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sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Dvar Torá: Chamando Deus para enfrentar nosso descaso (CIP)


Um midrash que eu adoro [1] compara o patriarca Avraham a um sujeito andando pela estrada quando ele vê um farol aceso, o fogo brilhando intensamente. “Como pode ser que este farol está em chamas e a torre não se consome?” Se deu conta, então, de que havia alguém que tomava conta do fogo no farol, garantindo que ele continuasse iluminando o caminho dos navegadores sem consumir a torre. Assim era Avraham, diz o midrash, que viu um mundo em movimento, pegando fogo, sem, no entanto, se consumir. Deve ter alguém que toma conta do fogo para garantir que ele não consuma o mundo. Foi assim que Avraham intuiu a presença de Deus no mundo.

Um professor querido, o rabino Or Rose, se baseia em uma obra chassídica famosa, o Kedushat Levi, escrito pelo rabino Levi Itzchak de Berditchev no final do século 18, para falar de como a presença de Deus se manifesta de formas distintas [2]. Algumas vezes, como na parashá desta semana, Deus escuta os gritos dos hebreus em servidão e interfere diretamente na história, enviando os dez golpes sobre Mitsrayim e abrindo o mar para garantir sua libertação; outras vezes Sua atuação se dá de forma bastante mais discreta e limitada. Na leitura do Kedushat Levi, Deus se revela na abertura do mar como um jovem sem barba, sem medo de demonstrar todo o Seu vigor, dizimando os inimigos em Seu caminho para atingir os objetivos que tinha estabelecido. Apenas sete semanas separam este evento do recebimento da Torá no Monte Sinai, mas o Kedushat Levi enxerga Deus se apresentando de forma muito diferente: como um senhor de longas barbas, contido, limitado, preocupado que todos os israelitas presentes àquele momento pudessem ter tranquilidade para escutar os ensinamentos sagrados da Torá.

Essa ideia de que Deus se manifesta de formas distintas, se preocupando com a maneira como espera que nós reajamos talvez nos ajude a processar o período que estamos vivendo e a decidir como agir. Nos últimos dias, temos escutado mensagens terríveis com relação ao desenvolvimento da pandemia no Brasil. As notícias que chegaram ontem de Manaus davam conta de que o oxigênio na cidade tinha se esgotado, transformado respiradores em câmaras de asfixia [3]. Hoje, a notícia é que 60 bebês prematuros tiveram que ser transferidos para outros estados por falta de capacidade de tratamento na rede hospitalar do Amazonas. Imagine ser o pai ou a mãe de um destes bebês, já angustiado pela situação, tendo agora que acompanhá-los em uma viagem que pode lhe custar a vida.

Ficamos à procura da intervenção divina nestas situações, mas não encontramos nada. Como dizia Castro Alves, 

Deus! ó Deus, onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes,
Embuçando nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde, desde então, corre o infinito…
Onde estás, Senhor Deus?…  [4]

A chama do farol está acesa mas parece que há ninguém cuidando para que o fogo não queime toda a torre.

Eu sempre me espanto como somos muitos mais racionais quando analisamos a vida dos outros do que quando tomamos decisões nas quais estamos diretamente envolvidos. No dia 04 de agosto de 2020, uma explosão gigantesca destruiu boa parte de Beirute, deixando mais de 200 mortos, 7,500 feridos e 300.000 pessoas sem seus lares. Logo nos primeiros dias da investigação, fomos informados de que a explosão tinha sido causada por uma grande quantidade de nitrato de amônio armazenada no porto da cidade por sete anos sem maiores cuidados. Quando vimos aquelas notícias, todos apontamos nossos dedos acusadores para as autoridade políticas do Líbano e para os responsáveis pela administração do porto. Como puderam agir de forma tão irresponsável, deixando tal quantidade de material explosivo sem cuidados?

Pois bem: passamos os últimos meses sendo alertados de que as festas de final de ano e as férias escolares desafiariam nossa convicção no isolamento social. E não deu outra, assim como os líderes do porto de Beirute, resolvemos jogar com a sorte e correr o risco para o qual nos alertavam. Seja pelos relatos familiares ou pelas listas que circularam pelas redes sociais, todos sabemos que a queda da nossa atenção nas últimas semanas têm levado a um aumento assustador nas infecções por Covid, não só no Amazonas. A triste verdade é que desencanamos e os resultados do nosso descaso estão aparecendo. 

A média móvel de vítimas diárias pela doença voltou a superar 1000 pessoas e já somos mais de 207 mil famílias enlutadas no Brasil [5]. Chegamos a níveis de ocupação hospitalar mais altos do que no primeiro semestre, e desta vez não temos toda a capacidade criada no começo da pandemia para expandir o atendimento. O Amazonas desativou 85% dos leitos de UTI que tinha criado em resposta à pandemia; o hospital de campanha do Pacaembu foi fechado ainda no primeiro semestre e os do Ibirapuera e do Anhembi no meio do segundo semestre. O governador do Amazonas tinha determinado o fechamento do comércio no final do ano para limitar a disseminação do vírus, mas foi forçado a voltar atrás por pressão de comerciantes e políticos [6]. O maior cargueiro da FAB, que poderia transportar tanques de oxigênio para Manaus ou vacina para todas as partes do país foi enviado no começo da semana para os Estados Unidos, onde ficará fazendo exercícios militares até o dia 5 de fevereiro. 

Em um artigo excelente do rabino Ruben no Estadão de segunda-feira, ele tratou da questão da vacina e da priorização à vida. Em uma metáfora bastante adequada, ele perguntou:

Se diante de um prédio em chamas a equipe de bombeiros começasse a debater preços, materiais, estratégias, hierarquias ou teologias, enquanto morre grande parte dos moradores, seguramente essa equipe seria processada e condenada. Pelo menos por omissão. Em algumas sociedades, por homicídio. Mais ainda se abandonasse o prédio para se dedicar a qualquer outro afazer, em vez de salvar vidas. [7]

A questão, no entanto, é que os moradores do prédio, vendo a construção  toda em chamas, continuam em suas festas particulares, sem se importar com os resultados terríveis do seu descaso.

No comecinho da nossa parashá, em uma passagem que leremos amanhã no serviço de Shacharit, Deus disse a Moshé:

Eu sou ה׳. Eu apareci a Avraham, a Itschac e a Iaacov como El Shadai, mas eu não Me revelei a eles pelo meu nome ה׳. (…) Eu escutei os gritos dos israelitas porque os Mitsrim os escravizam e eu me lembrei do nosso pacto. [8]

Eu escutei os gritos dos israelitas, שָׁמַעְתִּי אֶת־נַאֲקַת בְּנֵי יִשְׂרָאֵל, prestem atenção ao verbo שָׁמַעְתִּי, da  mesma raíz que Sh’má.

Em contraposição, o faraó é representado na parashá como alguém cujo coração está endurecido, que não tem a capacidade de notar o sofrimento alheio ou de escutar o grito que sua opressão está causando. Nesta passagem, é a empatia com a dor do outro que diferencia a conduta de Deus e a do faraó.

Como disse o Kedushat Levi, Deus aparece de distintas formas a cada geração, levando em consideração suas necessidades e potencial. Esse é o momento de permitir que nossas fagulhas divinas escutem os gritos vindo da nossa sociedade e passem a tomar conta da torre para que o fogo do farol não a consuma completamente.

שמע ישראל, Sh'má Israel: este é momento, esta é a hora.

Shabat Shalom,


quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

“Pragas” e “golpes” contemporâneos

Faz uns vinte anos que eu comecei a colecionar hagadot de Pêssach. Começou pequeno, eu comprei minha primeira hagadá porque ia fazer um curso sobre seu texto e me encantei com as possibilidades de leituras contemporâneas deste texto milenar. Com o passar dos anos, fui descobrindo abordagens cada vez mais inovadoras e criativas para dar atualidade de relevância ao seder de Pessach, um dos rituais mais observados nas famílias judaicas, mesmo entre aquelas que se apressam em se auto-definir como “não-religiosas”. Na minha coleção, tenho hagadot hippies, vegetarianas, que tratam da questão dos refugiados contemporâneos e da escravidão moderna, textos que abordam questões de violência doméstica e a reprodução de uma hagadá histórica, preparada por sobreviventes da Shoá.

Na parashá desta semana, Vaerá, Moshé e Aharon se encontram com o faraó do Egito e exigem a libertação dos hebreus. Frente à recusa, Deus castiga o Egito uma vez, e uma segunda, uma terceira. Até que, ao final do décimo castigo, o faraó se convença a libertar os hebreus. Em hebraico, estes castigos são chamados “macot”, “golpes” ou “agressões”, foram traduzidos para outros idiomas como “pragas”. Em muitos dos textos alternativos que eu tenho na minha coleção há uma busca pela recontextualização desses dez golpes que afligiram o Egito e que, ao final, convenceram o faraó a libertar os hebreus -- novas listas das “dez pragas contemporâneas” que, invariavelmente, incluem a poluição, o preconceito de gênero e a LGTB-fobia, nossos vícios às telas, o câncer e outras doenças modernas e o antissemitismo. Neste contexto, faria sentido adicionar a Covid-19 a esta lista e chamá-la de mais uma praga dos nossos tempos.

Eu argumento, no entanto, que estas listas de pragas contemporâneas contêm uma profunda falha conceitual: seus ítens representam, de fato, terríveis problemas da nossa época, para os quais devemos buscar solução com urgência. Os dez golpes que afligiram o Egito, no entanto, não tinham essa característica! A diferença entre “pragas” e “golpes” é significativa; apesar de todo o sofrimento que trouxeram ao Egito, os golpes sobre os quais lemos em nossa parashá tinham um objetivo distinto e muito claro: convencer o faraó a libertar os escravos hebreus. Eram, portanto, ferramentas de pressão e de negociação, não instrumentos de tortura cujo objetivo fosse o de causar dor. Ao final do décimo (e mais potente) golpe, o faraó finalmente concordou com a libertação dos hebreus -- desta forma, a sequência de golpes atingiram o seu objetivo. Qual objetivo podemos encontrar nas chamadas “pragas contemporâneas”? Que bem maior elas buscam atingir?

Os golpes sobre o Egito deveriam ser comparados a greves ou a manifestações de rua: o desconforto que elas causam não é o seu objetivo final, mas a forma de pressionar para ter suas reivindicações atendidas. A legislação brasileira busca regulamentar estas manifestações para que seus direitos legítimos de expressão e de luta não gerem mais danos do que ganhos -- uma equação que, muitas vezes, depende de que lado estamos em determinada questão. No exemplo da Torá, enquanto nós celebramos a libertação dos hebreus, eu imagino que o ponto de vista egípcio coloque muito mais ênfase no aspecto devastador dos dez golpes. Até onde podemos ir na defesa dos nossos pontos de vista?

Na semana passada, tivemos um exemplo extremo de teste destes limites quando o Congresso americano foi invadido por grupos que pretendiam impedir, pela força, a validação dos resultados das eleições para presidente. Como um verdadeiro golpe, usaram do medo e da força da multidão para pressionar e tentar impor seu ponto de vista. Também no Brasil, temos assistido no passado recente grupos ameaçarem invadir o Congresso ou o Supremo Tribunal Federal na tentativa de impor seus pontos de vista. Estas atitudes, ao fragilizarem nosso sistema democrático, não só se estabelecem como pragas, um mal que não traz benefício algum à sociedade, mas também como tentativas de golpe, em um sentido muito diferente da palavra.

Que possamos aprender os erros do nosso tempo, buscando solução para os problemas que afligem nossa sociedade, sem tentar impor nosso ponto de vista pelo uso do medo e da força.

Shabat Shalom!

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

As muitas faces de Deus e as portas que elas nos abrem

Um midrash famoso diz que toda pessoa é conhecida por três nomes: um pelo qual seus pais a chamam, um pelo qual as outras pessoas a chamam, e um que ela constrói para si mesma [1]. O midrash aponta para o fato de que apresentamos diferentes facetas de nós mesmos em momentos diversos das nossas vidas: somos carinhosos e cuidadosos ao pegar um bebê recém nascido nos braços, animados quando celebramos uma data importante, agressivos quando reclamamos de uma injustiça.

Logo no começo da parashá desta semana, o texto indica que esta dinâmica também se aplica à relação de Deus com as pessoas. Deus diz a Moshé: “Eu sou Adonai.  Apareci a Avraham, Itschak e Iaacov como El Shadai, mas não permiti que eles conhecessem meu nome Adonai.” [2] (no texto da Torá em hebraico, Deus usa seu nome impronunciável, que eu traduzi como “Adonai”)

Nesta fala, Deus reconhece que o tipo de relacionamento que teve com os três patriarcas, fundadores da fé e da família que daria origem ao povo judeu, não era o mesmo que teria com Moshé, líder de uma nação escravizada, seu libertador e representante político.

O mestre chassídico Levi Itschac de Berditschev, comparou Deus no momento de abrir o mar para a saída dos hebreus do Egito a um jovem sem barba mas disse que, ao revelar a Torá no Monte Sinai, Deus apareceu como um velho, com longas barbas que envolviam e vestiam o mundo. Para o rabino, a saída do Egito é um modelo de força Divina, enquanto a entrega da Torá é um exemplo de Deus se controlando e limitando Seu impacto. [3] Neste seu comentário, ele reconhece que mesmo na relação com Moshé e a geração que foi libertada do Egito, Deus se comportou de formas distintas, respondendo às demandas de cada momento.

Da mesma forma, cada um de nós desenvolve seu próprio relacionamento com o Divino, que evolui e se transforma ao longo das nossas vidas. Quantas vezes não pedimos que Deus agisse como “curador-chefe”, nos livrando de uma doença que nos afligia? Em outros momentos, podemos ter pedido para que Deus fosse mais enérgico, nos encorajando a sair de uma estado de passividade para que assumíssemos a condução de nossa própria vida ou que Deus nos acolhesse e permitisse que, metaforicamente, deitássemos em Seu colo, recebêssemos cafuné e chorássemos nossa tristeza.

Esta riqueza de imagens para a realidade Divina é parte fundamental da tradição judaica que, em sua pluralidade teológica, acolhe até mesmo os mais racionais e aqueles para quem a palavra “Deus” não remete ao inexplicável, ou àquilo que está além da nossa compreensão. Para alguns, imagens mais consolidadas de Deus, tão presentes em filmes e até em muitas partes da liturgia judaica (Deus como Rei, como Pai, como Pastor), ao invés de abrirem a conexão espiritual, a bloqueiam e impedem que se estabeleça um vínculo. Para estes casos, talvez ajude a pensar em Deus como “fonte da vida”, “alma de toda coisa viva” ou “fagulhas da alma”, como sugere a poetisa judia americana Marcia Falk [4].

Se Deus se revela com todas estas faces e com todos estes nomes, cabe a cada um de nós deixar a porta entreaberta para que ao menos um aspecto do Divino possa nos acolher e encher nossos dias de significado e de possibilidades. Que assim seja este nosso Shabat!


[1] Midrash Tanhuma, Parashat Veyekel, ítem a 
[2] Ex. 6:2-3
[3] Or Rose, “Divine Limitation and Human Responsibility”, in Righteous Indignation: a Jewish Call for Justice, pgs. 25-27.
[4] Marcia Falk, The Book of Blessings.