história na hagadá, em geral damos pouco destaque à discussão entre Rav e Shmuel, dois sábios da primeira geração de Amoraim da Babilônia, tendo vivido no terceiro século da Era Comum. Rav e Shmuel travavam debates frequentes que foram registrados nas páginas do Talmud. Com relação ao seder de Pessach, ambos aceitavam o princípio estabelecido na Mishná (que havia sido compilada na geração anterior, a última dos Tanaim), de que “Os pais devem ensinar de acordo com a inteligência e a personalidade de cada criança. Comece descrevendo degradação e culmine com a libertação” [1] Ees debatiam, no entanto, qual era o significado da degradação e da libertação sobre a qual deveriam ensinar as crianças. 

Shmuel disse: comece com “fomos escravos na terra do Egito” e continue contando, da escravidão física à libertação política. Rav disse: comece com Terach, o pai de Avraham, e o estado de idolatria em que nossos antepassados se encontravam. “Um dia nossos antepassados eram escravos da idolatria e idolatravam deuses pagãos. Agora, depois do Har Sinai, Deus nos trouxe mais próximos do serviço Divino.”

A parashá desta semana, Lech Lechá, nos traz o início do processo de redenção espiritual sobre o qual Rav entendia que o Seder de Pessach deveria tratar. Nela, Deus diz a Avram: “Abandone a sua terra, do lugar em que você nasceu e a casa do teu pai e vá para a terra que te mostrarei”. O movimento de Avraham, ao deixar a casa dos seus pais e buscar seu caminho em direção à terra de Cnaán não foi apenas uma migração geográfica: foi um processo de renascimento espiritual.

Somos, na imensa maioria, descendentes de imigrantes, de pessoas que deixaram suas terras de origem e se instalaram no Brasil, um processo muitas vezes doloroso de desenraizamento de um lugar conhecido e busca de novas referências em uma nova terra. Somos, por característica cultural, um povo que segue o exemplo de Avraham, sempre em busca de novas referências de visão de mundo; um processo que pode ser igualmente difícil e doloroso, de rejeitar as antigas certezas mas de ainda não estar seguro de quais serão as novas crenças.

A jornada de Avraham, que tem início na parashá desta semana, pode nos servir de referência nessa travessia. O caminho não é, nem nunca foi, linear. Avraham avança e recua, demonstra bondade e caráter (como quando resgata seu sobrinho Lot, que havia sido sequestrado) ao mesmo tempo em que também comete seus erros (como quando, no Egito, tenta passar Sará como se fosse sua irmã). Nossos caminhos tampouco são lineares, aprendemos ao longo da jornada, nos fortalecemos e nos preparamos para os novos desafios.

Que neste shabat consigamos abandonar os lugares e as crenças que nos aprisionam e busquemos nossa redenção no caminho, no esforço de caminhar e aprender.

Shabat Shalom!


[1] Mishná Pessachim 10:4

[2] Bereshit Rabá 39:11