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domingo, 17 de setembro de 2023

Dvar Torá: Confortando quem está perturbado; perturbando quem está confortável. Rosh haShaná 5784 (CIP)

 

Esses dias saiu na imprensa que a prefeitura quer desativar sua rede de trólebus, que custa demais para ser mantida, com uma frota bastante reduzida [1]. Eu ainda lembro de quando ia de Higienópolis para a Hebraica de trólebus, que eu pegava na rua Augusta, não muito longe daqui — e já naquele tempo a viagem, muito mais silenciosa que em um ônibus normal, era muitas vezes interrompida porque as hastes do veículo se soltavam dos cabos elétricos. Meus filhos adolescentes não têm ideia do que seja trólebus e a verdade é que mesmo de ônibus e de metrô eles andaram muito menos do que eu tinha na idade deles… mas essa é a dinâmica do progresso. O mundo vai mudando e nem sempre as novas gerações entendem como tudo funcionava em outros tempos. Quando eu comecei a andar de ônibus para voltar da escola, no começo da minha adolescência, já não circulavam mais os bondes, por exemplo. Hoje, talvez, os cariocas vivam o renascimento do bonde, rebatizado de VLT, Veículo Leve sobre Trilhos, mas eu prefiro chamá-lo pelo seu nome original. De onde veio a palavra “bonde”, que em nada se relaciona à forma como esse veículo é chamado em outras línguas? Diz a lenda [2] que na década de 1870, esse tipo de veículo era puxado por animais, levava 30 pessoas e era chamado de “Carril de Ferro”. A passagem custava um quinto do valor da menor moeda em circulação, então a empresa vendia 5 bilhetes por uma moeda. Esses bilhetes foram chamados de “bonds” e, no uso cotidiano, o veículo começou a ser chamado de “bonde”. 

Não são raras as situações em que traduções erradas acabam se estabelecendo em um idioma. Temos um exemplo desses na liturgia de Rosh haShaná. A Mishná, o primeiro documento escrito pelo movimento rabínico ao redor de 220 EC, estabelece que há 4 dias de julgamento no calendário: em três deles são definidas a fartura dos grãos, das frutas e da água para o ano seguinte. Sobre Rosh haShaná, a quarta data da lista, está escrito: 

Em Rosh haShaná, todos que vieram ao mundo passam na frente de Deus “ki-vnei Maron”, como está escrito: “Quem cria junto seus corações, quem considera todas as suas ações?”. [3]

Como vocês viram, eu escolhi não traduzir “ki-vnei Maron”. Em casa, eu tenho duas edições da Mishná comentadas — uma delas [4] explica a expressão seguindo a opinião do Talmud, de que em aramaico “maron” está associado à palavra para ovelhas e que, portanto, nos apresentamos a Deus como ovelhas passam em frente ao seu pastor. A segunda edição da Mishná [5] propõe uma tradução radicalmente diferente, segundo a qual “ki-vnei maron”, grafado como duas palavras distintas, é um erro de transcrição. A palavra correta deveria ser “ke-numeron”, em latim: como tropas de um exército se apresentam ao seu comandante. A diferença, ainda que sutil, tem impacto na forma como entendemos esse dia do Julgamento.

Eu percebo que há pelo menos duas maneiras através das quais as pessoas que prestam alguma atenção à liturgia encaram esse processo de t’shuvá, e nem sempre me parece que a maneira que cada um adota é a mais adequada para sua situação. Há um ditado chassídico, atribuído ao rabino Simcha Bonim de Pshischa, de acordo com o qual cada um de nós deveria andar com dois bilhetinhos, cada um colocado em um bolso. Em um bilhete está escrito “בִּשְׁבִילִי נִבְרָא הָעוֹלָם”, “o mundo foi criado por minha causa” [6] e no outro bilhete está escrito: “וְאָנֹכִי עָפָר וָאֵפֶר”, “eu sou apenas pó e cinzas” [7]. E o rabino advertia: “Muitos se enganam e usam o bolso invertido daquele que precisavam usar.” [8] Ou seja: quando seu ego está expandido, usam o bilhete que lhes atribui ainda mais importância e quando estão se sentindo para baixo, usam o bilhete que os deixam ainda mais deprimidos. Eu temo que, para muitos entre nós a ideia do julgamento em Rosh haShaná tenha um efeito parecido ao bilhete do bolso errado. Para alguns, já no fundo do poço, enxergar-se como ovelhas indefesas passando em frente ao seu pastor os deixa ainda mais desempoderados para serem agentes das mudanças que precisam fazer em suas vidas; para outros, se sentindo no topo do mundo, enxergar-se como poderosas tropas militares fortalece seu senso de arrogância e de que nada poderá detê-los

O Unetanê Tokef, que cantaremos daqui a pouco, tenta buscar uma conciliação entre as duas versões. De um lado, o texto toma “bnei maron” como querendo dizer “um rebanho de ovelhas”, seguindo a tradição do Talmud ao afirmar: “E todos os que peregrinam pelo mundo passam diante de Ti como ‘bnei maron’. Como o pastor vistoria-o, passa-o sob sua vara, assim Você também fará passar, contará e enumerará e considerará a alma de todo ser vivo, determinando o destino de cada criatura e escrevendo seu veredito.” De outro lado, o poema também faz alusão à formação militar quando diz “anjos se apressarão, temor e tremor os dominarão. E dirão: eis que chegou o Dia do Julgamento, quando até o exército celestial se apresenta em juízo.”

Para mim, a parte mais sombria do Unetanê Tokef, ainda mais difícil do que aquela que detalha os tipos de mortes que as pessoas podem sofrer, é quando o texto diz que Deus será Juiz, Procurador, Perito e Testemunha. É uma cena que me lembra profundamente o livro “O Processo” de Franz Kafka, no qual o personagem acorda um dia perseguido pela polícia e processado por um crime que ele não sabe qual é, em um sistema judiciário todo organizado contra ele. Ao ler esta passagem do Unetanê Tokef, sempre imagino Josef K., o personagem central do livro, perguntando por qual crime está sendo processado, e o Juiz, que também é procurador, perito e testemunha, lhe respondendo “Você sabe muito bem o que fez.”

A verdade é que sabemos muito bem o que fizemos neste ano que terminou, bem até demais. Eu sei que falo em nome de muitos quando digo que “não tá fácil”. As estatísticas dizem que mais de um quarto da população brasileira sofre de ansiedade e que um em cada oito já teve diagnóstico para depressão. De forma crescente, esse quadro de saúde mental, especialmente a depressão, pode levar a consequências trágicas: dados do SUS mostram que o número de mortes por lesões autoprovocadas dobrou nos últimos 20 anos. [9]

Vivemos em ambientes hiper-competitivos, tanto no âmbito pessoal quanto na esfera profissional — nada menos do que a excelência é aceitável. Uma falha gera uma cobrança, não uma reação empática — e assim aprendemos que não somos bons o suficientes, que nosso trabalho e nossa conduta não correspondem àquilo que é esperado de nós. Nos sentimos avaliados e julgados o tempo todo.

Nessas situações, não é produtiva a figura de um juiz-procurador-perito-testemunha que nos jogue ainda mais fundo no corredor kafkiano de um processo pré-definido contra nós. Aqui, precisamos de um pastor que nos pegue no colo, que reconheça que temos tentado, que nos ajude a encontrar o caminho novamente e a sair do buraco em que nos encontramos. 

Na minha prédica favorita, a rabina Margaret Moers Wenig apresenta Deus como uma mulher idosa esperando que seus filhos a venham visitar. [10] Evitamos essa visita por medo da decepção: da nossa decepção em entender que Deus não nos deu todo aquilo que esperávamos e achávamos que merecíamos e a decepção de Deus, ao perceber que não nos tornamos tudo aquilo que poderíamos. E, mesmo assim, Ela espera nossa visita e nos acolheria e enxugaria nossas lágrimas, não como juíza-procuradora-perita-testemunha, mas como mãe ou como pai que vê seu filho ou sua filha sofrendo.

Se você se vê hoje um pouco nesse lugar, adote então esse como o seu bilhetinho de Rosh haShaná: “בִּשְׁבִילִי נִבְרָא הָעוֹלָם”, “o mundo foi criado por minha causa”, e quando todas as cartas parecerem pré-definidas contra você, deixe de lado as imagens da corte e do julgamento e foque no carinho do pastor ou da mãe idosa sentada na cadeira da cozinha esperando por uma visita sua.

Do outro lado do espectro, há aqueles se veem, não apenas como réus neste processo, mas também se auto-atribuem os papéis de juiz, procurador, perito e testemunha e na fusão de todas essas funções, se auto-concedem um passe-livre para não avaliarem suas condutas, para continuarem agindo no mundo como se ele tivesse sido criado só por causa deles. São capazes de apontar para inúmeros problemas pelos quais passamos mas nunca de aceitar que tem alguma responsabilidade por eles. 

Um pequeno exemplo disso: em uma pesquisa publicada recentemente 81% dos entrevistados declararam que o Brasil é um país racista e, no entanto, 75% das pessoas discordaram completamente da frase “tenho algumas atitudes e práticas consideradas racistas”. [11] O problema são sempre os outros!

Nas palavras da poetisa Marcia Falk, t’shuvá é o processo “de nos voltarmos para dentro para encarar a nós mesmos.” [12] Em Rosh haShaná temos a oportunidade para olharmos com verdade e coragem para dentro de nós mesmos, mas quantos entre nós não evita essa possibilidade a todo custo, talvez com medo do que encontremos se realmente nos engajássemos neste processo.

Um midrash detalha, hora a hora, a criação do primeiro ser humano, no verdadeiro יום הרת עולם, no dia do nascimento do mundo:

“(…) na primeira hora, [a criação do ser humano] surgiu em pensamento; na segunda, [Deus] consultou os anjos; na terceira, [Deus] juntou sua terra; na quarta, [Deus] a amassou; na quinta, [Deus] o teceu; na sexta, [Deus] fez uma forma; na sétima, [Deus] soprou nela; na oitava, [Deus] o colocou no Jardim [do Éden]; na nona, ele foi ordenado [sobre o fruto proibido]; na décima, ele transgrediu; na décima primeira, ele foi julgado; na décima segunda, ele foi perdoado. [Deus] disse a Adam: “Este é um sinal para os seus filhos: da mesma forma que você esteve diante de Mim no julgamento neste dia e foi perdoado, também no futuro seus filhos se apresentarão diante de mim em julgamento neste dia e serão perdoados por Mim.” [13]

De acordo com esse midrash, o julgamento perante o qual nos apresentamos em Rosh haShaná é um jogo de cartas marcadas a nosso favor, tendo em vista que Deus já se comprometeu com Adám que seremos perdoados ao seu final.

Apresentados com essa possibilidade, há quem se declare inocente antes mesmo de avaliar as evidências e perdem a possibilidade de um encontro verdadeiro consigo mesmo.

Se esse é o seu caso, adote como o seu bilhetinho de Rosh haShaná: “וְאָנֹכִי עָפָר וָאֵפֶר”, “eu sou apenas pó e cinzas”, e leia-o quando tiver a sensação de que o mundo inteiro está ao seu dispor, que você não precisa lidar com as consequências das suas decisões e dos seus atos.

Um ditado atribuído ao mexicano Cesar Cruz diz que “a Arte deve trazer conforto àqueles que estão perturbados e perturbar aqueles que estão confortáveis” e líderes religiosos já disseram antes de mim que este deve ser também o papel da religião. Infelizmente, como os bilhetinhos trocados a que se referiu o rabino Simcha Bonim de Pshischa, muitas vezes nosso impacto é exatamente o contrário, fortalecendo os poderosos e afligindo os oprimidos. Que nesse ano, o nosso processo de t’shuvá seja verdadeiro para cada um de nós e que nos permita encontrar equilíbrio, acolhimento e verdade.


Shaná Tová!

 

[1] https://www.estadao.com.br/sustentabilidade/prefeito-quer-acabar-com-trolebus-em-sp-vale-a-pena-colocar-fim-nos-onibus-ligados-a-rede-eletrica/

[2] https://www.dicionarioetimologico.com.br/bonde/ e https://bafafa.com.br/turismo/historias-do-rio/a-origem-curiosa-das-palavras-bonde 

[3] Mishná Rosh haShaná 1:2

[4] Kehati

[5] Albeck

[6] Mishná Sanhedrin 4:5

[7] Gen. 18:27

[8] https://zusha.org.il/story/שני-כיסים/

[9] https://web.archive.org/web/20221015013650/http://www.cofen.gov.br/brasil-enfrenta-uma-segunda-pandemia-agora-na-saude-mental_103538.html

[10] Margaret Moers Wenig, “Deus é uma mulher e Ela está ficando velha”, in Sonsino, Rifat, The Many Faces of God: A Reader of Modern Jewish Theologies, URJ Press: New York, 2004. pgs. 241-248.

[11] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/07/brasileiros-dizem-viver-em-pais-racista-mas-negam-praticar-discriminacao.shtml

[12] Marcia Falk, The Days Between, p. 31.

[13] Vaicrá Rabá 29:1





domingo, 25 de setembro de 2022

Dvar Torá: Dando vida às metafóras sobre Deus. Rosh haShaná 5783 (CIP)


Eu quero começar a prédica com uma história chassídica que eu adoro ensinar e que eu encontrei em um livro de Shai Agnon [1], o autor israelense que ganhou o prêmio Nobel de Literatura de 1966. 
Um chassid um dia visitou seu rebe, o Rabino Elimelech de Lizensk nos dias entre Rosh Hashaná e Iom Kipur e lhe pediu se podia assistir a forma como o rabino conduzia a Capará.
Para quem não conhece o termo, Capará é uma tradição antiga na qual os pecados de uma pessoa eram transferidos para uma galinha na véspera de Iom Kipur, rodando o animal sobre a cabeça da pessoa. O animal era, então, abatido junto com todos os pecados da pessoa e doado. Com o tempo e a preocupação com o bem estar dos animais, algumas pessoas passaram a fazer o mesmo ritual, mas transferindo os pecados para notas de dinheiro que, então, eram doadas. Que fique claro que essas práticas não são mais praticadas pela imensa maioria do mundo judaico liberal.
A resposta do rabino, de alguma forma, surpreendeu o chassid:

 – “Eu estou honrado que você queira me ver fazendo a mitsvá de capará, mas eu preciso te dizer que nesta mitzvá especificamente, minha performance não é nada extraordinária. Se você quiser ver alguém que a faz de uma forma especial, vá ver o Moishe, que toma conta do albergue.”

Na manhã antes de Iom Kipur, o jovem chasid foi até a casa do Moishe observar como ele fazia Capará e ficou espiando pela fresta da janela.

Moishe começou sentando em uma cadeira de madeira em frente a uma pequena lareira em sua sala com“seus dois livros de teshuvá” ao seu lado. Moishe pegou o primeiro livro e disse:

– “Ribonô shel Olam”, Senhor do Universo, chegou a hora de acertarmos as contas  de todas as nossas transgressões do último ano, pois a Capará se aplica sobre todo Israel.”

Ele abriu o primeiro livro, leu o que estava escrito com muito cuidado e começou a chorar. O jovem chasid escutou atentamente enquanto Moishe lia uma lista de pecados (todos sem maior importância) que Moishe tinha cometido no ano anterior. Quando terminou de ler, Moishe pegou seu caderno encharcado de lágrimas, balançou-o sobre sua cabeça e o jogou no fogo. Ele, então, pegou o outro livro, bem mais pesado que o primeiro. E disse:

- “Ribonô shel Olam, Senhor do Universo, antes eu listei todas as minhas transgressões, agora eu vou contar todas as transgressões que Você fez.”

Moishe imediatamente começou a listar todos os episódios de morte, sofrimento, doença e destruição que tinham acontecido durante o ano anterior para todos os membros de sua família. Quando terminou de listar, Moishe disse:

- “Ribonô shel Olam, se formos calcular com exatidão, Você me deve mais do que eu te devo, mas eu não quero ser tão preciso nas contas, por que hoje é véspera de Iom Kipur e somos todos obrigados a fazer as pazes uns com os outros. Portanto, eu desculpo todas as Suas transgressões contra mim e minha família e Você também desculpa todas as minhas  transgressões contra Você.”

Com isso, Moishe pegou o segundo livro, que também estava encharcado de lágrimas, balançou sobre sua cabeça e jogou no fogo.

Ele então colocou vodka no seu copo, fez a benção, e disse “Le chayim!” bem alto. Se sentou com sua esposa e teve uma boa refeição em preparação ao jejum.

O jovem chasid, chocado, voltou ao seu rebe e lhe contou as heresias que Moishe tinha dito a Deus. O Rabino lhe disse:

– “Pois saiba que nos céus, todo ano Deus e toda a Sua corte se juntam para escutar com muita atenção as coisas que Moishe diz. E como resultado, há alegria e satisfação em todos os mundos.”
Como eu disse, eu adoro ensinar esta história porque há nela um elemento transgressor fundamentalmente judaico que acabamos perdendo no último século e meio. Quando eu dou a primeira aula no Curso de Introdução ao Judaísmo, eu digo aos alunos que, enquanto para a maioria das outras tradições religiosas, ser uma pessoa devota significa dizer “Sim, Senhor” para a mensagem Divina, no Judaísmo, um judeu comprometido responde ao chamado de Deus com “como você ousa me pedir uma coisa dessas?!”. Foi assim que Avraham, o primeiro patriarca respondeu quando Deus o instruiu a destruir Sodoma e Gomorra [2]; foi assim que Moshé respondeu quando Deus lhe disse que iria destruir o povo após o episódio do Bezerro de Ouro [3]; foi assim que os rabinos responderam quando Deus tentou se intrometer em uma das suas discussões rabínicas [4]. O nome que o povo judeu recebe na maior parte da tradição rabínica, o povo de Israel, reflete, de alguma forma, esta perspectiva: “Israel” quer dizer, literalmente, “aquele que duela com Deus”. O mais incrível é que Deus parece não se incomodar com o questionamento de Suas ações, pelo contrário: em um episódio em que sua opinião é recusada pelos rabinos, Deus sai sorrindo e dizendo “meus filhos me derrotaram”, orgulhoso como um pai cuja filha o derrota no jogo de xadrez.

Quando eu ensino a história do Moishe fazendo sua capará inovadora, as pessoas parecem apreciá-la, e eu acho que a razão para isso é que elas admiram a conduta dele. Mas a verdade é que eu acho que elas também se identificam com a conduta do chassid, que acha que trata-se de heresia. 

Queremos um novo modelo de relacionamento com o Divino mas temos uma dificuldade imensa de abrirmos mão do modelo atual, mesmo que nos sintamos profundamente incomodados com ele.

Na preparação para esta predica, eu estava lendo um livro chamado “Deus o quê? O que nossas metáforas para Deus revelam sobre nossas crenças sobre Deus”. Logo no começo do livro a autora, Carolyn Jane Bohler, oferece um questionário sobre as nossas crenças e ela sugere que os leitores o preencham antes de ler o livro e, de novo, depois de terminá-lo. 

Pessoalmente, depois de todos os anos de seminário rabínico, me considero um sujeito com uma educação judaica sofisticada, cuja compreensão de Deus não está baseada, de forma alguma, no que eu chamo de “o Deus Papai Noel”, de longas barbas brancas, sentado em um trono no céu, observando cada detalhe das nossas vidas. Meu entendimento do Divino é fluido, mas está muito mais próximo de Mordecai Kaplan, o fundador do movimento Reconstrucionista, que definiu Deus como “a força que causa a Salvação” ou de quem entende Deus como um processo ou ainda de Maimônides, o filósofo racionalista para quem a humanidade nunca seria capaz de afirmar com convicção o que Deus é, apenas o que Deus não é, como dizer que Deus não tem um corpo. E, apesar disso tudo, ao final do questionário, que tinha afirmações como “Deus continua trabalhando em nós, nos moldando”, “Deus e a humanidade compartilham poder e responsabilidade”, e “Deus toma o que é e, uma vez após a outra,  busca criar o melhor com o quem tem”, eu me surpreendi em me dar conta que a maior parte das minhas respostas partiam da premissa do “Deus Papai Noel”, aquele no qual eu não acredito. Eu fiquei me perguntando por que será, se essa não é o entendimento que eu tenho do Divino, que eu respondi as perguntas assim?

Porque o contexto que nos cerca conta e o contexto repetido conta ainda mais. Não sei quem acompanhou a polêmica do lançamento do trailer do filme com atores reais da Pequena Sereia, no qual o papel da protagonista é desempenhado por Halle Bailey, uma atriz negra. De um lado, fãs revoltados com o fato de que a Pequena Sereia do filme não terá a pele clarinha, quase branca, da versão em desenho animado. De outro,   crianças negras emocionadas em descobrir que sua heroína será retratada como alguém parecido com elas…. Eu nunca encontrei uma sereia nem conheço ninguém que tenha encontrado uma. Não sei a cor da sua pele nem do seu cabelo, não sei a altura nem o seu tom de voz — e mesmo sem conhecermos uma sereia, ninguém reclamou quando a personagem criada por Hans Christian Andersen no século 19 foi retratada como uma mulher branca de cabelo ruivo em um desenho da Disney. Sem deixar de lado o fato de que várias reclamações tinham uma inspiração racista, há também a verdade de que, depois de retratada branca e ruiva em inúmeros filmes infantis, a imagem ficou gravada nas nossas consciências. São bonecas, desenhos animados da Disney e de outros estúdios, roupas, e muitos ítens martelando essa ideia na nossa cabeça desde 1989, quando o longo metragem de animação foi lançado. Esse processo de repetição de uma imagem torna aquela que seria apenas uma possibilidade de leitura da aparência da personagem na única concepção verdadeira que ela poderia ter.

O mesmo fenômeno acontece com nossas percepções teológicas. Dentro do mundo judaico, toda vez que vamos dizer uma brachá usamos a fórmula “ברוך אתה ה׳, אלהינו מלך העולם”, “Você é Abençoado, ה׳, nosso Deus, Rei do Universo”. Vários aspectos do Divino estão implícitos nessa curta fórmula: Deus é outro, a quem endereçamos por אתה, Você — e portanto não é parte de nós. Deus é Masculino. Deus é hierárquico, nosso Rei e de todo o mundo. Na cultura mais ampla, quando Deus é personagem de um filme é, na imensa maioria das vezes, retratado como uma pessoa branca, idosa e de voz bem grave. Mesmo os humoristas mais desconstruídos, que mais questionam perspectivas religiosas tradicionais retratam Deus desta forma — outro, masculino e hierárquico. Quando Deus é apresentado como algo fora deste figurino — e tivemos várias tentativas assim nos últimos anos — tem a mesma recepção que a Capará do Moishe: é heresia!

Eu fiz um exercício com grupos de educadores e alunos nos últimos meses: lhes perguntei que atributos eles dariam a Deus de acordo com a forma como é retratado na Torá e na liturgia judaica. A maioria das respostas esteve longe de ser acolhedora: “punitivista”, “egocêntrico”, “dogmático”, “temido”, “violento”, “misógeno” foram algumas das expressões que me foram dadas. No entanto, quando eu perguntava sobre o que eles acreditavam a respeito de Deus, recebia respostas completamente diferentes, que falavam em acolhimento, parceria e horizontalidade. Pelos textos que lemos, pelas rezas que dizemos, pela realidade cultural em que vivemos, passamos a aceitar que a perspectiva “correta” de Deus é uma na qual, muitos de nós não acredita mais.

“Não acredita mais” também precisa ser qualificado por que está implícito nesta formulação que um dia os judeus acreditaram neste Deus. O rabino Larry Hoffmann é um dos principais — se não, o principal — especialista em liturgia judaica dentro do mundo judaico liberal. Ele contesta a ideia da qual fomos convencidos de que nossos antepassados acreditavam nestes textos de forma literal. Em suas palavras:
 
Para complicar a situação, ainda é muito ruim nossa compreensão de nossos antepassados, que consideramos santos sem humor que não tiveram que sofrer os problemas com a reza que nos atormentam. Mas e se eles fossem mais parecidos conosco do que pensamos? As mesmas rezas que nos incomodam os incomodaram - um Deus todo-poderoso, todo-bom e onisciente que permite que crianças inocentes morram, por exemplo? Quando encontraram essas alegações litúrgicas, eles as levaram literalmente? Ou eles já haviam chegado a um acordo com a impossibilidade de expressar o profundo? Eles tiveram que aguardar críticas literárias modernas para desenvolver aquilo que agora chamamos de "estratégias de leitura" - ou eles já sabiam o suficiente para ler da maneira que fazemos, reconhecendo a poética da símile, da hipérbole, da personificação, etc? Afinal, o fato de viverem em tempos medievais não os torna nem infantilmente ingênuos nem mentalmente incompetentes. Alguns deles eram gênios como Maimônides, que negaram a corporalidade de Deus e anteciparam nosso mal-estar com rezas que tratam Deus como se Deus fosse um juiz humano demais que requer pacificação por reza e petição. Mas Maimônides foi o único que pensou em tais "heresias" ou era apenas uma pessoa particularmente importante que ousou dizê-las em voz alta? Os grandes escritores nem sempre desenvolvem idéias que ninguém jamais teve, mas as expressam com palavras que evocam saberes de leitores que mais ou menos suspeitavam dessas verdades de qualquer maneira, mas não tinham como expressá-las.

Da mesma forma, o que diríamos sobre os autores dessas rezas? Como saberíamos se eles escreveram ironicamente, em vez de literalmente, por exemplo? O hebraico deles não era vocalizado, deixando a nós, leitores, adivinhar pontuação como vírgulas e pontos, mas também pontos de exclamação por intensidade, pontos de interrogação para indicar incertezas retóricas e aspas para alertar contra uma compreensão literal do que eles colocam. E se estivermos entendendo tudo errado? Podemos ver, por exemplo, com que frequência eles citaram a Bíblia; mas se a principal preocupação deles fosse citar, como saberíamos se eles pretendiam que as citações fossem verdades literais? Citamos as “sete eras do homem” de Shakespeare para transmitir a idéia de desenvolvimento humano, mas não para dizer que existem sete dessas eras especificamente pelas quais os “homens”, mas não as mulheres, passam. Se alguém escreve "divinamente", não queremos dizer que realmente escreva como Deus. E se nossos escritores de reza mais talentosos quase nunca interpretassem seus escritos literalmente? E se eles fossem talentosos do jeito que os escritores são hoje - capazes de esticar a linguagem com imaginação suficiente para transmitir o que o pensamento conceitual comum nunca chegará? [5]
Eu li na semana passada um artigo do Fernando Reinach segundo o qual encontraram um esqueleto em Bornéu, na Indonésia, que teve uma perna amputada entre o joelho e o pé 31 MIL anos atrás. As marcas nos ossos demonstram que não foi um acidente, mas uma amputação cirúrgica. A cirurgia aconteceu quando o paciente tinha 14 ou 15 anos e ele viveu até os 20 anos. De acordo com Reinach:
O que me parece óbvio é que essa descoberta vai levar os cientistas a reconsiderar o grau de desenvolvimento tecnológico e cultural desses povos. Como essas populações não conheciam a escrita e praticamente não construíam obras arquitetônicas, tudo o que sabemos sobre elas foi aprendido escavando locais em que viviam e estudando os ossos, as pinturas, os restos de alimentos e os poucos artefatos encontrados. Com tão pouca informação, é natural subestimarmos o progresso dessas sociedades. Uma descoberta como essa vai nos forçar a reavaliar o conhecimento e as tecnologias que essas pessoas já dominavam. [6]
Há mais de 30 mil anos a humanidade já conseguia amputar órgãos mas continuamos imaginando que nossos antepassados acreditavam na Torá de forma literal e que nossos rabinos escreveram a liturgia judaica sem nenhuma dose de licença poética, sem uso de metáforas e sem ironias. Todas essas seriam técnicas modernas para escapar de uma realidade teológica com a qual não conseguimos nos adequar.

Em seu livro “Teologia Metafórica: Modelos de Deus na Linguagem Religiosa”, Sally McFague defende que a leitura de textos religiosos com se eles tivessem um significado único e literal constitui “idolatria da linguagem religiosa”: 
Os antigos eram menos literalistas do que nós, conscientes de que a verdade tem muitos níveis e que quando se escreve a história da vida de uma pessoa influente, a perspectiva de alguém colorirá essa história. A nossa é uma mentalidade literalista; a deles era uma mentalidade simbólica. [7]
E se uma leitura simbólica fosse uma possibilidade ao nosso alcance? E se nos permitíssemos ter uma leitura generosa e radicalmente metafórica dos poemas litúrgicos que leremos nesses dias de Grandes Festas?

No livro sobre metáforas religiosas que eu mencionei acima, a autora propões técnicas para sermos capazes de usar estas metáforas com intenção, sem sentir que estamos nos submetendo a uma teologia que não é a nossa — e também para reconhecer que algumas destas metáforas não funcionam conosco e que devemos buscar outras referências. Em um desses exemplos no qual a releitura foi possível, ela fala da imagem de Deus como ceramista,  que faz parte da liturgia de Iom Kipur e que me era cara e incômoda. Me incomodava a ideia de Deus como ceramista porque ela me colocava no incômodo e passivo papel de argila, sem agência alguma e sujeito à vontade do meu Criador. Carolyn Jane Bohler, a autora, conta no livro que seu filho trabalha com argila e o que ela aprendeu com ele é que são necessárias várias tentativas até que o produto final esteja pronto. Ela continua, dizendo que o Ceramista Divino gosta de ser criativo, de nos editar, nos moldar e nos dar forma.

Com uma leitura generosa assim, sem ofender o sentido do texto mas tampouco assumindo que seus autores tinham a intenção que adotássemos uma leitura literal, eu consegui enxergar uma forma como o Divino que reside dentro de mim, de forma não hierárquica e sem assumir qualquer gênero, me ajuda a me transformar o tempo todo, em diálogo comigo, e como buscamos juntos que eu me transforme na melhor versão de mim mesmo. A própria autora reconhece que nem todas as metáforas dão espaço para este tipo de busca simbólica. No livro do profeta Hoshea, Deus se compara a um marido abusivo — uma imagem, talvez impossível de ser resgatada, especialmente para vítimas de abuso doméstico. Muitos outras, no entanto, foram o bebê proverbial jogado fora junto com a água suja.

Na melhor prédica que eu já li, a rabina Margaret Moers Wenig retrata Deus como uma velha mulher esperando seus filhos visitarem em Iom Kipur. Em um certo momento, Deus reclama dos cartões postais que seus filhos lhe mandam, com palavras impressas escritas por outros, nas quais eles apenas assinam seu nome — no final do texto, fica claro que estes cartões postais são as páginas do machzor, o livro de rezas de Rosh haShaná e Iom Kipur, palavras que repetimos como se fossem nossas, como se tivéssemos a intenção que elas transmitem, sem nem ao menos pararmos para refletir sobre o seu significado.

Moishe, o dono da hospedagem, teve a coragem radical de fazer cheshbon hanefesh, a contabilidade da alma, por ele e por Deus e, assim, dar significado ao ritual de Capará. Será que nós também somos capazes deste tipo de coragem radical e de transformar a experiência destes dias temíveis em algo verdadeiramente significativo e transformador?

Shaná Tová! Que seja um 5783 transformador e muito doce para todos nós!


[1] S. Y. Agnon, “A Conta”, Yamim Noraim, parte II, cap. 22
[2] Gen. 18:25
[3] Ex. 32:11-13
[4] Talmud Bavli Bava Metsia 59b
[5] Lawrence A. Hoffman, Talmud Bavli Bava Metsia 59b “Prayers of Awe, Intuitions of Wonder”, Who by Fire, Who by Water: Un’taneh Tokef. Lawrence A. Hoffman (ed.), Woodstock, Vt: Jewish Lights Pub, 2010. pp. 4-12.
[6] Fernando Reinach, “A mais antiga perna amputada”, Estado de São Paulo, 17 de setembro de 2022
[7] Sallie McFague, Metaphorical Theology: Models of God in Religious Language, p. 23/401 (e-book)

sexta-feira, 30 de julho de 2021

Dvar Torá: A coragem para desistir e recomeçar (CIP)


Tem um midrash do qual eu gosto muito que diz que, quando Deus começou a construir o universo, criou vários mundos e os destruiu antes de ficar satisfeito até que criou este mundo e declarou “este me agrada; aqueles não me agradam.” [1] Nem Deus acertou de cara quando chegou a hora de um projeto tão complexo quanto a criação do mundo e precisou de algumas experiências falhas antes de Se sentir satisfeito com o resultado.

Eu fiquei pensando muito nesse midrash esta semana quando Simone Biles, a menina prodígio do esporte olímpico revelou sua humanidade e desistiu de competir em Tóquio este ano [2]. Foi interessante escutar a reação de locutores e comentaristas à decisão da atleta e ao seu reconhecimento de que, apesar de estar em plena forma física, está debilitada em sua saúde mental e sem capacidade de competir. Faziam de tudo para explicar que ela se retirava de uma prova mas certamente continuaria no time olímpico; depois que sairia das provas em equipe mas continuaria a competir nas provas individuais e, finalmente, tiveram que reconhecer que Simone Biles, a prodígio, tinha decidido se retirar inteiramente dos Jogos Olímpicos. Pessoalmente, acho que aprendemos mais dos nossos líderes na forma como eles reagem às crises e desafios do que quando vencem; me inspiro mais quando vejo grandes figuras reconhecerem suas vulnerabilidades do que quando falam apenas das suas histórias de sucesso.

Este é um aspecto da tradição judaica que fomos perdendo com o tempo… nossos textos sagrados são cheios de falhas que nossos patriarcas e matriarcas tinham, como Avraham expulsou um de seus filhos a pedido de Sará mesmo com o risco que ele e a mãe morressem de sede no deserto; como Itschak favorecia Essav enquanto Rivcá favorecia o irmão, como Iaacov enganou o pai para receber a benção da primogenitura, como Rachel roubou os ídolos de seu pai. A lista continuaria e seríamos capazes de identificar, para cada antepassado bíblico, traços de sua trajetória pessoal que indicariam falhas de caráter — falhas como todos nós temos! Mas ao longo dos séculos, fomos nos sentindo menos confortáveis em apontar estas falhas nos nossos heróis e fomos construindo narrativas através das quais justificávamos suas falhas e as transformávamos em grandes virtudes. E, assim, fomos nos sentindo também menos confortáveis em reconhecer nossas próprias falhas, tanto individuais quanto coletivas.

Na parashá desta semana, Moshé continua seu discurso relembrando os quarenta anos do deserto, incluindo a entrega da Torá no Monte Sinai, o episódio do Bezerro de Ouro que o leva a quebrar as primeiras Tábuas, e a entrega das Segundas Tábuas na sequência.

Eu tendo a ver a Torá como o livro do nosso projeto conjunto, onde estão reunidos nossos valores e histórias sagradas, a base das nossas leis e o gosto judaico pela polêmica, o fundamento de um sonho com uma sociedade mais justa e mais igual, que proteja seus vulneráveis com especial atenção. A primeira versão deste projeto, determinado em Tábuas talhadas e inscritas inteiramente por Deus, falhou pois não havia como a humanidade dar conta de expectativas que não considerassem nossas vulnerabilidades, nossas inúmeras falhas. O ato de Moshé ao quebrar as Tábuas pode ser visto como aquele que reconheceu a falha em um processo destinado ao fracasso — e que, ao mesmo tempo, abriu a possibilidade da reconstrução do Pacto sobre alicerces mais sólidos.

Como o episódio de Simone Biles escancarou, expectativas irreais a levaram a tremendas frustrações — e no caso da geração do deserto, à idolatria do Bezerro de Ouro. A primeira reação Divina foi de frustração intensa e, não fosse pela intervenção de Moshé, nosso mundo teria entrado para a conta dos mundos que não deram certo e foram destruídos. Mas Deus parece ter percebido que a humanidade precisava de um sonho judaico no qual sua voz também fosse considerada — do ponto de vista mítico, representado nas Tábuas da Lei talhadas por Moshé mas contendo a escrita de Deus; do ponto de vista concreto, representado por uma tradição judaica interpretada e reinterpretada, filtrada por séculos de lentes rabínicas que buscam, através do melhor esforço de cada geração, estabelecer o diálogo entre o humano e o Divino.

Em cada um destes episódios, a coragem de reconhecer a falha, de ter a coragem de parar o curso do rio para determinar para onde queremos navegar foram fundamentais para conseguirmos ter sucesso na sequência. A atitude corajosa de Simone Biles nos inspira, não apenas por ter exposto a crise na saúde mental entre praticantes de esportes de alto rendimento e em tantas outras profissões de alto stress, mas também pela possibilidade de que a atleta, reconhecendo seus limites e seu imenso potencial, saia ainda mais forte deste episódio, trilhando seu verdadeiro caminho e não aquele que narradores e comentaristas gostariam que ela tivesse.

Estamos na ponte entre Tishá beAv e Rosh haShaná, entre o dia de luto pelo ódio infundado disseminado nas nossas sociedades e o dia do nosso julgamento pessoal e coletivo. Esta é uma época de avaliação, de introspecção, daquilo que a tradição chama de “contabilidade da alma”. Que neste processo tenhamos a coragem de reconhecer nossas vulnerabilidades, de desistir de processos que nos levam por caminhos perdidos e de nos reconstruirmos a partir de então.

Shabat Shalom!



[1] Bereshit Rabá 3:7 
[2] https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2021/07/28/simone-biles-sai-de-prova-por-saude-mental-atletas-devem-priorizarbemestar.htm

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Lembra de quem queríamos ser?

(originalmente publicado em http://www.institutobrasilisrael.org/2019/09/27/lembra-de-quem-queriamos-ser/)

No universo dos feriados religiosos, Rosh haShaná e Iom Kipur não estariam na lista das 10 datas mais populares. Com suas metáforas sobre o Dia do Julgamento e o nome (em hebraico) de “Dias Terríveis” (Iamim Norayim), estas datas precisam urgentemente da repaginada de marketing que Jon Stewart pediu para outros feriados judaicos. A verdade, no entanto, é que, por trás do nome pouco popular (abandonado na tradução para o português) e das metáforas complicadas, temos conceitos religiosos profundos que se sobrepõem de forma quase paradoxal: uma autocrítica intensa e um otimismo quase ilimitado.

Tanto a crítica quanto o otimismo têm origem no conceito de tshuvá, palavra em hebraico cuja tradução pode variar de “resposta”, a “retorno” a “arrependimento”. Eu gosto de pensar em todos estes sentidos entrelaçados, nos quais a tshuvá da qual falamos nesta época do ano é a resposta que damos ao nosso processo de cheshbon hanefesh, a “contabilidade da alma”, a reflexão sobre os caminhos que nossas vidas estão tomando. Ao reconhecermos nossas conquistas no ano que termina e identificarmos as áreas em que nos afastamos dos nossos objetivos, tentamos voltar à nossa rota; através do arrependimento, voltamos à melhor versão de nós mesmos. O otimismo é expresso na possibilidade permanente de engajarmos neste processo de tshuvá, mesmo quando o “retorno” implica caminhar uma  grande distância. Estes conceitos, eu acho, foram perfeitamente capturados por um antigo supervisor de estágio meu, o rabino Eric Gurvis, que certa vez distribuiu adesivos após sua prédica de Iom Kipur que diziam “Lembre-se de quem você queria ser”.

Para muitos de nós, lembrarmos de quem queríamos ser pode ser um esforço complexo. A necessidade de pagar a conta do aluguel todo mês ou de acordar cedo para levar os filhos à escola faz com que, muitas vezes, abramos mão de valores que nos eram caros mas que não nos ajudam nas demandas práticas da vida. Como mecanismo de defesa, ao nos distanciarmos dos ideais que tínhamos, apagamos os velhos sonhos. Em algum momento, passamos a acreditar que somos o que sempre tínhamos querido ser, apesar de todas as evidências do contrário.

Países ou movimentos nacionais, no entanto, costumam registrar de forma mais sistemática onde eles gostariam de chegar. Neste Rosh haShaná em que Israel tenta, mais uma vez, organizar um novo governo, vale a pena olharmos para os sonhos que o país um dia teve para si mesmo e pensar o que “Lembre-se de quem você queria ser” pode significar neste contexto. Neste processo, busquei a Declaração de Independência, como documento que expressava os sonhos dos fundadores do Estado. Percebe-se um otimismo claro no documento (alguns diriam “ingenuidade”), a esperança de um relacionamento de parceria com a ONU, de relações possíveis com os países vizinhos, de tratamento equânime entre todos os seus habitantes, de respeito aos seus idiomas, religiões e culturas. Cada um de nós terá suas próprias tshuvot na comparação entre este documento e a realidade do Estado de 71 anos, que precisa pagar o aluguel e acordar cedo para levar as crianças, mas que ainda contém dentro de si muitos dos valores registrados na Declaração de Independência. Quando consideramos “Quem Israel gostaria de ser?”, podemos identificar quais sonhos foram largados ao longo do caminho que, agora, gostaríamos de retomar e nos perguntar qual papel nós brasileiros podemos ter nesta retomada de valores e de sonhos?

Shaná Tová!

Que nossas vidas —  os sonhos, as ações, os valores, as restrições — façam diferença e mereçam ser registradas no Livro das Vidas.