sexta-feira, 27 de março de 2020

O florescer que vem da crise: na história judaica e no presente

Nesta semana começamos a ler o livro de Vaicrá/Levítico, que foca boa parte de sua atenção nos intrincados detalhes dos sacrifícios oferecidos como forma de culto religioso na época bíblica. Meu professor, o rabino Nehemia Polen, compara esses sacrifícios a vários tipos de presentes que são dados ao longo da nossa vida: há o anel que oferecemos àquela pessoa super especial; há as flores que oferecemos com alguma rotina para dizer que o amor continua vivo; há uma caixa de bombons com um cartão pedindo desculpas quando reconhecemos que fizemos algo errado ou que magoamos alguém que nos é importante; há o presente de aniversário, um ritual que repetimos todo ano na mesma época. Assim eram os sacrifícios: a forma do povo manter vivo e relevante o relacionamento com Deus.

No ano 70 EC, o Templo de Jerusalém foi destruído nas Guerras Judaico-Romanas. Foi um trauma profundo para todo o povo judeu, um momento no qual desapareceu o local que centralizava de forma física e espiritual o relacionamento com o Divino – além das mortes resultantes da guerra, estimadas em centenas de milhares de pessoas. O Judaísmo, no entanto, sobreviveu e se desenvolveu. As ruínas do Templo e o trauma resultante permitiram que novas ideias florescessem. O Judaísmo que praticamos hoje é resultado desse processo criativo que aconteceu após o ano 70, quando a manutenção do relacionamento com Deus não podia mais se dar através das práticas descritas em Vaicrá. De acordo com um midrash, Rabi Iochanan ben Zakai considerava que não devíamos sentir pesar pelo que tínhamos perdido pois o Judaísmo que havia nascido nesse processo era muito superior àquele que não tínhamos mais (Avot de-rabbi Natan 4:5).

Vivemos atualmente nosso próprio trauma. Fechados em nossas casas, preocupados com o grau de destruição de vidas, da economia, das estruturas com as quais estávamos acostumados até o momento. Forçados pela necessidade, temos a oportunidade de reavaliar nossa condutas, a forma como tratamos o planeta e uns aos outros; a forma como egoísmo e altruísmo se negam ou se completam; as redes de proteção que oferecemos aos segmentos mais vulneráveis da nossa sociedade e como temos construído sistemas em que as vulnerabilidades se perpetuam sem solução.

No rastro dessa pandemia, temos a oportunidade de permitir que nossa criatividade flua e construa estruturas sociais mais sustentáveis, mais justas, mais empáticas e mais produtivas. Estamos aprendendo novas formas de usar a tecnologia, de compartilhar nossos talentos e de desenvolver novos; de estarmos mais envolvidos na educação de nossos filhos, com o dia a dia dos nossos pais. Com o uso de ferramentas de reunião virtuais, as distâncias passaram a ser irrelevantes: assistimos cursos dados no outro canto do globo e rezamos com gente que nunca imaginamos encontrar. Como vamos garantir que, terminada a quarentena, esse avanços não sejam perdidos e que não retrocedamos para as práticas que já deram errado no passado?

No meio de toda dor, angústia e medo, temos motivos para ser otimistas com a forma como sairemos da hibernação propiciada por essa crise. Ao mesmo tempo, precisamos cuidar para que seus efeitos nefastos sejam minimizados, tanto no que se refere à dimensão médica e à propagação do vírus quanto no que tange aos aspectos econômicos e sociais. Esta é a hora de colocar em prática os valores sobre os quais queremos construir nossa nova realidade.

Shabat Shalom!

Perguntando "e seu estiver errado?"

Originalmente publicado no facebook

Hoje, preparando o café da manhã com meu filho, ele me perguntou se íamos precisar abrir outro pacote de leite. Eu disse pra ele que achava que sim, mas que queria ver se o que estava aberto daria — ele respondeu: “então, quer dizer que vc vai abrir outro pacote?”. Eu disse: “eu acho que sim, mas não sei.” E continuei: “você sabe a diferença entre achar e saber.” A resposta dele me surpreendeu: “claro que eu sei, pai! Meus primos *acham* que o Palmeiras é um time bom, mas eu *sei* que o Corinthians é muito melhor!”

As pesquisas afirmam que todos achamos que nossas opiniões são baseadas na análise racional dos fatos e no bom senso, enquanto as opiniões dos outros são baseadas nas suas crenças e preconceitos. Nesse sentido, quando as opiniões sobre como responder à crise de saúde pública pela qual estamos passando estão mais divididas do que nunca, com cada lado apresentando seus “fatos” contra as “opiniões” dos outros, me parece importante dar um passo para trás e se perguntar “e se eu estiver errado?”

E se a política de “confinamento vertical” estiver errada? Nosso sistema de saúde daria conta do aumento da demanda por leitos, vagas em UTI e respiradores? Ou veríamos, como a Itália viu, um aumento vertiginoso dos casos - tanto entre os mais idosos quanto entre os jovens - de tal forma que o sistema de saúde entraria em colapso e teria que decidir quem atender e quem não; quem iria para a UTI e quem morreria sem atendimento médico? Se este for o caso, não daria pra dizer “ups! estávamos errados, vamos recomeçar o jogo e decidir de forma diferente da próxima vez…”

Há políticas fiscais a serem adotadas para que a economia não entre em colapso com a quarentena. O editorial do New York Times de hoje (link no primeiro comentário) detalha as estratégias de países europeus para lidar com a crise: a Dinamarca reembolsa os empregadores por até 90% do salários de seus funcionários; na Holanda, a mesma regra se aplica para empresas que tiveram queda de, pelo menos, 20% na receita; o Reino Unido pagará até 80% dos salários das empresas que precisarem de ajuda. O FMI aprovou que gastos com o Corona Vírus não sejam incluídos nos cálculos de déficit primário. Há estratégias que amenizam o impacto econômico desta crise sem aumentar o número de pessoas infectadas com o coronavírus.

Precisamos entender a urgência do momento, deixar a politicagem de lado e agir como seriedade. É chato ficar em casa? É. É difícil lidar com os filhos cujas aulas presenciais foram suspensas? É. Vamos ter que gastar parte das nossas economias, tanto do ponto de vista pessoal quanto nacional? Com certeza. Mas é isso que o momento exige…

E seu EU estiver errado?? Eu também me preocupo com os efeitos econômicos desta quarentena forçada - o que acontecerá com a nossa economia ao final desta crise, em particular com as pessoas mais vulneráveis da nossa sociedade? Como eu disse acima, há políticas fiscais que precisam ser adotadas ao mesmo tempo em que praticamos a quarentena -- não dá pra acreditar que podemos deixar tudo para o livre mercado resolver... Se eu estiver errado e uma estratégia de quarentena menos rigorosa tivesse resolvido o problema, então teremos passado mais tempo do que o necessário confinados em casa e aumentado a dívida pública. Não são resultados bons, de forma nenhuma. O estado brasileiro já está quebrado e não precisa de mais dívidas -- mas dadas as opções, eu fico com ser mais precavido e garantir que salvarmos todas as vidas que pudermos.

O Judaísmo ensina que “uvacharta bachayim” — “vocês devem escolher pela vida” (Deut. 30:19). Nesse momento, mais do que permitir que cultos religiosos aconteçam, mais do que pensar em como radicalizar este ou aquele público, mais do que culpar a imprensa por divulgar a opinião dos maiores especialistas em saúde pública deste país, é fundamental pensar em como manter a vida — não só durante a crise mas também depois dela. E sempre pensar “e se eu estiver errado?”.

Shabat Shalom!

sexta-feira, 20 de março de 2020

Dvar Torá: Percebendo a generosidade ao nosso redor (CIP)

Uma música israelense lançada há uns 15 anos, Shirat haSticker, fazia uma colagem de mensagens, principalmente políticas, de adesivos. O texto foi escrito pelo poeta David Grossman, transformado em rap pela banda haDag Nachash e trazia uma série de sobreposições de ideias opostas que levava a resultados inusitados. 

Fiquei pensando nessa música hoje, na esperança de compor uma prédica inteira com as dezenas, talvez centenas, de memes que eu recebi no WhatsApp, em grupos de amigos, de pais de colegas dos meus filhos na escola, e de outros conhecidos, todos tentando encontrar algum sentido e alguma graça nessa nossa nova rotina, com medo do vírus, do seu impacto na nossa saúde e nos nossos bolsos; sem saber o que fazer com nossos filhos com aulas presenciais suspensas, tendo que virar pai e professor, tudo ao mesmo tempo; assustados igualmente pela falta de informação e pelo excesso dela, especialmente assustados com a informação falsa, que cria pânico e que, por ironia, se espalha com ainda mais rapidez nesses nossos tempos de redes sociais.

No final, abandonei a ideia de uma prédica só com esses memes, mas guardei um que, sem qualquer motivo especial, me chamou especialmente a atenção. Dizia: “na verdade, ficar em casa não é tão ruim assim, mas me parece muito estranho um saco de arroz ter 8956 grãos e o outro, 8743.” Sonhamos com a possibilidade do ócio criativo, um tempo de descanso para nossas almas e corpos cansados. Sonhamos com a chance de colocar a leitura em dia, de arrumar a casa, de limpar a caixa de emails — mas ninguém queria que fosse nessas condições, preocupados com os idosos em nossas vidas e com aqueles nem tão idosos assim, com medo do que as próximas semanas nos reservam. E, nessa dúvida do que fazer com o tempo, acabamos fazendo coisas que o preenche sem lhe dar nenhum significado — como contar os grãos de arroz no saco.

Esta semana temos uma parashá dupla: Vayakhel-Pecudei. Logo no começo da parashá Vayakhel, Moshé congrega toda a comunidade — e a palavra Vayakhel quer dizer exatamente isso: “congregar”, da mesma raiz que “kehilá”, “congregação”. Então, Moshé fala do Shabat e na sequência, ele pede presentes para os rituais religiosos da época: para a construção do Mishkán, com todas as suas partes, para as roupas dos Kohanim, etc. E as pessoas responderam, com נדיבות לב, “generosidade do coração”, eles começaram a trazer ouro, broches, brincos, anéis e pingentes, fios coloridos azuis, púrpura e vermelhos, linho de alta qualidade, lã de cabrito, objetos de cobre e de prata, objetos de madeira sólida. E as pessoas, em sua generosidade, doavam seu tempo e sua expertise, tecendo, construindo e adaptando o que era doado. Em comunidade, eles se mobilizaram e, com generosidade, se entregaram à tarefa.

Hoje eu assisti um colega, o rabino Josh Whinston, cantar para seus filhos lindas músicas de Shabat com a câmera ligada na sala da sua casa, para que todos pudéssemos desfrutar deste momento. Com violões, pandeiros e outros instrumentos, a felicidade da família dele se transformou em felicidade de todos. Hoje, eu escutei de empresas de cosméticos que doarão sabonete líquido para comunidades menos favorecidas. Empresas de bebida no exterior e no Brasil, que converteram suas linhas industriais para produzir álcool gel. As empresas de TV a cabo estão disponibilizando seus pacotes de filmes de graça para as pessoas que ficarão em casa e muitas universidades no Brasil e no exterior estão oferecendo cursos online gratuitos. Em muitos prédios, vizinhos entraram em contato com os idosos seus vizinhos e se ofereceram para fazer as compras. Jornais liberaram o conteúdo de tudo o que se relacione ao Coronavírus. Artistas estão fazendo shows em suas casas e transmitindo pela internet. Produtoras de filmes disponibilizaram seus acervos. Professores das mais diversas competências passaram a dar aula online. Cada um, a partir da sua נדיבות לב, da generosidade do seu coração, resolveu fazer algo para o bem da comunidade, da קהילה.

Na parashá da semana passada, lemos sobre o bezerro de ouro, o pecado de achar que o Divino está na fisicalidade de um objeto. Estamos cada um em nossas casas, este salão de sinagoga vazio… a casca, o aspecto físico da nossa comunidade está vazio, mas continuamos com a capacidade de sermos uma comunidade, um grupo de pessoas que se importam uns com os outros, que se apóiam mutuamente, que são generosos uns com os outros, especialmente em momentos de dificuldade como este. A CIP continua ativa, com cursos, palestras e serviços religiosos transmitidos online; os rabinos e o resto do corpo profissional continuam prontos a atender vocês, agora pelo telefone ou por vídeo-conferência.

No começo da instrução para a construção do Mishkán, que lemos há algumas semanas em parashat Trumá, Deus diz ao povo que Lhe façam um Santuário “para que Eu possa morar entre eles”. No final de parashat Pecudei, a segunda parte da leitura deste Shabat, quando todos tinham se doado ao máximo pela constituição da comunidade, a presença Divina habitou entre eles. O Sfat Emet, um comentário chassídico polonês do final do século 19, entende que Deus habita literalmente dentro de cada um dos israelitas. 

É o ato de generosidade que torna esta intimidade possível, que faz com que Deus se torne parte de cada um de nós. É a verdadeira generosidade dos nossos corações, nem sempre com dinheiro, mais frequentemente com atitude, que transforma o distante e cósmico em um Deus próximo, intimo, parceiro. Era verdade nos tempos do deserto e continua sendo verdade em nossas cidades semi-desertas em tempos de Coronavírus.

Que nesse shabat, o distanciamento que esta pandemia nos impõe seja percebido como a prova de amor que realmente é; que continuemos nos importando, nos ajudando, nos acolhendo, apesar da distância física; que cada um possa oferecer o que tem de melhor para que saiamos mais fortes e mais unidos deste contexto surreal em que hoje nos encontramos.

Shabat Shalom!

quinta-feira, 19 de março de 2020

De Purim a Pessach: Proteção e Vingança em Diálogo no Calendário Judaico (ou os riscos do 'perseguido' se transformar em 'perseguidor')


Todo ano, no começo de fevereiro, o mesmo cenário: em esquinas-chave de São Paulo, encontramos grupos de jovens, suas caras pintadas com os nomes das faculdades em que foram aprovados, pedindo dinheiro aos motoristas para poderem ir beber cerveja com os novos colegas. Acompanhando a alguma distância, estão os recém-veteranos, alunos do segundo ano, comemorando o fato de já não serem mais eles quem precisa passar pelo vexame. Pedir dinheiro nas esquinas é, provavelmente, a prática mais visível e inocente do trote pelo qual passam os calouros que, em alguns casos, envolvem episódios sérios de violência física e moral. A cada tantos anos, voltam à imprensa casos menos visíveis e menos inocentes, que nunca deixam de causar polêmica.

Penso muito na transição de calouro para veterano e sobre como, nela, o oprimido de um ano passa facilmente para a condição de opressor, no ano seguinte; o pensamento corrente parece ser: “se alguém sofreu o trote no seu ano, por que abriria mão de dar o trote no ano seguinte? ” Todas as práticas que incomodavam e humilhavam, gerando alguma revolta, passam a ser justificadas, usando os mesmos argumentos que, no ano anterior, eram prontamente rebatidos. 

Escrevo este artigo próximo de Purim, a festa judaica que comemora a salvação dos judeus da Pérsia. Segundo a história do Livro de Ester, o pérfido primeiro-ministro Haman tinha planejado um genocídio contra os judeus, que só foram salvos porque Ester, a rainha que tinha sido escolhida em um concurso de beleza, era secretamente judia e intercedeu junto ao rei para evitar a tragédia. Há um lado da história desta festa, no entanto, também descrito no Livro de Ester, para o qual se dá, tradicionalmente muito menos atenção: no final da história, com um judeu tendo substituído Haman na posição de primeiro-ministro e com a autorização do rei de que utilizassem armas para se defender, os judeus da Pérsia cometeram um massacre e mataram mais de 75.000 pessoas. 

Oprimidos sob risco de genocídio, esses judeus conseguiram chegaram próximos do poder e, em sua sede de vingança, se tornaram aquilo que eles mesmos mais rejeitavam. No shabat que antecede Purim, chamado Shabat Zachor, uma leitura especial da Torá nos instrui a não nos esquecermos de apagar a memória de Amalek que, na tradição judaica, é associado à violência contra aqueles em situação de vulnerabilidade e tem, entre seus descendentes, Haman, o vilão da história de Purim. Uma leitura possível deste mandamento é que devemos erradicar fisicamente Amalek e seus descendentes; outra possibilidade é que a Torá está nos alertando para que não nos transformemos nós mesmos em Amalek, nos orientando para olharmos a história de Purim e vermos como os judeus se transformaram em Haman. 

Infelizmente, não é só no trote universitário ou na história de Purim que encontramos a transformação de oprimido em opressor. Não são raras as vezes em que escutamos histórias de como “meus avós não tinham nada e foram capazes de se estabelecer e prosperar. Quem não consegue progredir é por preguiça e falta de esforço. ” Em vez de gerar solidariedade e empatia, a experiência de ter vivido sob condições extremamente difíceis e conseguido escapar delas pode dar origem a um sentimento de superioridade que impede a conexão com quem vive às margens da sociedade, hoje.

A perspectiva oposta a esta tem centralidade na tradição judaica, por exemplo, em Pessach, a festa que celebramos depois de Purim e na qual nos lembramos da libertação dos hebreus do Egito, onde tinham sido mantidos como escravos. Nossa experiência vivendo sob opressão no Egito determina que devemos ser especialmente cuidadosos para proteger quem vive em condições similares hoje em dia. Segundo o Talmud, a obrigação de “proteger o estrangeiro porque fomos estrangeiros na terra do Egito” aparece pelos menos 36 vezes no texto da Torá. De acordo com muitos autores “guer” (a palavra bíblica para “estrangeiro”) é uma metáfora para a condição de opressão sob a qual os estrangeiros viviam. Portanto, a obrigação deve ser entendida como nos instruindo a “proteger o oprimido porque fomos oprimidos na terra do Egito”.

A centralidade de obrigação judaica para com os menos favorecidos na nossa sociedade é inquestionável, tanto pelo número de vezes em que é repetida no texto da Torá como pelo diálogo que estabelece com muitos outros textos judaicos, que caracterizam e implementam esta preocupação. Trata-se de mandamentos sobre a forma como devemos pagar salários em dia ou deixar áreas dos nossos campos para que quem precisa possa entrar e se alimentar, entre muitos outros. Pode-se argumentar que foi ao redor da ideia de proteger o vulnerável que toda a tradição judaica foi construída: nossa experiência como escravos determinou de tal forma a identidade judaica que a preocupação com justiça social passou a fazer parte de forma indissociável do judaísmo. Ao mesmo tempo, no entanto, precisamos reconhecer que uma leitura vitimizacionista e revanchista para Purim também faz parte da tradição judaica — ignorá-la seria um erro conceitual e, ainda pior, um erro estratégico para a promoção de um judaísmo que acredita na defesa permanente dos direitos humanos como um dos seus eixos fundamentais.

sexta-feira, 6 de março de 2020

Sendo responsáveis pelo que lembramos e pelo que esquecemos

Três textos que lemos neste shabat nos convidam a pensar sobre memória, a concepção que temos de nós mesmos e sobre responsabilidade. Este é o shabat que precede Purim e que recebe um nome especial: Shabat Zachor, ou o “Shabat em que você deve se lembrar”. O nome vem do maftir, uma passagem que lemos ao final da leitura da Torá de sábado, que começa com Zachor (“lembre-se”) e termina com “não esqueça” e que faz referência à atitude de Amalek, que atacou os hebreus após a saída do Egito, quando eles estavam vulneráveis, cansados e famintos. Por essa ação, Amalek tornou-se na tradição judaica referência ao mal absoluto, à agressão injustificada e desmedida, a ataques sem nenhuma consideração pela moral ou pela ética. A passagem termina dizendo: ”você deve apagar a memória de Amalek de debaixo do céu. Não esqueça!”

O que escolhemos lembrar e do que escolhemos nos esquecer? Em particular, ao pensarmos na história judaica: nos lembramos dos momentos em que, vulneráveis, fomos massacrados ou daqueles em que, detendo o poder, tivemos a obrigação de apresentarmos um comportamento exemplar, incluindo a proteção aos segmentos mais fragilizados das nossas sociedades?

Esse debate está presente também em muitos comentários para as primeiras linhas da parashá desta semana: “instrua os israelitas a trazerem óleo claro de azeitonas batidas para iluminação, para acender uma ner tamid (chama eterna)”. Muitos foram os comentaristas que interpretaram que o “óleo claro de azeitonas batidas” é uma referência ao sofrimento judaico ao redor dos séculos e os múltiplos episódios nos quais fomos massacrados. Outros comentaristas, no entanto, focaram suas interpretações no estabelecimento de uma ner tamid (chama eterna) através das nossas ações, nos orientando a ter um comportamento que ajude o mundo a se encher de luz, especialmente em seus momentos mais sombrios.

A história do encontro com Amalek tem continuação na haftará (leitura dos livros dos Profetas) desta semana, que trata de um dos episódios mais difíceis de todo o Tanach. Nele, o profeta Shmuel instrui o rei Shaul a destruir todo o povo de Amalek: homens, crianças, bebês e animais sem distinção. Essa passagem sempre me deixou profundamente incomodado, pois me parece que o profeta está instruindo o rei a agir de acordo com as piores práticas do nosso oponente: a matar de forma indiscriminada, inclusive aqueles que são extremamente vulneráveis e indefesos.

O rei Shaul não cumpre a instrução de forma integral, poupando a vida do rei de Amalek e dos melhores animais para serem oferecidos como sacrifício a Deus. De acordo com Shmuel, por não ter seguido Suas instruções, Deus o rejeita como rei. Pensando nos exemplos de Avraham e de Moshé, que tiveram a ousadia de debater com Deus quando as ordens que recebiam lhe pareciam afrontar a própria ética que Deus transmitia, eu prefiro imaginar que a rejeição de Shaul como rei não foi causada por ele ter poupado a vida do rei de Amalek ou de alguns animais, mas por ele ter aceitado sem questionamento a instrução de destruir todo um povo.

Em múltiplas passagens, a tradição judaica nos instrui que, ao conquistarmos a terra de Israel, devemos ter especial cuidado para proteger a viúva, o órfão e o estrangeiro, pois fomos estrangeiros na terra do Egito. Assim, somos alertados a não esquecermos nosso sofrimento quando nossa vida melhorar; de alguma forma, é uma instrução para não nos transformamos, nós mesmos, em Amalek.

Vivendo na tensão entre o lembrar e o esquecer, entre ser vulnerável e abusar do poder, que as leituras deste shabat especial nos ajudem a reconhecer nossas fragilidades, ao mesmo tempo em que assumimos a responsabilidade de ajudar a estabelecer no mundo fontes permanentes de luz e proteção a quem mais precisa.

Shabat Shalom!