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quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Atenção: Comunidade em Construção

Confesso que nunca gostei muito de praticar esportes, tampouco de assisti-los pela TV. Hoje em dia, quando meu filho passa horas assistindo outras pessoas jogando seus videogames favoritos, eu lhe pergunto se jogar não é mais divertido que assistir, parece que ele não entende a pergunta, como se não existisse, de fato, diferença para ele. o único período em que eu acompanhei esportes pela TV foi na década de 80, quando o Brasil tinha grandes pilotos de corrida. Naquela época, seguíamos duas competições: a Fórmula-1, que era transmitida pela Globo, e a Fórmula Indy, que passava na Bandeirantes. Esta última mesclava circuitos tradicionais, com curvas para os dois lados com circuitos ovais, em geral com curvas apenas para a esquerda, como a famosa 500 Milhas de Indianápolis. Nos dois tipos de circuito, muitas aconteciam a cada volta mas, a menos que um carro se acidentasse ou desistisse no meio, todos retornavam ao mesmo ponto e iniciavam uma nova volta.

Fiquei pensando nas repetições, volta após volta, das corridas de carro ao considerar o que temos vivido nos últimos anos com a pandemia e como a parashá desta semana tem se relacionado com os ciclos (ou as voltas) que temos vivido. Foi nesta parashá, Vaiakhel, que tivemos em 2020 o primeiro Cabalat Shabat a portas fechadas, com medo do que estava por vir. Quando lemos esta parashá em março de 2021, estávamos no começo da segunda onda, assustados (com razão) com a piora do quadro de saúde pública. Neste ano, depois de termos atravessado mais uma piora na saúde pública, estamos com a impressão de que deixamos para trás o pior da crise trazida pela variante Ômicron, começamos a nos preparar para o retorno a atividades presenciais na CIP, tanto para a equipe profissional quanto para nossa comunidade.

A palavra “Vaiakhel”, o nome da parashá, vem da mesma raíz que “kehilá”, “comunidade” ou “congregação”, e se refere ao momento em que Moshé “congrega” todo o povo para transmitir as instruções de Deus com relação à construção do Mishcán. Ao longo dos últimos dois anos, fomos desafiados a repensar o que significa estar em comunidade. Não são raras as situações em que, ao encontrar alguém pela primeira vez, me dizem “eu já te conheço, mas você ainda não sabe quem eu sou.” Frente à minha cara de espanto (pelo menos nas primeiras vezes que me disseram isso), a pessoa continua: “acompanho os serviços da CIP online, então já acostumei a rezar com você na sala da minha casa, só você que não consegue ver que estamos lá, juntos.” Quem já participou destes serviços religiosos online sabe que há uma comunidade que “se encontra” no mundo virtual, manda saudações de Shabat Shalom, reage uns aos comentários dos outros. Será que é esse o novo formato de comunidade com o qual precisamos nos acostumar, em que não nos vemos mas reconhecemos que estamos participando da mesma experiência?

Uma outra vivência online é o minián diário da CIP. Nos encontramos por Zoom, o que permite que sejamos vistos e também vejamos os participantes. Pessoas de todo o país, que antes não tinham a oportunidade de rezar juntas, passaram a se encontrar diariamente. Ao longo dos últimos dois anos, tivemos vários casos de famílias enlutadas que, graças à tecnologia, puderam congregar membros que viviam em continentes distintos. Antes do serviço e ao seu final, conversam um pouco, conhecem mais da vida de cada um. Será esta a nova forma de interatividade das nossas comunidades, em que nos reunimos virtualmente para um propósito, cada no seu canto?

Nossas aulas passaram a ser online também. Aos alunos de São Paulo, passamos a reunir alunos de Brasília, de Manaus, de Recife, até de Portugal. Em pequenas salas virtuais, estes alunos discutiram textos judaicos antigos e o usaram de ponto de partida para falar de suas vidas. Se conheceram e se estabeleceram como grupo (contando também, é claro com o apoio de um grupo de whatsapp) e passaram a se encontrar também fora das telas (quem está na mesma cidade…). Será que na nossa nova comunidade a tecnologia servirá de catalisador para encontros presenciais?

O sentido, o formato, o significado das nossas comunidades nunca foi tão fluido. Ao planejarmos a volta ao mundo presencial, consideramos de que aspectos de vida comunitária sentimos falta e que gostaríamos de recuperar e o que ganhamos com a incorporação de novas estratégias de construção comunitária, que gostaríamos de manter. Na elaboração destes planos, a pergunta básica que fica é qual será a cara da comunidade no século XXI pós-Covid. Há quem fale em metaversos e outras modalidades de interação virtual para argumentar que precisamos nos acostumar a relacionamentos que se estabelecem principalmente através das telas, sem a necessidade de estarmos todos no mesmo espaço. Particularmente, apesar de reconhecer que a tecnologia veio para ficar e não faz sentido pensar em descartá-la, sinto falta do contato interpessoal, da conversa ao redor da mesa de kidush ou do cafezinho, do abraço e do aperto de mão na chegada e na despedida.

Nesta parashá, Moshé transmite ao povo de Israel, reunido em comunidade, o pedido de doações para a construção do Mishcán, o projeto comunitário da época. A resposta de todo o povo é tão intensa que os artesãos lhe pedem para orientar o povo a parar de trazer novos donativos. Qualquer que seja o formato da nova comunidade que estamos construindo, que possamos sempre estar dispostos a entregar um pouco de nós mesmos para este projeto coletivo e que a CIP continue sendo um ponto de encontro de pessoas, de ideias e de valores que mantém o judaísmo relevante para muito mais voltas no circuito da vida.

Shabat Shalom.


quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Guardiões de toda vida

Cada profissão tem seu conjunto de expressões técnicas que ajudam a definir quem detém aquele conhecimento profissional e quem não. Algumas vezes, por trás de expressões complicadas estão conceitos igualmente complexos — por não ser médico, eu nunca consegui entender direito o que é acalasia ou disdiadococinesia; outras vezes, no entanto, estas expressões técnicas são muito mais complicadas do que os conceitos que elas representam. Tomemos um exemplo da economia: por trás da nebulosa expressão “utilidade marginal decrescente” se esconde o conhecido fenômeno que, quanto mais temos de uma coisa, menos prazer tiramos de ganhar uma nova unidade da mesma coisa. É um conceito sabido que se aplica a vários aspectos das nossas vidas: imagine a alegria de ganhar o novo biquíni que você tanto quer; agora, imagine ganhar o 21º biquini do mesmo modelo! Imagine como, depois de ficar tanto tempo sem poder viajar, anseia por conhecer lugares longínquos e misteriosos; agora, imagine a vontade de dormir na tua própria cama depois de ficar uma longa temporada fora de casa.

O mesmo conceito da “utilidade marginal decrescente” pode ser aplicado ao inverso, significando que nos acostumamos também com coisas ruins e passamos a não nos importarmos tanto quando elas acontecem. Você se lembra do que aconteceu quando chegamos à terrível marca de dez mil mortos por Covid no Brasil? Era postagem no facebook, comentário no Jornal Nacional e inúmeras colunas de articulistas dos jornais. Agora tente se lembrar do que aconteceu quando o número de mortos passou de 580 mil para 590 mil… não aconteceu nada. Nem uma manchete, nem um comentário… Nos acostumamos com o fato de centenas de milhares de pessoas morrerem por esta terrível doença e não nos chocamos mais quando os números confirmam a realidade com a qual já estamos acostumados.

O mesmo vale para outros tipos de mortes. Em 2020, foram assassinadas no Brasil 50.033 pessoas [1], praticamente um a cada 10 minutos. Toda hora, todo dia. Com taxas assim, não é de se espantar que tenhamos perdido a sensibilidade para cada novo assassinato que acontece.

Na parashá desta semana, Bereshit, temos o primeiro assassinato da história [2]. Caim, enciumado pela atenção que Deus havia dado a seu irmão, Abel, o assassina em um ataque de raiva. Quando Deus lhe pergunta: “Onde está Abel, teu irmão”, sua resposta deve nos servir de alerta contra insensibilidade  gerada pela sequência de notícias ruins: “Eu não sei. [Por acaso] eu sou o guardião do meu irmão?!”

Em que situações nos consideramos guardiões dos nossos irmãos? Quando sentimos que somos todos co-responsáveis uns pelos outros? A construção de uma sociedade inclusiva e justa parece depender de sentimentos assim, que garantam que o bem estar de todos sejam uma preocupação coletiva. No entanto, nas sociedades urbanas e despersonalizadas em que vivemos, os laços sociais que garantiriam este tipo de conduta estão tão fragilizados que perdemos a capacidade de nos entristecermos a cada dez minutos por mais um assassinato. 

E, assim, sem que ninguém se importe, viramos estatística, viramos números, e nos adequamos à regra do “rendimento marginal decrescente”.

Que neste novo ciclo de leitura da Torá possamos quebrar este ciclo vicioso, que possamos nos importar sem ter nossos corações esfacelados pela dor, que nos consideremos guardiões uns dos outros e nos comprometamos a criar a sociedade justa com a qual sonhamos.

Shabat Shalom,


[1] https://bit.ly/2WtNj83

[2] Gen. 4:1-16



quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Dvar Torá: Um conversa entre Unetanê Tokef e Col Nidrei. Iom Kipur 5782 (CIP)


Era uma vez um reino no qual viviam dois príncipes que nunca se encontravam. Eram primos entre si e muito queridos pelos habitantes do reino. Na verdade, havia gente de fora do reino que viajava por horas apenas para poder estar na companhia de um deles… 

E, apesar das suas inúmeras aparições públicas, sempre cheias de gente ao redor, ninguém jamais tinha visto os dois príncipes juntos — e muitos se perguntavam como seria o encontro entre os dois príncipes, tão carismáticos e tão diferentes.

Um deles, aquele que todos consideravam o mais novo, alternava entre uma abordagem doce e paterna com a postura rígida de um membro da família real. Quando brincava de faz-de-conta, gostava de assumir todos os papéis ao mesmo tempo: era o rei, o juiz, a testemunha, o perito, e também a vítima e o algoz. Na mistura destes papeis, encorajava a todos a serem muito cuidadosos em suas condutas e a procurarem reparar qualquer mal que tivessem causado.

O outro príncipe era bastante mais formal. Quando falava, usava palavras estranhas, que as pessoas não costumavam usar no dia-a-dia, quase como se tivessem saído das páginas de um contrato ou de um procedimento jurídico. Quando via outra criança chorando, com medo das consequências de algo que tinha dito, lhe dizia que não fazia mal, que as palavras poderiam ser anuladas e até lhes ensinava um truque para que as palavras fossem anuladas antes mesmo de serem ditas. Algumas crianças saíam destes encontros recompostas, prontas para retomarem a brincadeira sem maior malícia; outras, no entanto, acabavam aproveitando o truque para dizerem o que bem quisessem, sem se importar se magoassem alguém.

Muitas eram as pessoas do reino que se perguntavam como seria um encontro entre os dois príncipes: o que um diria ao outro. Será que se abraçariam ou se tratariam com frieza?

Quem sabe você vive ou conhece uma situação similar à dos dois príncipes?! Nas páginas dos nossos machzorim, parece que algumas rezas também poderiam ganhar bastante do encontro e do diálogo com outras que vivem a poucas páginas de distância. Para quem tem o Machzor Chatimá Tová da CIP nas mãos, eu vou pedir para vocês abri-lo na página 4, que tem o final do Col Nidrei e deixar um dedinho aí e colocar um outro dedo na página 198, no comecinho do Unetanê Tokef. Para quem tem o Machzor Completo, que a Hebraica usa, coloquem o primeiro dedo na página 244 da primeira seção, dedicada a Rosh haShaná e o segundo dedo na página 21 da segunda seção, dedicada a Iom Kipur.

Se essas duas rezas se encontrassem, o que será que diriam uma à outra?

Podiam começar contando suas histórias e seus mitos de origem. Um mito, que eu escutei pela primeira vez na escola judaica onde estudei, diz que o Unetanê Tokef foi escrito no século 11 pelo rabino Amnon de Mainz, que foi obrigado a se converter ao Cristianismo pelo arcebispo da sua cidade. Em uma tentativa de atrasar o processo, o rabino teria pedido 3 dias para pensar, mas imediatamente se arrependeu de ter dado a impressão de que consideraria a proposta, e pediu que sua língua fosse cortada. Ao invés disso, o arcebispo teria ordenado suas pernas e braços amputados. Alguns dias depois, em Rosh haShaná, o rabino teria pedido para ser levado à sinagoga. Lá, agonizando, o rabino teria proclamado as duras palavras do Unetanê Tokef em seus últimos suspiros. Apesar da popularidade desta história, fragmentos descobertos na guenizá do Cairo, o imenso acervo de documentos históricos judaicos encontrados no sótão de uma sinagoga no Egito, indicam que a composição do Unetanê Tokef é bem anterior, sendo conhecida, pelo menos, desde o século 8. 

Frente a uma história de origem tão rica para o Unetanê Tokef, o Col Nidrei também poderia contar a sua origem [1]. Na época dos gueonim, no meio do século 9, o sidur de Amram Gaon menciona que o antecessor do seu antecessor, um século antes, tinha ouvido sobre o Kol Nidrei — uma reza que cancelava votos e promessas e sobre a qual nenhum destes sábios tinha nada simpático a dizer. Apesar das críticas quase universais, o mundo judaico foi se apegando ao Col Nidrei, até que quatro séculos depois, no século 13, já era uma reza estabelecida como prática em Iom Kipur. Foi nesta época que a linguagem, que até então cancelava votos e promessas feitos no ano passado, foi alterada para cancelar votos e promessas que seriam feitas no ano seguinte. Apesar da sua popularidade, com o surgimento do Iluminismo Judaico na Europa Central e o desenvolvimento de leituras críticas da tradição judaica, o Col Nidrei voltou a ser o alvo de ataques no século 19 por colocar em risco a credibilidade judaica em um contexto que tentava garantir a igualdade civil perante a lei. E, mesmo assim, o Col Nidrei ficou — um sobrevivente litúrgico frente a tantas críticas.

Unetanê Tokef, então contaria, um pouco do que diz. Engrossaria a voz, endireitaria a coluna e declamaria:

Em Rosh Hashaná está escrito, e no jejum de Yom Kipur é selado!

Quantos vão passar, e quantos vão nascer; quem vai viver e quem vai morrer; que viverá uma vida longa e quem chegará a um fim prematuro; quem morrerá pelo fogo e quem pela água; quem pela espada e quem por animais; quem pela fome e quem pela sede; que pelo terremoto e quem pela peste; quem será estrangulado e quem será apedrejado; quem estará em paz e quem será perturbado; quem estará sereno e quem estará perturbado; quem estará tranquilo e quem estará atormentado; quem empobrecerá e quem ficará rico; quem cairá, quem se levantará.  

Mas tshuvá, tfilá e tzedaká têm o poder de transformar a dureza do decreto. 

Assim como o shofar, o Unetanê Tokef é um alarme que nos convida a contemplar como alteraríamos nossa conduta no mundo se descobríssemos que este ano é o último, que não vamos receber uma segunda chance.

De algum jeito, passamos este último ano inteiro nos fazendo esta pergunta: “e se não passarmos deste ano?”

  • porque estávamos preocupados com nossa própria saúde e com a das pessoas que nos são mais importantes e queridas no mundo;
  • porque percebemos que haviam sinais de uma iminente crise sanitária global e continuamos vivendo sem tomarmos as precauções ou nos preparamos para lidarmos com suas consequências;
  • porque vendo o impacto desigual que a pandemia teve sobre os segmentos mais oprimidos das nossas sociedades, nos demos conta de que precisamos urgentemente fazer Ticún Olam e transformar a estrutura de um mundo que constantemente produz desigualdade e injustiça extremas;
  • porque ao assistirmos passivamente a Amazônia e o Pantanal queimarem e fenômenos climáticos radicais acontecerem ao redor do globo, nos perguntamos que mundo estamos deixando para nossos filhos e netos;
  • porque vimos democracias serem questionadas em várias partes do planeta, incluindo no nosso cantinho, vislumbramos o retorno a um passado que imaginávamos enterrado.

Não faltaram erros que nos levaram a este 5781 complicado. Erros são importantes, desde que os reconheçamos, enderecemos e busquemos mudar nossas condutas. Este processo, que a tradição chama de tshuvá, o retorno à melhor versão de nós mesmos, não é possível sem o reconhecimento de erros e sem transformações profundas — sejam elas pessoais ou sociais. Somos todos criaturas do hábito e evitamos mudar a todo custo. Unetanê Tokef e o ano de 5781 escancararam na nossa frente que não é mais possível adiar. Expostos a esta realidade, muitos de nós decidimos fazer de 5782 uma experiência radicalmente diferente do ano passado.

Col Nidrei escutava tudo isso pensativo, cabisbaixo. Quando, depois de pensar sobre tudo o que Unetanê Tokef dizia, resolveu se manifestar, ele leu um pedaço do seu texto:

 “todos os votos, proibições, juramentos (…) deste Iom Kipur até o próximo Iom Kipur (…) sejam todos cancelados, de todos nos arrependemos, sejam abandonados, interrompidos, anulados e invalidados, não ocorridos e inexistentes. Que os votos não sejam votos, que os juramentos não sejam válidos.”

Houve um grande silêncio. Se as decisões que tomamos frente ao desafio da nossa própria mortalidade e a do nosso planeta foram canceladas, isso quer dizer que permanecemos livres para continuar nos caminhos que nos trouxeram até esta crise? Será que Col Nidrei também anula nossas resoluções de transformação profunda?

Por um tempo, eu perdi meu próprio caminho nesta conversa entre Unetanê Tokef e Col Nidrei. Um artigo da rabina Ruth Durchslag me ajudou a reencontrá-lo, justamente no silêncio. Ela mostra como Col Nidrei opera sob a premissa de que as palavras das nossas promessas e votos não têm importância e nos traz uma série de outros exemplos de como as palavras são valorizadas na tradição judaica. Afinal de contas, foi através das palavras que Deus criou o mundo! As duas perspectivas têm eco na tradição!

Nas palavras da rabina Durchslag:

Se mesmo as palavras do dia-a-dia são importantes, então nossas palavras de promessa e confissão deveriam ser ainda mais importantes. Como, então, podemos declarar nossas promessas nulas e sem efeito em Iom Kipur? Como pode ser que façamos algo tão essencialmente "não-judaico" em um dos dias mais sagrados do ano?

Talvez a resposta esteja no que acontece quando retiramos nossas palavras. O objetivo de retirar as palavras pode não ser para anular seu impacto, mas para revelar o silêncio que permanece quando elas se vão. Vladimir Horowitz, o grande pianista, certa vez explicou seu gênio musical dizendo: “Eu não toco as notas melhor do que muitos pianistas, mas as pausas entre as notas - ah! É aí que reside a grande arte."

Parece que Deus também entendeu a importância das pausas. Se Deus criou o mundo com palavras, o Shabat deve ter sido o momento para Deus permanecer em silêncio. No Shabat, Deus simplesmente parou de falar para refletir sobre o que o Divino havia dito e, portanto, feito. Deus entendeu o poder de refletir sobre nossas vidas de um lugar de silêncio. Os judeus conhecem o poder criativo das palavras, mas também entendemos que o silêncio é um espaço sagrado. [2]

E assim, no silêncio, os dois primos se encontraram — as palavras canceladas, mas a descoberta verdadeira da mesma forma.

Que do encontro entre a rigidez do Unetanê Tokef e a leniência do Col Nidrei, encontremos compreensão no nosso próprio silêncio. Que as palavras ditas e não ditas nos nossos processos pessoais e coletivos de tshuvá gerem sentimentos, emoções, intuições que nos permitam ir além do simples significado das palavras e nos sustentem no processo. Que aquilo que não foi dito seja capaz de nos encorajar a buscar a transformação com afinco ao mesmo tempo em que somos generosos com nossas próprias limitações. Que mesmo com o toque de um grande shofar, ainda consigamos escutar um pequeno suspiro.

Shaná Tová! Gmar chatimá Tová!


[1] Lawrence A. Hoffman - “Morality, Meaning, and the Ritual Search for the Sacred” in All These Vows: Kol Nidre, p. 3-21.. 
[2] Ruth Durchslag,”Words Mean Everything , Words Mean Nothing — Both Are True”, All These Vows: Kol Nidre, p. 137-141.

terça-feira, 7 de setembro de 2021

Dvar Torá: Que o Shofar nos desperte, nos ajude a sonhar e vislumbrar o caminho para chegarmos lá! Rosh haShaná 5782 (CIP)


Quem tem mais de 30, certamente se lembra de um dos garotos-propaganda mais icônicos da TV brasileira: Carlinhos Moreno interpretava o tímido e desajeitado porta-voz da Bombril, aquela esponja de aço que todo mundo sabe que tem mil e uma utilidades!

Quase com mil e uma utilidade é o que poderia se dizer também do shofar, o símbolo marcante desta época do ano e que o Luis tão lindamente tocou há alguns instantes. Há bons motivos para que seja exatamente do toque do shofar que nos lembramos quando escutamos falar de Rosh haShaná, especialmente o fato de que, na Torá, esta festa que hoje chamamos de Rosh haShaná é chamada de Iom Truá, o “Dia da Truá”, que hoje a maioria de nós associa a um dos tipos de toque do shofar. Mas qual seria o motivo para a centralidade da escuta do shofar para nossa prática religiosa nesta época do ano?

O rabino Saadia Gaón, que foi o primeiro a buscar sistematizar a tradição judaica com os conceitos filosóficos da sua época no 10º século, compilou uma lista de dez motivos para tocarmos o shofar em Rosh haShaná [1] — entre os motivos apontados, está a ideia de que “o som de um shofar é como a voz dos profetas que soou como uma sirene alertando o povo judeu para mudar seus caminhos, retificar seus erros e voltar para Deus.” [2]

Esta ideia do alarme para nos alertar sobre uma questão social ou pessoal sempre me lembra da metáfora do sapo na água quente. Conta diz a lenda, aparentemente questionada pela ciência moderna, que se você tentar colocar um sapo vivo em água fervente, e ele imediatamente pulará para fora da panela sem grandes impactos, mas se você colocá-lo na água fria e aumentar a temperatura lentamente, o sapo irá se acostumando com o calor  e ficará na panela até ser completamente cozido. 

Nas nossas vidas, é bastante comum irmos nos acostumando a lentas mudanças nas condições que, por não serem grandes desvios daquilo com que tínhamos nos acostumado, vão sendo absorvidas sem que tomemos, de fato, qualquer ação — pense em um emprego, que era dinâmico e desafiador e vai mudando aos poucos até que, quando você se dá conta está há anos desenvolvendo atividades monótonas e pouco interessantes; ou em um relacionamento romântico, que começou cheio de paixão, carinho e atenção, mas que perde todas estas características com o passar do tempo e se torna opressivo e insípido. Precisamos soar o alarme!

Além da mensagem dos profetas, também no Talmud o toque do shofar é relacionado  ao espanto com como as coisas são e a necessidade de empatia, especialmente para com os mais excluídos. Após concluírem que truá é um toque do shofar, os sábios começam a discutir como exatamente este toque é definido. A referência na discussão é o choro da mãe de Sísera, um general canaanita morto por Iael, uma hebreia. O choro da mãe é associado ao significado de truá. Havia, entre os sábios do Talmud, quem defendesse que era um choro soluçado, que deu origem ao que chamamos de shevarim hoje em dia, e havia quem defendesse que fosse um choro mais contínuo, assim como o toque que hoje chamamos de truá [4]. Em comum, no entanto, tem o fato de tomarem a  dor da mãe do inimigo como a referência básica. O shofar nos lembra da humanidade fundamental de cada pessoa e nos convida a desenvolver empatia com o sofrimento do outro, mesmo com (ou talvez especialmente com) o sofrimento do outro radicalmente diferente de mim.

Assim como na vivência pessoal, também do ponto de vista social, vamos nos acostumando com situações inaceitáveis contra as quais teríamos nos rebelado se a sua evolução não tivesse sido tão gradual. Vamos pegar, por exemplo, a evolução dos casos de Covid — apesar da queda nas últimas semanas, a média móvel do número de casos se mantém acima de 600 [5]; ou seja, para usar a velha comparação com acidentes aéreos: é como se algo entre 3 e 4 Boeings 737-Max caíssem todos os dias no Brasil. Imaginem o luto coletivo que estaríamos vivendo por aqui com estes acidentes aéreos. Como, no entanto, o número de mortos foi subindo de forma lenta e gradual, fomos nos acostumando com este quadro e, de alguma forma, nos tornamos insensíveis à sua gravidade. Resta lembrar que este quadro não era inevitável e que há países no mundo nos quais os alertas soam e regras de quarentena mais rígidas são adotadas quando o número de pessoas infectadas passa de um determinado patamar, mesmo que ainda não tenha acontecido nenhuma morte. Precisamos soar o alarme! 

A situação dos moradores de rua na cidade de São Paulo é outro exemplo no qual vamos nos acostumando com a negação sistemática e persistente da humanidade dos nossos co-cidadãos sem que nos mobilizemos para radicalmente transformar um sistema que joga às ruas milhares de famílias. Basta ver a cara de horror de um turista visitando São Paulo para nos darmos conta de como perdemos parte da nossa própria humanidade em nossa conivência com esta situação. Precisamos soar o alarme!

Além de soar este alarme para as situações com as quais nos acostumamos, apesar de que não deveríamos, o shofar também nos ajuda a vislumbrar dias melhores e a contemplar uma realidade profundamente distinta. Do ponto de vista tradicional, isso implica nos levar de volta ao momento da revelação no Monte Sinai [7], no qual o povo ouviu o som do shofar cada vez mais alto. Naquele momento, no Monte Sinai, o povo judeu se estabelecia ao redor de um ideal de sociedade e de pacto com o Divino. Era o momento de sonhar com o que significava construir um mundo mais justo e quais eram as ferramentas necessárias para este projeto; era também o momento de cada pessoa presente àquele momento de Revelação se perguntar de que forma continuaria se relacionando com o Divino e que papel este relacionamento teria na sua vida. De volta a 5782, o shofar nos provoca a refletirmos sobre quem gostaríamos de ser, pessoal e coletivamente, e a agirmos para podermos chegar lá.

Uma das metáforas de Rosh haShaná é Iom Harat Olám, o dia do Nascimento do Mundo, e o toque do shofar nos leva a vislumbrar qual é este mundo ao qual gostaríamos de ver nascer. Em que tipos de relacionamentos interpessoais você gostaria de se envolver? Quais projetos profissionais você gostaria de desenvolver daqui para frente? Que papel você gostaria de ter na transformação e aprimoramento do mundo? Que comunidade, que cidade, que país nós gostaríamos de estar construindo juntos daqui pra frente?

Retomando: uma função do shofar é nos despertar para a situação do mundo hoje; outra função é nos ajudar a vislumbrar para onde gostaríamos que o mundo fosse. A terceira função do shofar, na qual eu gostaria de focar agora, é como chegamos lá…

Na história da conquista de Jericó, Iehoshua lidera o povo hebreu em um cerco à cidade tocando shofar e gritando aos céus, levando ao colapso das muralhas que protegiam a cidade [8]. Parafraseando um professor querido, o rabino Ebn Leader, o shofar também poder ter a função de trincar a casca dura que se forma ao redor dos nossos corações e que nos impede de desenvolvermos empatia ou de estarmos abertos aos desafios da transformação. A casca é um mecanismo de defesa que permite que nos mantenhamos sãos em um mundo de תֹּהוּ וָבֹהוּ, do mais absoluto caos. Trincar esta casca para permitir que a quebremos envolve aceitarmos o risco de saírmos de coração quebrado, mas mantê-la lá significa abrirmos mão de melhorarmos, de crescermos, de transformamos a nós mesmos e ao mundo ao qual pertencemos.

Algumas fontes associam o toque do shofar ao choro de uma mãe dando a luz — neste caso, Deus dando a luz ao mundo. É um choro de dor e de esperança que nos transformemos através da teshuvá e que aceitemos a parceria com Deus para consertar o mundo. 

Quando, na sequência do serviço, escutarmos novamente o toque do shofar, permita que ele te desperte para a realidade que nos cerca, que ele te ajude a conceber uma nova situação mais justa, mais inclusiva e mais significativa para você e que ele te ajude a se abrir para a possibilidade de buscar esses novos caminhos.

Shaná Tová! Que sejamos todos parceiros nestes processos!

quinta-feira, 22 de abril de 2021

A morte é parte da vida

O nome da primeira parte da parashá dupla desta semana, Acharei Mot, nos remete de volta ao episódio da morte dos dois filhos de Aharón, Nadav e Avihu, sobre o qual lemos há algumas semanas [1]. Naquele episódio, os dois filhos ofereceram um “fogo estranho” a Deus e foram consumidos pelo fogo. Moshé orienta seu irmão e sobrinhos a não demonstrarem sinais de luto pela morte de Nadav e Avihu e Aharón parece aceitar a instrução sem questionamentos. 

De volta à leitura desta semana, em sua tradução literal, Acharei Mot (o título da parashá) significa “depois da morte de...” porque, nela, Deus ordena instruções que Moshé deve passar a Aharón na sequência da morte de Nadav e de Avihu. 

Vivemos em uma época de comportamentos ambíguos com relação à morte. De um lado, os avanços científicos dos últimos séculos ampliaram de forma significativa nossa expectativa de vida, desenvolvendo remédios para doenças tratáveis, melhorando as condições sanitárias de parte considerável da população (ainda que muito trabalho ainda siga a ser feito nessa área), criando vacinas que possibilitaram a prevenção e até a erradicação de algumas doenças. A mortalidade infantil no estado de São Paulo, por exemplo, caiu de 188,9 por 1.000 nascidos vivos em 1900 para 10,7 por 1.000 nascidos vivos em 2018, uma redução de 94%! [2] Com esses ganhos, não causa surpresa que a morte tenha se tornado um tabu entre nós. No passado, convivia-se mais com a morte, especialmente com a morte jovem, e, por isso, o assunto era tratado com maior naturalidade. Hoje, vivemos como se nossas vidas fossem durar para sempre e não nos preparamos para nos despedirmos de nossos entes queridos quando eles se vão. Vivemos como se sempre fôssemos ter uma chance a mais para perseguir um sonho ou para ter uma conversa importante; quando a morte chega, na grande maioria das vezes, nos pega despreparados…

O outro lado da ambiguidade, no entanto, é que a grande disponibilidade de estatísticas faz com que fiquemos atordoados entre tantos números das nossas vidas. Perdemos a sensibilidade para a singularidade de cada vida humana, para a dor imensa que a morte de uma única pessoa pode causar. A tradição judaica ensina que “salvar uma vida é como salvar todo o mundo” [3] mas é difícil verdadeiramente assimilar este conceito quando as mortes são contabilizadas aos milhares. Por exemplo, a média móvel dos mortos por Covid no Brasil quase quintuplicou desde o começo do ano [4] e, após nos chocarmos por algumas semanas com o aumento, logo nos acostumamos e voltamos a nos comportar como se a doença não trouxesse risco algum.

Tudo muda, é claro, quando perdemos alguém muito próximo. O silêncio, como o de Aharón, pode ser a resposta de alguns à morte de uma pessoa da família, mas há também quem chore, quem grite, quem fique com raiva, quem queira aproveitar a sua vida ao máximo antes que ela também termine ou quem perca totalmente a vontade de viver. Para alguns, a perda lhes ajuda a ganhar perspectiva sobre o que é realmente importante na vida, enquanto, para outros, tudo perde a perspectiva e o significado. A dor pela perda é absolutamente subjetiva e não segue padrões pré-definidos. Há quem chegue ao final da shivá tendo-a processado completamente, mas há também quem só se dê conta da dimensão da sua perda meses depois de terminado o período de shloshim. Parte do processo de luto inclui aceitar que não há fórmulas prontas e sermos generosos com nós mesmos e com aqueles à nossa volta.  O sábio Hilel nos ensinou que não devemos julgar outra pessoa até que estejamos no mesmo lugar que ela [5] e o lidar com a perda pela morte é uma das situações em que este princípio deve ser aplicado com especial afinco.

Na parashá desta semana, após a perda dos seus filhos, e sem ter tido a oportunidade de processar seu luto, Aharón começa a receber as instruções e se ocupar das funções especiais do sacerdócio. Que seu exemplo dolorido nos sirva de lição para que a morte não seja tratada como tabu nem tampouco ignorada. A morte de cada pessoa é um evento natural, parte da vida, e, mesmo assim, um momento no qual um mundo inteiro é destruído.

Que neste shabat, cada vida que nos tocou e que partiu deste mundo possa ser lembrada e que sua luz possa continuar iluminando o nosso caminho.

Shabat Shalom,


[1] Lev. 10:1-7

[2] https://bit.ly/3gs1CBB

[3] Mishná Sanhedrin 4:5

[4] https://bit.ly/3dDGG91

[5] Pirkei Avot 2:4



sexta-feira, 19 de março de 2021

Dvar Torá: Mudanças que vão além da superfície (CIP)


Pessach está chegando em 8 dias. O primeiro sêder será na noite de 27/03 e eu quero convidar todo mundo a participar deste evento comunitário garantindo toda a segurança, mantendo-se nos seus núcleos familiares limitados e integrando a comunidade através da transmissão do sêder da CIP com a condução do rabino Michel com o Alê Edelstein.

Uma das tradições na preparação de Pêssach é fazer a limpeza da casa e eu tenho estado envolvido neste processo há algum tempo. Em uma caixa perdida que eu não tinha aberto deste que me mudei para São Paulo há mais de dois anos, encontrei um monte de receitas médicas. Lá no meio, as receitas do óculos que eu devia usar mas nunca uso… Eu comecei a usar óculos logo depois de me formar na faculdade. Depois de me formar na GV de São Paulo, meu primeiro emprego foi no Banco Bozano, Simonsen, no Rio. A mudança de cidade, a construção de um novo circulo de amigos oferecia a possibilidade de me re-inventar, de sair do casulo tímido em que eu tinha vivido até então sem ter que me preocupar com as expectativas que as pessoas que já me conheciam tinham a meu respeito. Pra ajudar, vieram o óculos, novo apetrecho que possibilitaria que o tímido Clark Kent virasse o destemido Superhomem. 

Tolo engano… alguns meses vivendo no Rio, uma grande amiga que eu tinha conhecido lá descreveu como ela me via. Era um retrato idêntico ao que meus amigos de São Paulo teriam descrito, com exceção do óculos que eu tinha adicionado ao visual.

Mudanças de contexto oferecem a possibilidade de transformarmos aquilo que nos incomoda na realidade que estamos vivendo — mas elas não tem nenhum poder mágico. Se quisermos realmente transformar como interagimos com o mundo e os resultados que obtemos, não há substituto para o duro de análise das nossas ações e mudanças de condutas.

Essa é uma semana cheia de mudanças. Já na segunda-feira entraram em vigor no Estado de São Paulo as novas regras para o estado de emergência em que nos encontramos de acordo com as quais templos religiosos não são mais considerados atividades essenciais e nós aqui na CIP corremos para repensar as cerimônias todas e fazê-las cada um da sua casa. Nesta semana, mudou o ministro da Saúde. Nesta semana, começamos um novo livro da Torá.

Vaicrá ou Levítico, o livro que começamos esta semana, coloca a ênfase no trabalho ritual dos sacerdotes e nos detalhes intricados dos sacrifícios, a forma de relacionamento com o Divino naquela época. Para um leitor contemporâneo, ler estas passagens traz uma certa medida de choque, especialmente para quem acredita que o judaísmo que praticamos hoje é exatamente o mesmo que nossos antepassados praticavam na época da Torá. O mundo mudou, as sociedades mudaram e o judaísmo mudou junto. 

Os rabinos tiveram a coragem de examinar as práticas descritas na Torá de forma crítica e propuseram novas formas de relacionamento com o Divino. A reza que praticamos hoje é resultado deste processo de transformação profunda. Em um diálogo imaginado pelos Rabinos de um midrash [1], Deus teria lhes dito que precisava apenas de palavras e que elas tinham a vantagem de que podiam ser ditas nas sinagogas, nas cidades, nos campos, até mesmo nas camas ou nos corações das pessoas. Não foi uma mudança fácil, muitas pessoas disseram que isso era um absurdo, que a vontade de Deus estava claramente refletida nas práticas descritas na Torá, que a mudança era ofensiva e inconcebível. Confrontadas com o esforço de mudar, esses grupos resolveram continuar apegados ao passado. Hoje, os conhecemos pelas páginas dos livros mas eles deixaram de fazer parte do presente judaico.

Nas páginas de Vaicrá, vamos buscar valores e inspiração para nossas práticas cotidianas. Ao evitarmos uma leitura que determinasse que as práticas prescritas no texto devem determinar nosso comportamento de forma literal, garantimos que a Torá, corpo central da nossa tradição, mantenha-se relevante ainda que tudo ao nosso redor tenha se transformado. Na parashá desta semana, por exemplo, lidamos com os erros que cometemos com ou sem intenção, em particular quando as pessoas que cometem estes erros ocupam posição de liderança e inspiram outros a seguir pelo mesmo caminho. Ainda que a prática de sacrifícios e libações não façam mais parte do nosso arsenal de respostas a estes erros, esta conversa inspirada pela Torá nos leva a considerar como podemos responder a esta situações quando elas acontecem na nossa própria época.

Uma frase famosa, constantemente atribuída a Albert Einstein define insanidade como fazer a mesma coisa muitas vezes e esperar resultados diferentes. Vivemos hoje uma crise sanitária sem precedentes na história recente. O número diários de mortos pela Covid se aproxima de 3,000. Como bem lembrou o querido Theo Hotz, ex-moré da CIP e no caminho de se tornar um colega rabino em alguns anos, “Em 2001, no ataque às torres gêmeas do World Trade Center, 2977 pessoas foram vítimas do terrorismo. No Brasil, temos um 11 de setembro por dia por causa de uma única doença.” [2] Aproveitando as palavras atribuídas a Einstein, é insano acreditarmos que podemos continuar fazendo as mesmas coisas e esperarmos resultados diferentes. A situação exige a mobilização de todos nós.

É fácil colocar a culpa nos outros — apontar para políticos que pregam o contrário do que diz a ciência ou se sujeitam a pressão de grupos organizados, andar pela rua e culpar quem ainda anda pela cidade com a máscara no queijo, como se ela fosse um amuleto que pudesse salvar vidas por proximidade. E, ainda assim, continuar com suas vidas e visitar alguns poucos amigos para um choppinho no final de semana; planejar o seder de Pessach com a família porque todos estão se cuidando; pedir comida pelo aplicativo todo dia, porque o entregador precisa trabalhar também, não é mesmo?!

O salvar-vidas só vai acontecer quando cada um de nós mudar nosso comportamento pra valer — abrir mão de práticas que nos são caras e entender que a mudança cosmética pode causar impacto mas não muda nada de verdade.

Quando a gente começou a fazer os serviços remotos, falaram muito de como falar para a sinagoga vazia era diferente, gerava incômodo. Eu confesso que este novo formato com cada um em sua casa gera um incômodo muito maior — mas nada comparado à possibilidade de salvarmos uma vida que seja ao transformarmos nossa conduta. Estamos tentando fazer a nossa parte e eu quero encorajar cada um de vocês a considerar o que vocês podem fazer também como a parte de vocês.

Em Pessach, nos lembramos da transformação dos filhos de Israel no povo hebreu, um processo baseado na solidariedade e na construção de um caminho conjunto. Que as cenas terríveis que assistimos em Manaus e em outras partes do país nos sensibilizem para a necessidade de mudanças urgentes e verdadeiras.

Shabat Shalom 



sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Dvar Torá: Reservatórios escondidos da Ner Tamid interior (CIP)


Nestes dias, nós completamos um ano de pandemia no Brasil: foi em 25 de fevereiro de 2020 que o primeiro caso foi registrado no Brasil. Vocês lembram como foram os primeiros dias da pandemia? O primeiro serviço de Cabalat Shabat que transmitimos online foi no dia 13 de março, ainda com a presença do público. Um dia antes, uma equipe de umas dez pessoas, entre profissionais e voluntários da CIP, tínhamos saído assustados de uma reunião com epidemiologistas do Einstein e entendido que a Covid-19 estava chegando com força e que era preciso nos prepararmos. Uma semana antes, ainda estávamos nos reunindo sem maiores preocupações e até tivemos um jantar comunitário de Purim mas tudo mudou a partir de então. No Cabalat Shabat do dia 13, teríamos uma Laila Laván, um acantonamento dos alunos de Bar e Bat que passariam a noite aqui na sinagoga e que foi cancelada na última hora. Já na semana seguinte, no shabat do dia 20/03, fizemos o Cabalat Shabat com a sinagoga vazia pela primeira vez e assim tem sido desde então….

Naqueles primeiros dias, o Ale gravou um vídeo pro facebook cantando uma música do Raul Seixas,“O dia em que a Terra parou”, com uma pequena mudança — a versão que o Ale cantou dizia: “nas sinagogas, ninguém para rezar pois sabiam que o rabino também não tava lá e o chazán não apareceu para cantar pois sabia que não tinha ninguém para escutar.” [1]

Pois é… estamos aqui, praticamente um ano depois, 251.661 [2] vidas perdidas depois, no número de ontem. Cada um de nós, cansados, carentes de um abraço apertado, sem aguentar mais aulas e reuniões por Zoom, festas de aniversário a distância, happy-hours em que a gente cada um toma a sua cerveja e come o seu petisco sem poder compartilhar com os outros… é como se a gente fosse sentindo aquela luzinha interior que cada um tem se apagando, um sentimento que é ainda mais agudo e doloroso quando a gente vê a luz dos nossos filhos diminuindo.

Se a gente voltar ainda mais no tempo, 5781 anos para ser exato, e voltar para a criação do mundo de acordo com a narrativa judaica, a Torá diz que a primeira coisa que Deus criou foi a Luz, e viu que era boa e distinguiu a Luz da Escuridão [3]. A mística judaica diz que esta primeira luz foi escondida e a luz que temos hoje é aquela que apareceu no quarto dia da criação, quando Deus criou o Sol, a Lua e as estrelas. Este assunto do que aconteceu com האור הגנוז, a Luz Priomordial que foi escondida, é assunto de muita especulação na literatura [4]. Há midrashim que dizem que ela está guardada para os tsadikim, para as pessoas especialmente justas e corretas, que a receberão no futuro [5]. O Zohar, por outro lado, a obra central da Cabalá argumenta que, se esta Luz Primordial tivesse sido inteiramente removida, não seria possível que a vida continuasse existindo. Pelo contrário, diz o Zohar, essa Luz foi escondida e plantada como uma semente, que gera frutos e suas próprias sementes e possibilita que o mundo continue existindo [6].

A liturgia diária talvez reflita um pouco desta perspectiva — na reza que. vem imediatamente depois do Barechú, que trata da questão da luz e na qual agradecemos a Deus por formar a luz e criar a escuridão, fazer a paz e criar tudo, nós afirmamos que Deus renova a todo dia e sempre os atos da Criação. Esta criação contínua que nunca para e que é nutrida pela Luz Primordial, ainda que não seja totalmente claro como este processo acontece.

Nesse momento em está mais difícil manter as nossas próprias luzes internas, as faíscas divinas que nutrem a nossa própria alma, eu adoraria descobrir um reservatório assim de luz escondida, animando um processo permanente de Criação. 

A parashá desta semana também trata de luz — logo no seu começo, ela traz a instrução para que os israelitas estabelecessem uma ner tamid, uma luz eterna que ficasse acesa o tempo todo. Os comentaristas quebraram a cabeça tentando entender o motivo para esta instrução. Hoje em dia é fácil: ligamos uma lâmpada em um fio que não está ligado a nenhum interruptor e garantimos que, a menos que falte luz elétrica, a luz eterna não se apagará. Imaginem, no entanto, antes da invenção da luz elétrica — manter a tal chama acesa permanentemente implicava ter uma fonte permanente de combustível, normalmente azeite que precisava ser sempre adicionado para que a chama não se apagasse.

Um professor querido meu, o rabino Nechemia Polen, diz que precisamos ler muitas passagens da Torá como instrumentos para alimentar a relação entre Deus e a humanidade, como buquês de flores que casais se presenteiam sem motivo algum ou as delicadezas do dia a dia que fazemos àqueles de quem gostamos. Pequenos gestos de apreciação cotidiana, que indica para a outra pessoa que ela é importante para nós. Um midrash [7] é rápido em afirmar que Deus não precisa desta luz, a instrução para colocá-la acima da arca só está lá para nosso benefício.

Quem sabe, foi justamente para este momento e outros momentos de desespero ao longo da história judaica, que a luz eterna foi estabelecida? Uma lembrança da nossa capacidade permanente de recriação em um mundo dinâmico, uma indicação que existem recursos escondidos até mesmo de nós mesmos aos quais podemos recorrer quando as notícias parecem especialmente desanimadoras, um recado claro de que depende de nós alimentarmos constantemente o azeite para que a nossa luz eterna continue brilhando, iluminando as nossas vidas e de todos aqueles ao nosso redor.

Aquela reza à qual eu fiz menção, ela termina dizendo אוֹר חָדָשׁ עַל צִיּוֹן תָּאִיר וְנִזְכֶּה כֻלָּנוּ מְהֵרָה לְאוֹרוֹ, “que uma nova luz brilhe sobre Tsión e que todos possamos vê-la em breve”. A tradição tem entendido que essa frase indica que a Redenção, esta nova luz que esperamos que brilhe sobre todos nós, não precisa ser inventada, ela apenas precisa ser revelada e tirada do seu esconderijo, um processo que envolve cada um de nós e nossos esforços de manutenção das nossas luzes eternas.

Que nesse shabat, ainda escondidos em nossas casas, possamos revelar nossas luzes e, assim ganhar impulso para iluminar o mundo todo. 

Shabat Shalom!


[2] https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/02/25/brasil-bate-recorde-de-mortes-por-covid-19-registradas-nas-ultimas-24-horas-1582.ghtml
[3] Gen. 1:3-4
[4] https://www.jstor.org/stable/26833118
[5] Bereshit Rabá 3:6
[6] Zohar II 148b-149a. 
[7] Shemot Rabá 36:2

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Dvar Torá: Chamando Deus para enfrentar nosso descaso (CIP)


Um midrash que eu adoro [1] compara o patriarca Avraham a um sujeito andando pela estrada quando ele vê um farol aceso, o fogo brilhando intensamente. “Como pode ser que este farol está em chamas e a torre não se consome?” Se deu conta, então, de que havia alguém que tomava conta do fogo no farol, garantindo que ele continuasse iluminando o caminho dos navegadores sem consumir a torre. Assim era Avraham, diz o midrash, que viu um mundo em movimento, pegando fogo, sem, no entanto, se consumir. Deve ter alguém que toma conta do fogo para garantir que ele não consuma o mundo. Foi assim que Avraham intuiu a presença de Deus no mundo.

Um professor querido, o rabino Or Rose, se baseia em uma obra chassídica famosa, o Kedushat Levi, escrito pelo rabino Levi Itzchak de Berditchev no final do século 18, para falar de como a presença de Deus se manifesta de formas distintas [2]. Algumas vezes, como na parashá desta semana, Deus escuta os gritos dos hebreus em servidão e interfere diretamente na história, enviando os dez golpes sobre Mitsrayim e abrindo o mar para garantir sua libertação; outras vezes Sua atuação se dá de forma bastante mais discreta e limitada. Na leitura do Kedushat Levi, Deus se revela na abertura do mar como um jovem sem barba, sem medo de demonstrar todo o Seu vigor, dizimando os inimigos em Seu caminho para atingir os objetivos que tinha estabelecido. Apenas sete semanas separam este evento do recebimento da Torá no Monte Sinai, mas o Kedushat Levi enxerga Deus se apresentando de forma muito diferente: como um senhor de longas barbas, contido, limitado, preocupado que todos os israelitas presentes àquele momento pudessem ter tranquilidade para escutar os ensinamentos sagrados da Torá.

Essa ideia de que Deus se manifesta de formas distintas, se preocupando com a maneira como espera que nós reajamos talvez nos ajude a processar o período que estamos vivendo e a decidir como agir. Nos últimos dias, temos escutado mensagens terríveis com relação ao desenvolvimento da pandemia no Brasil. As notícias que chegaram ontem de Manaus davam conta de que o oxigênio na cidade tinha se esgotado, transformado respiradores em câmaras de asfixia [3]. Hoje, a notícia é que 60 bebês prematuros tiveram que ser transferidos para outros estados por falta de capacidade de tratamento na rede hospitalar do Amazonas. Imagine ser o pai ou a mãe de um destes bebês, já angustiado pela situação, tendo agora que acompanhá-los em uma viagem que pode lhe custar a vida.

Ficamos à procura da intervenção divina nestas situações, mas não encontramos nada. Como dizia Castro Alves, 

Deus! ó Deus, onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes,
Embuçando nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde, desde então, corre o infinito…
Onde estás, Senhor Deus?…  [4]

A chama do farol está acesa mas parece que há ninguém cuidando para que o fogo não queime toda a torre.

Eu sempre me espanto como somos muitos mais racionais quando analisamos a vida dos outros do que quando tomamos decisões nas quais estamos diretamente envolvidos. No dia 04 de agosto de 2020, uma explosão gigantesca destruiu boa parte de Beirute, deixando mais de 200 mortos, 7,500 feridos e 300.000 pessoas sem seus lares. Logo nos primeiros dias da investigação, fomos informados de que a explosão tinha sido causada por uma grande quantidade de nitrato de amônio armazenada no porto da cidade por sete anos sem maiores cuidados. Quando vimos aquelas notícias, todos apontamos nossos dedos acusadores para as autoridade políticas do Líbano e para os responsáveis pela administração do porto. Como puderam agir de forma tão irresponsável, deixando tal quantidade de material explosivo sem cuidados?

Pois bem: passamos os últimos meses sendo alertados de que as festas de final de ano e as férias escolares desafiariam nossa convicção no isolamento social. E não deu outra, assim como os líderes do porto de Beirute, resolvemos jogar com a sorte e correr o risco para o qual nos alertavam. Seja pelos relatos familiares ou pelas listas que circularam pelas redes sociais, todos sabemos que a queda da nossa atenção nas últimas semanas têm levado a um aumento assustador nas infecções por Covid, não só no Amazonas. A triste verdade é que desencanamos e os resultados do nosso descaso estão aparecendo. 

A média móvel de vítimas diárias pela doença voltou a superar 1000 pessoas e já somos mais de 207 mil famílias enlutadas no Brasil [5]. Chegamos a níveis de ocupação hospitalar mais altos do que no primeiro semestre, e desta vez não temos toda a capacidade criada no começo da pandemia para expandir o atendimento. O Amazonas desativou 85% dos leitos de UTI que tinha criado em resposta à pandemia; o hospital de campanha do Pacaembu foi fechado ainda no primeiro semestre e os do Ibirapuera e do Anhembi no meio do segundo semestre. O governador do Amazonas tinha determinado o fechamento do comércio no final do ano para limitar a disseminação do vírus, mas foi forçado a voltar atrás por pressão de comerciantes e políticos [6]. O maior cargueiro da FAB, que poderia transportar tanques de oxigênio para Manaus ou vacina para todas as partes do país foi enviado no começo da semana para os Estados Unidos, onde ficará fazendo exercícios militares até o dia 5 de fevereiro. 

Em um artigo excelente do rabino Ruben no Estadão de segunda-feira, ele tratou da questão da vacina e da priorização à vida. Em uma metáfora bastante adequada, ele perguntou:

Se diante de um prédio em chamas a equipe de bombeiros começasse a debater preços, materiais, estratégias, hierarquias ou teologias, enquanto morre grande parte dos moradores, seguramente essa equipe seria processada e condenada. Pelo menos por omissão. Em algumas sociedades, por homicídio. Mais ainda se abandonasse o prédio para se dedicar a qualquer outro afazer, em vez de salvar vidas. [7]

A questão, no entanto, é que os moradores do prédio, vendo a construção  toda em chamas, continuam em suas festas particulares, sem se importar com os resultados terríveis do seu descaso.

No comecinho da nossa parashá, em uma passagem que leremos amanhã no serviço de Shacharit, Deus disse a Moshé:

Eu sou ה׳. Eu apareci a Avraham, a Itschac e a Iaacov como El Shadai, mas eu não Me revelei a eles pelo meu nome ה׳. (…) Eu escutei os gritos dos israelitas porque os Mitsrim os escravizam e eu me lembrei do nosso pacto. [8]

Eu escutei os gritos dos israelitas, שָׁמַעְתִּי אֶת־נַאֲקַת בְּנֵי יִשְׂרָאֵל, prestem atenção ao verbo שָׁמַעְתִּי, da  mesma raíz que Sh’má.

Em contraposição, o faraó é representado na parashá como alguém cujo coração está endurecido, que não tem a capacidade de notar o sofrimento alheio ou de escutar o grito que sua opressão está causando. Nesta passagem, é a empatia com a dor do outro que diferencia a conduta de Deus e a do faraó.

Como disse o Kedushat Levi, Deus aparece de distintas formas a cada geração, levando em consideração suas necessidades e potencial. Esse é o momento de permitir que nossas fagulhas divinas escutem os gritos vindo da nossa sociedade e passem a tomar conta da torre para que o fogo do farol não a consuma completamente.

שמע ישראל, Sh'má Israel: este é momento, esta é a hora.

Shabat Shalom,


sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Dvar Torá: Reafirmando nossa humanidade apesar da tecnologia (CIP)

Em seu livro sobre a revolução francesa “18 do Brumário de Napoleão Bonaparte”, impressionado com os papéis de Napoleão Bonaparte e seu sobrinho, Luís Napoleão, que foi o primeiro presidente eleito da França, mas deu um golpe e se tornou seu último monarca, Karl Marx cunhou uma de suas frases mais famosas: “a história se repete: primeiro como tragédia, depois como farsa”. [1]

Em 1918, quando a Primeira Guerra Mundial estava chegando ao seu fim, uma pandemia atacou uma população que já estava desgastada pelos quatro anos da guerra: com a população mal nutrida e em péssimas condições de higiene, a infecção atacou em cheio,  causando uma reação excessiva do sistema imunológico e milhões de vítimas [2]. Entre 50 e 100 milhões de pessoas morreram por esta doença, que na verdade não estava originalmente associada à Espanha. Os estudos mostram que a pandemia teve origem, provavelmente, em acampamentos militares norte-americanos, mas por causa do esforço de guerra, a censura militar impedia que notícias sobre a infecção de soldados americanos fossem divulgadas; sobrou para a Espanha, que não participava da guerra e onde a imprensa podia noticiar livremente as infecções. Estima-se que cerca de 500 milhões de pessoas se infectaram entre fevereiro de 1918  e abril de 1920. No Brasil, as estimativas são de que mais da metade da população da cidade de São Paulo se contaminou pelo vírus e na cidade do Rio de Janeiro, cerca de 12.700 pessoas morreram devido à pandemia [3]. Por todo o mundo, autoridades políticas negaram sua gravidade; quando a seriedade da doença foi compreendida, medidas de distanciamento social foram adotadas; cinemas, escolas e centros religiosos foram fechados e máscaras passaram a ser usadas em locais públicos [4].

 “A história se repete: primeiro como tragédia, depois como farsa.”

Um aspecto no entanto, faz com que a história da pandemia de 1918 e a que estamos vivendo hoje sejam radicalmente diferentes e basta um pouquinho de matemática para percebermos: 500 milhões de pessoas infectadas em 1918, entre 50 e 100 milhões de mortos. A taxa de letalidade era entre 10% e 20% daqueles que se infectavam. Hoje, com quase 42 milhões de infectados e 1.140.422 mortos [5], a taxa de letalidade está na casa de 2,7% — o que ainda é muito alto e justifica todas as medidas de proteção que estamos adotando, mas é muito menos que 20%!

O que explica essa diferença nos números? Em 1918, não existiam remédios anti-virais [6] ou antibióticos [7] que permitissem tratar as infecções secundárias. O primeiro respirador artificial foi desenvolvido apenas em 1928 [8] e a Internet, que tem permitido que médicos de todo o mundo compartilhem, em tempo real, suas experiências no tratamento da doença, não fazia parte nem do sonho das pessoas antes do anos 1960.

Em resumo, o desenvolvimento tecnológico tem salvado vidas todos os dias, tanto na prevenção de novas infecções quanto no tratamento daqueles que já se infectaram. Negar os benefícios que a tecnologia tem trazido às nossas vidas, quando eu falo com vocês através das telas, seria no mínimo tolice.

A parashá desta semana, no entanto, traz alguns alertas sobre os impactos negativos da tecnologia.[9]

Na época sobre a qual a Torá fala, a tecnologia mais recente era o desenvolvimento do tijolo queimado e da argamassa. Com eles, a humanidade acreditou que poderia se transformar em deuses se construíssem uma torre que chegasse até o céu. Deus percebeu que, no ritmo em que eles iam, nada estaria fora do seu alcance e agiu para que seus planos fossem frustrados.

“A história se repete: primeiro como tragédia, depois como farsa.”

Não são poucas as experiências contemporâneas nas quais o desenvolvimento tecnológico tem permitido que acreditemos na possibilidade de nos tornarmos deuses.

Quando eu leio a história da Torre de Babel, imediatamente eu penso na ovelhinha Dolly, o primeiro mamífero nascido por um processo de clonagem, em 1996 [10]. Graças ao desenvolvimento científico e tecnológico que ela desencadeou, especialmente na área de células tronco, temos hoje a possibilidade de curar doenças para as quais não havia qualquer tratamento.

O desenvolvimento de técnicas de clonagem, no entanto, também abriu a possibilidade de manipulação genética para fins de eugenia, um conceito ultrapassado de melhoria genética da espécie humana, popular no século 19 e que deu roupagem científica a preconceitos raciais.  Já imaginou se toda a população pudesse ter olhos azuis? Ou aquela covinha na bochecha quando sorri? Quando seres humanos acreditam que nosso desenvolvimento tecnológico nos permite decidir quais características genéticas a população terá no futuro, onde fica a ética? Onde fica a moral? A busca de bebês que sejam a materialização dos sonhos biológicos de seus pais dá expressão ao sonho maligno do Dr. Josef Mengele, o anjo da morte de Aushwitz, que usava os prisioneiros judeus para seus experimentos.
 
Mas não é só na medicina que a tecnologia tem nos confundido sobre o que ela nos possibilita fazer. Aplicativos inocentes nos nossos celulares permitem que as operadoras saibam todo lugar em que passamos, quem visitamos e quanto tempo ficamos em cada lugar. Tecnologias de reconhecimento facial permitem que padres e rabinos identifiquem quais comentários fazem mais sucesso pela forma como as feições dos fiéis respondem às suas prédicas e sermões. Deep fake, a irmã mais nova no parquinho das maldades, permite que recriemos o que de fato aconteceu, construindo aparições em vídeo onde a voz e a imagem dizem uma coisa, mas a realidade dos fatos diz exatamente o seu oposto.
Muitas vezes, o mesmo desenvolvimento tecnológico que salva vidas coloca na ponta dos nossos dedos capacidades que nos seduzem, que nos fazem sentir todo-poderosos e que traem nosso sonho de uma sociedade mais justa, mais aberta, mais inclusiva. 

Uma outra forma como a tecnologia tem permitido que nos sintamos deuses é o efeito da caixas de ressonância criadas pelas redes sociais. Em uma live no domingo passado [11], em que lançou a edição em português do seu livro “O Impasse de 1967”, o dr. Micah Goodman falou de como o negócio de empresas como facebook, YouTube e Twitter, é reter a nossa atenção e como, infelizmente, ideias extremas e que confirmem aquilo no que já acreditamos capturam nossa atenção com muito maior eficiência. Por isso, as redes sociais tendem a gerar uma radicalização do discurso, dando legitimidade a ideias que germinavam apenas nos segmentos mais extremos da população e a criar contextos uniformes, que dão a aparência de que todos concordam com a tua opinião.

Nessas caixas de ressonância, em que nossas opiniões reinam sem que sejam questionadas, nos sentimos deuses, senhores absolutos de toda a razão. Nesses cenários, não existe incentivo algum para escutar a perspectiva do outro; não existe nem mesmo o reconhecimento de que este outro, que pensa diferente, existe. Neste cenário polarizado, em que cada um se considera o único dono da verdade, o diálogo com quem pensa diferente é uma traição inaceitável. Basta ver a reação da massa quando um político eleito por uma plataforma ideológica é visto conversando com um político que representa outra ideologia. A política, a arte da produção de consensos, de busca de campos comuns, tem sido negada, não só pelos escândalos de corrupção, mas principalmente por uma pureza ideológica que não aceita nenhum tipo de concessão.

Yeshayahu Leibowitz, um filósofo ortodoxo israelense de ideias polêmicas e que incomodava todos os governos de Israel, afirmou que o conceito de Bavel, a cidade em que todos tinham a mesma linguagem e as mesmas palavras é um eufemismo para falar de totalitarismo, a situação em que todos são forçados a pensar o mesmo e no qual uma ideia diferente é percebida como uma traição.

Leibowitz escreveu: 
“Uma linguagem e um discurso é, de acordo com muitas pessoas ingênuas em nossos dias, a descrição de uma situação ideal: toda a humanidade em um único bloco sem diferenciação e, como resultado, sem conflitos. Mas quem realmente entende saberá que não há nada mais ameaçador do que este conformismo artificial: uma cidade e uma torre como o símbolo da concentração de toda a humanidade em um único tópico – onde não haverá diferenças de opinião e onde não haverá mais conflito sobre diferentes pontos de vista e valores. Não se pode imaginar maior tirania do que esta, não se pode imaginar maior infertilidade mental e moral do que esta – que não deve haver exceções e que não deve haver desvios do que é aceito e acordado, situação mantida pelos meios artificiais de uma cidade e uma torre.” [12]

O que o tijolo queimado e a argamassa produziram na geração da Torre de Babel, as redes sociais replicaram na nossa geração: a possibilidade de acharmos que somos quase-deuses e, assim,  que todos devem pensar o mesmo que nós e adotar o nosso discurso.

Para Leibowitz, a resposta de Deus, espalhando as pessoas pelos quatro cantos da terra e fazendo com que adotassem idiomas diferentes, não foi uma punição, mas um sinal da compaixão infinita de Deus pela humanidade. Para ele, foi só em um mundo em que não havia mais uma única língua e um único discurso que Avraham, o mais iconoclasta dos nossos patriarcas, pôde aparecer e questionar a tradição dos seus pais.

“A história se repete: primeiro como tragédia, depois como farsa.”

Não faz sentido desejarmos viver em um mundo sem tecnologia, da mesma forma que não faria sentido para Avraham rejeitar o uso do tijolo queimado e da argamassa. No entanto, é fundamental que reconheçamos também os efeitos nocivos que a tecnologia pode trazer consigo — a notícia boa é que nenhum deles é inevitável. Podemos assinar jornais nos quais posições plurais sejam expressas; podemos buscar diálogo com quem pensa radicalmente diferente da gente; podemos rejeitar ou limitar o uso de tecnologias que, apesar de oferecerem comodidades, invadem a nossa privacidade ou, ainda pior, nos permitem invadir a privacidade dos outros.

Que nesta distopia em que temos vivido, na qual nos tornamos cada vez mais dependentes da tecnologia, tenhamos a coragem de olhá-la nos olhos e re-afirmar a nossa humanidade.

Shabat Shalom

[1] https://en.wikipedia.org/wiki/The_Eighteenth_Brumaire_of_Louis_Bonaparte
[2] https://en.wikipedia.org/wiki/Spanish_flu
[3] https://brasilescola.uol.com.br/historiag/i-guerra-mundial-gripe-espanhola-inimigos-visiveis-invisiveis.htm
[4] https://en.wikipedia.org/wiki/Spanish_flu#Public_health_management
[5] https://en.wikipedia.org/wiki/Template:COVID-19_pandemic_data acessado em 23/10/2020.
[6] https://en.wikipedia.org/wiki/Antiviral_drug
[7] https://en.wikipedia.org/wiki/Antibiotic#History
[8] https://en.wikipedia.org/wiki/Ventilator#History
[9] Gen. 11:1-9
[10] https://en.wikipedia.org/wiki/Dolly_(sheep)
[11] https://youtu.be/dE9jvFAOd1c
[12] Yeshayahu Leibowitz, Earot leParshiot haShavua, Ch. 2: Bereshit - Noach




domingo, 20 de setembro de 2020

Dvar Torá: Um convite para construirmos juntos o novo anormal (CIP)


Há alguns anos, estava na moda falar no efeito borboleta, parte da teoria do caos que dizia que o bater de asas de uma borboleta no Japão poderia explicar a formação de um tornado nos Estados Unidos. A ideia era que pequenas mudanças nas condições iniciais de um sistema pudessem explicar grandes diferenças nos resultados finais [1].

Em 5780, nós vivemos nossa própria versão do efeito borboleta. Um vírus que começou a se espalhar em uma cidade na China da qual a maioria de nós nunca tinha ouvido falar gerou impactos no mundo todo. Gente que nunca foi pra China, gente que nunca saiu da sua cidade no interior da África ou da sua tribo indígena no meio do Brasil foi impactada pela pandemia de Covid-19. Há muitas décadas, o discurso ambientalista tem destacado que nossos destinos pessoais estão intrinsicamente conectados com o  destino do resto do planeta e que políticas de proteção da natureza têm que ser pensadas em escala global porque a consequência de não fazer nada também é global.  A crise do Corona Vírus parece ter fortalecido o argumento de que não apenas em questão do meio-ambiente, mas também em questões de saúde pública, estamos todos no mesmo barco, não é possível encontrar soluções que salvem só alguns enquanto o resto da humanidade continua vulnerável.

Daqui a alguns minutos, nós vamos cantar o Aleinu de Malchuiot, aquela versão do Aleinu na qual fazemos a prostração total até que nossas testas toquem o chão. Apesar de atualmente encerrar os três serviços diários: shacharit, minchá e arvit, a origem do Aleinu está na liturgia de Rosh haShaná. Há tradições que atribuem sua redação a Iehoshua, o sucessor de Moshé, ainda na época da conquista da Terra de Israel, e normalmente é entendido que Rav, um sábio da época do Talmud, estabeleceu que o poema deveria ser lido antes da seção de Malchuiot em Rosh haShaná. Foi só muitos séculos depois, que o Aleinu se estabeleceu como parte da liturgia diária [2].

Eu confesso que, assim como muitos outros judeus liberais, eu tenho sérios problemas com as primeiras frases do Aleinu. Em sua tradução literal elas dizem: “Nós devemos louvar o Senhor de tudo e expressar a grandeza ao Criador do universo, que não nos fez como as nações das terras e não nos colocou como as famílias do solo, que não fez nossa parte como as deles, nem nosso destino como o de todos eles”. Muitas são as comunidades liberais que mudaram estas linhas nos seus sidurim; outras, como a CIP, mantiveram o original em hebraico mas suavizaram a tradução — vocês podem checar na página 150 do Machzor de Rosh haShaná. 

Há alguns bons anos, eu protestei junto a um professor querido, perguntando por que mantínhamos estas linhas nas nossas rezas diárias. Sua resposta foi que nenhum judeu liberal acredita neste texto e que só o mantemos para honrar a tradição. O problema, na minha opinião, é que ao repetirmos estas palavras três vezes ao dia, corremos o risco de acabar acreditando no que elas dizem. Podemos achar que é possível um futuro no qual o nosso destino não esteja totalmente conectado com o que acontecer com os outros doze milhões de habitantes da cidade de São Paulo ou até mesmo com os outros 7 bilhões de seres humanos com quem compartilhamos o planeta.

Em uma das passagens mais complicadas da Torá, que lemos ontem de manhã, depois que seu filho Itschak nasceu, Sará pediu a Avraham que expulsasse Hagar e seu filho, Ishmael, que também era filho de Avraham e assim ele o fez. O motivo alegado era para que “o filho desta escrava não receba a herança junto com meu filho, com Itschak” [3]. Que ilusão da nossa primeira matriarca! Apesar da expulsão, os descendentes de Itschak e de Ishmael continuamos disputando esta herança até hoje….não só do ponto de vista concreto, com cada lado argumentando que tem a mais sólida justificativa religiosa para possuir a terra de Israel, mas também no nível da narrativa: o quase sacrifício de Itschak, que tradicionalmente lemos no segunda dia de Rosh haShaná e sobre a qual conversaremos daqui a pouco, também faz parte da tradição muçulmana, só que lá o filho querido que Deus pede a Avraham para sacrificar é Ishmael [4]. 

As correntes de água e as massas de ar são apenas parte da entropia natural do universo, que faz com que soluções que separem o “nosso” destino do “deles” nunca funcionem.

Neste Dia do Julgamento, um dia em que a prática de tshuvá, o reconhecimento dos nossos erros tem papel central, é importante reconhecermos como permitimos que a mentalidade do Aleinu  determinasse muitas das nossas ações no ano que está terminando: deixamos de ir aos supermercados e aos restaurantes para nos proteger da Covid, enquanto ciclistas e motociclistas dos aplicativos, muitas vezes sem dinheiro para fazer nenhuma refeição nos longos dias que passavam entregando comida para os outros, se expunham aos riscos de contaminação, sem qualquer direito trabalhista [5]. Nos orgulhamos das altas taxas de sucesso dos nossos hospitais para recuperação de pacientes com Covid enquanto os hospitais da periferia, aqueles que tratam nossos co-cidadãos que continuaram se expondo no transporte público e trabalhando nos supermercados, nos açougues, nas farmácias, nas empresas de entrega, tinham pacientes morrendo em taxas absolutamente alarmantes, algumas vezes acima de 90% [6]. Buscamos refúgio em condomínios no interior e no litoral [7] [8], ao mesmo tempo em que boa parte da cidade continuava apertada em seus espaços na periferia ou, ainda pior, jogada nas ruas sem proteção alguma.

Frente a uma realidade que unia todos os destinos, continuamos achando que Deus “לֹא שָׂם חֶלְקֵנוּ כָּהֶם, וגוֹרָלֵנוּ כְּכָל-הֲמוֹנָם” “não fez nossa parte como as deles, nem nosso destino como o de todos eles” e operando dentro desta visão de mundo. Da bondade dos nossos corações, é bem verdade, desenvolvemos inúmeras ações de ajuda, mas foram poucas as que realmente vieram do lugar da Tsedacá, o conceito judaico de justiça social, que entende que o nosso compromisso com o bem-estar do próximo não deve depender da nossa generosidade, mas de uma obrigação permanente para com a construção de uma sociedade justa — que se manifesta tanto no desenvolvimento de ações emergenciais, quanto na luta pela transformação das estruturas que permitiram tanta desigualdade e injustiça.

Agora, temos que imaginar o mundo daqui pra frente e a expressão “novo-normal” me assusta. Nos acostumamos com situações inóspitas quando elas se repetem e se transformam em rotineiras. É um mecanismo de defesa importante, que permite, por exemplo, que saiamos de casa em São Paulo ou no Rio de Janeiro, apesar dos altos números de violência urbana — mas este mesmo mecanismo de defesa pode nos levar a enxergar o inaceitável como normal.

Passamos a aceitar um ritmo mensal de mais de 20.000 vidas perdidas no Brasil para a Covid-19 como se fosse normal; nos acostumamos a aceitar o Pantanal e a Amazônia queimando, cada ano a ritmo recorde, como se fosse normal; nos acostumamos a aceitar famílias inteiras vivendo nas calçadas das nossas ruas como se fosse normal; nos acostumamos a aceitar pacientes morrendo nos corredores dos hospitais públicos da cidade mais rica do Brasil como se fosse normal. 

A verdade é que eu não quero voltar pra esse normal. Eu quero te convidar a imaginar como podemos sair deste estado de coisas e sonhar com a transformação da nossa cidade, da nossa sociedade, do nosso sentido de responsabilidade mútua uns com os outros. Como Avraham, o hebreu contestador sobre quem o rabino Michel falou na 6a feira, eu quero ter a coragem de estar na outra margem, de imaginar como poderia ser e não só descrever como é.

À mentalidade das primeiras linhas do Aleinu, à ideia de que nós temos direito a um destino diferenciado, se opõe a perspectiva da criação de um único ser humano, masculino e feminino, criado à imagem Divina, que comemoramos em Rosh haShaná. De acordo com a Mishná, Deus fez que toda a humanidade descendesse de uma única pessoa para que um não pudesse dizer ao outro “meu pai é maior que o teu” [9]. Estamos juntos nesse bote salva-vidas e somos todos necessários para manter seu equilíbrio. Não há sobrevivência que não envolva cuidarmos uns dos outros.

Deus, a energia viva que corre em todos nós, que hoje estabelece este tribunal em que apresentamos nossas histórias e pedimos a inscrição no Livro da Vida, nos urge a considerar nossa responsabilidade em sermos guardiões de todos os nossos irmãos.  Não sejamos como Cain, o primeiro assassino da Torá, que perguntou a Deus, de forma desafiadora “?הֲשומֵר אָחִי אָנוכִי ”, “E eu sou o guardião do meu irmão?!” [10] Que em 5781 possamos todos responder com um sonoro “Somos!”

Shaná Tová!


[1] https://en.wikipedia.org/wiki/Butterfly_effect
[2] https://en.wikipedia.org/wiki/Aleinu
[3] Gen 21:9-14
[4] https://en.wikipedia.org/wiki/Binding_of_Isaac#Muslim_views
[5] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/06/21/entregadores-se-unem-por-melhores-condicoes-de-trabalho-nos-aplicativos-entrego-comida-com-fome-diz-ciclista.ghtml
[6] https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/08/em-uti-de-hospital-da-zona-leste-de-sp-maioria-nao-sobrevive-a-covid.shtml
[7] https://www1.folha.uol.com.br/sobretudo/morar/2020/09/paulistanos-trocam-capital-pelo-interior-e-aquecem-mercado-de-casas-no-campo.shtml
[8] https://brasil.elpais.com/internacional/2020-08-03/bilionarios-se-preparam-para-o-fim-da-civilizacao.html
[9] Mishná Sanhedrin 4:5 
[10] Gen 4:9



sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Dvar Torá: É difícil e maravilhoso ser judeu (CIP)

Eu estou há alguns meses envolvido em um projeto concebido pelo presidente da CIP, o Mario Fleck, chamado 5.8. O primeiro braço do projeto a virar realidade foi um podcast, também chamado 5.8, que eu tenho a honra de comandar junto com a Laura Trachtenberg Houser [1] — quando terminar o shabat, vai lá no teu tocador favorito de podcasts, que pode também ser o Spotify e procura 5.8 e você vai nos encontrar e vai poder escutar os episódios publicados a cada duas semanas, sempre às 3as feiras. Por enquanto, tem só um episódio publicado, mas na próxima 3a feira, dia 15/09, segundo episódio vai ao ar. E o melhor é que você pode escutar quando quiser, e até escutar os episódios anteriores…

A partir do segundo episódio, a gente vai começar uma série pra explorar o que quer dizer ser judeu e vamos conversar com gente normal, como você e como eu, e também com alguns intelectuais e especialistas. 

Ser judeu nem é sempre fácil. O judaísmo tem a mania irritante de exigir que nossas ações e as nossas palavras estejam alinhadas, que sejamos coerentes com os valores que dizemos ter. Se o texto diz, como a nossa parashá diz, “escolha a vida” [2] e a gente afirma levar o texto a sério, a gente não pode reunir centenas de pessoas pra passarem juntos as rezas de Rosh haShaná e Iom Kipur. Se o texto diz, como a nossa parashá diz, que o pacto entre o povo judeu e Deus não foi firmado somente com a geração de Moshé, mas também com todas as gerações posteriores [3] e, como a nossa parashá também diz, que a tradição judaica não está distante nem nos céus, mas que está próxima e que devemos agir de acordo com seus valores [4], e a gente afirma que este é um texto sagrado e verdadeiro, a gente não pode tratar a cultura judaica como se fosse algo que tenha ficado congelado no passado ou que não tenha relacionamento com as nossas ações.

Ser judeu é difícil e estabelece expectativas com relação ao nosso comportamento. Expectativas que têm basicamente a ver com a forma como tratamos uns aos outros, como protegemos os vulneráveis, como defendemos o planeta. Como dizia o rabino e filósofo Abraham Joshua Heschel “Você não pode adorar a Deus e então olhar para um ser humano, criado por Deus à Sua imagem, como se esse ser humano fosse um animal.”

De algum jeito, ser judeu e viver com a expectativa de que nos comportemos como gente no lugar em que a humanidade estiver em falta [5] é mais ou menos como tentar escrever uma redação com um pai olhando a tela do computador por cima do seu ombro e você com medo de que ele vai apontar todos os erros gramaticais do teu texto…. é viver com medo de errar, sabendo que o erro é praticamente inevitável. Na parashá desta semana, Deus já avisa Moshé que o povo vai fazer besteira e vai andar por caminhos errados e até pede pra Moshé colocar um poema na Torá que sirva de lembrete pra quando esse momento chegar [6].

O final do ano judaico vai chegando, o processo de cheshbon nefesh, de avaliação verdadeira de quem realmente fomos em 5780 vai tomando corpo, e o medo desse encontro com Deus, com nós mesmos, vai crescendo dentro da gente. Se a gente realmente leva a tradição a sério, Rosh haShaná, que começa exatamente daqui a uma semana, tem que ser mais do que a festa da maçã com mel, da cabeça de peixe e do toque do shofar. Rosh haShaná é o dia de visitarmos as partes de nós mesmos, das nossas vidas e das nossas condutas, que não revelamos para mais ninguém, muitas vezes nem para nós mesmos… é o dia de encararmos pra onde estamos indo e nos perguntarmos se essa é mesmo a direção correta.

O mágico do judaísmo é que, junto com esse monte de expectativas, com a certeza de que nós vamos fazer besteira e vamos andar por caminhos errados, e vamos esquecer das lições da tradição, tem um otimismo infinito que aponta pra possibilidade de redenção, de re-invenção de quem nós somos, de t’shuvá, de retorno à melhor versão de nós mesmos, à possibilidade de atingirmos um sonho do qual já tínhamos esquecido, de escolhermos a vida frente a um cenário de caos, morte e destruição. Na parashá, em seu discurso aos israelitas, em apenas 10 versos, Moshé usa 8 vezes variações verbais de lashuv, retornar, da mesma raiz de t’shuvá [7]. 

Essa reta final antes de Rosh haShaná é nossa chance de aproveitarmos esse otimismo judaico, de retornarmos, de derrubarmos de verdade as nossas defesas e nos permitirmos fazer as perguntas que temos evitado, as perguntas que podem nos levar a mudar de opinião, a mudar de conduta, a mudar a nós mesmos. Dá medo, é algo pra qual a gente não se sente preparado, mas quando a gente tem coragem e pula nesse rio, é absolutamente libertador!

Que a chegada de 5781 permita que cada um de vocês se encontre e se transforme e se liberte e que seja o começo de um ano cheio de alegrias, de realizações e, principalmente, de saúde e de vida. 

Shabat Shalom e Shaná Tová!


[1]  http://5ponto8.fireside.fm
[2]  Deut. 30:19b
[3]  Deut. 29:13
[4]  Deut. 30:11-14
[5]  Pirkei Avot 2:5
[6]  Deut. 31:16-22
[7]  Deut. 30:1, 2, 3 (3x), 8, 9, 10