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quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Tu biShvat: Encontrando o futuro do planeta e do Judaísmo

Originalmente publicado na Revista da CIP, jan/2014 
Um midrash talmúdico[1] nos conta um caso que aconteceu a Honi, o fazedor de círculos, um agenciador de milagres judeu que viveu no primeiro século antes da Era Comum. Honi estava andando pela estrada quando viu uma pessoa plantando uma árvore de alfarroba. “Quanto tempo leva para esta árvore dar frutos?” ele perguntou. “Setenta anos” foi a resposta. Honi retrucou, “você tem certeza de que estará vivo daqui a setenta anos?”  A pessoa lhe disse: “quando eu cheguei ao mundo, encontrei árvores de alfarroba que meus antepassados tinham plantado para mim, agora sou eu quem planto estas árvores para os meus filhos.”
Eu gosto especialmente desta história e sua relação com Tu biShvat em dois níveis.  Em sua leitura literal, a história aponta para uma preocupação com o meio-ambiente e com o mundo que vamos deixar para as próximas gerações. Por muitos anos, a humanidade (ou pelo menos a chamada civilização ocidental da qual fazemos parte) se comportou como se efetivamente fôssemos senhores da natureza, como se o mundo existisse única e exclusivamente para nos servir.   Da mesma forma que os engenheiros da Torre de Babel, acreditávamos que nossas tecnologias podiam nos transformar em deuses com pleno domínio sobre o ambiente que nos cerca. Quando nossas ações produziam resultados indesejados, achávamos que mais tecnologia nos salvaria das conseqüências. Nas últimas décadas, no entanto, temos reconsiderado este excessivo otimismo com a tecnologia e temos nos dado conta de que, assim como aconteceu com a geração de Noé, nossa violência e falta de responsabilidade têm trazido resultados desastrosos para a vida neste planeta.
Se em Pessach, Shavuot e Sukot usamos o passado como marco de referência para entendermos nossa realidade e dedicamos Rosh haShaná e Yom Kipur para refletirmos sobre nossas ações no presente, Tu biShvat, o Ano Novo das Árvores, é um convite para nos encontrarmos com o futuro e para considerarmos o resultado, algumas vezes distante, das decisões que tomamos hoje. A história de Honi nos desafia a considerar que ações concretas estamos tomando, não apenas para minimizar nosso impacto negativo, mas também para criar condições concretas que permitam que as próximas gerações vivam em condições melhores que as nossas.
O segundo nível da história de Honi e sua conexão com Tu biShvat é relacionado, através da história deste feriado judaico, com o legado judaico que deixamos para as futuras gerações, a forma como a tradição judaica tem se adaptado aos tempos, garantindo sua relevância contínua, mesmo sob distintas condições históricas. A história desta data judaica mostra como algumas poucas linhas deram origem a ricos rituais, que ajudaram judeus de diferentes épocas a expressar seus valores, angústias e aspirações.
A primeira referência que temos para Tu biShvat está na Mishná, a primeira compilação escrita da tradição oral judaica, finalizada ao redor do ano 200 EC:
Há quatro [datas em que se comemora] anos novos: primeiro de Nissan é o ano novo dos reis e dos festivais; primeiro de Elul é o ano novo para o maasar[2] dos animais ­– [mas] de acordo com Rabi Elezar e Rabi Shim’on, [este ano novo] é em primeiro de Tishrei; primeiro de Tishrei é o ano novo dos anos e dos anos sabáticos e do jubileu, para plantar e para verduras; primeiro de Shvat é o ano novo das árvores de acordo com Beit Shamai, [mas] de acordo com Beit Hillel[3] é no dia quinze deste mês.[4]
Estes quatro “anos novos” refletem distintos ciclos religiosos e fiscais. Algumas destas datas eram usadas para a contagem dos anos dos reinados (primeiro de Nissan) ou dos anos especiais, como o ano sabático e do jubileu.[5]  No caso das árvores, seu ano novo definia a data de corte para o pagamento do maasar sobre as frutas, pago como imposto aos Levitas e doado aos necessitados. A opinião de Beit Hillel para a data do ano novo das árvores saiu vitoriosa e definiu até mesmo o nome como ela é conhecida hoje: Tu biShvat.[6] Com a destruição do Templo de Jerusalém no ano 70 EC, esta definição fiscal para Tu biShvat perdeu relevância e esta data entrou em um período de dormência de 15 séculos.
A expulsão dos Judeus da Península Ibérica no final do século XV pôs fim a um dos grandes ciclos de desenvolvimento cultural e material para o mundo judaico. Parte dos exilados se reassentou na Terra de Israel e, na cidade de Tzfat, o trauma da expulsão levou a um novo ciclo de desenvolvimento intelectual, desta vez ligado ao misticismo judaico. Estes estudiosos e praticantes da Kabalá se preocupavam especialmente com as interações dinâmicas da realidade Divina, expressa em dez emanações chamadas sefirot. O complexo relacionamento entre as sefirot podiam, de acordo com a Kabalá, ser inferido tanto através do estudo da Torá e suas referências metafóricas e alegóricas, quanto através da contemplação da natureza, que incluiria os mesmo símbolos alegóricos. Para estes místicos, o “ano novo das árvores” ao qual a Mishná fazia referência era também uma alegoria a duas árvores místicas presentes no começo da Torá: a Árvore da Vida e a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal[7].
Da mesma forma que criaram a cerimônia de Kabalat Shabat repleta de referências kabalistas, os místicos de Tzfat desenvolveram um ritual para comemorar Tu biShvat e, através de diferentes frutas, impactar positivamente a realidade Divina. Assim surgiu o seder Tu biShvat, que rapidamente se espalhou, mas ficou praticamente limitado ao mundo sefaradita.
No final do século XIX, quando o Movimento Sionista começava a se estabelecer, seu foco era o fortalecimento da relação física e espiritual entre o povo judeu e a Terra de Israel. Tu biShvat ganhou, assim, uma nova dimensão, celebrando a vegetação de Israel e sua conexão com cada judeu, onde quer que ele estivesse. Adotada pelo Keren Kayemet leIsrael (KKL), a idéia levou judeus de todo o mundo a contribuírem para  a plantação de árvores em Israel, especialmente durante o período de Tu biShvat.
Nas última décadas, uma nova transformação ocorreu na celebração de Tu biShvat, incorporando elementos das iterações anteriores. De um lado, a preocupação com justiça social enfatiza elementos que remontam à prática do maasar da época do Templo e sua preocupação com o bem estar das camadas mais vulneráveis da  sociedade. Além disso, uma nova consciência sobre os valores expressos de forma implícita e explícita através das nossas escolhas alimentares, empresta a linguagem mística, ainda que modifique seu tom e conteúdo. Esta mesma preocupação com o que ingerimos resgata parte das campanhas do KKL  e sua mensagem ambientalista. Desta forma, o “ano novo das árvores”, é mais uma vez transformado, permitindo que uma nova geração esteja engajada com os rituais judaicos e que encontre sua voz em uma tradição que é sua.
O encontro de Honi com a pessoa plantando o pé de alfarroba lhe ensinou que, para garantirmos que as futuras gerações encontrem a mesma riqueza que nós recebemos, é necessária nossa participação ativa na criação e preservação de recursos. Tu biShvat é uma ótima oportunidade para refletirmos sobre qual riqueza estamos deixando para nossos filhos, tanto com relação ao meio ambiente quanto na vida judaica, e para definirmos que ações concretas precisamos tomar para definir nosso legado.





[1] . Talmud da Babilônia, Ta’anit 23a.
[2] . Pagamento de 10% sobre a produção, praticado antes da destruição do Templo de Jerusalém.
[3] . Beit Shamai e Beit Hillel eram duas escolas de pensamento rabínico nos primeiros séculos da Era Comum, que constantemente apresentavam pontos de vista opostos.
[4] . Mishná Rosh Hashaná 1:1.
[5] . No ano sabático, observado a cada sete anos, a terra não era cultivada e permanecia repousando. No ano do jubileu, celebrado a cada sete ciclos de sete anos, as dívidas eram perdoadas e a terra voltava aos proprietários originais.
[6] . Os números em hebraico são comumente escritos em hebraico usando-se o valor númerico das letras. A palavra “tu” (טו) tem o valor númerico de 15; Tu biShvat, portanto, significa “15 de Shvat”.
[7] . Gen. 2:9. Na visão da Kabalá, estas duas árvores são, na verdade, derivadas de um único tronco. Por isto, na Mishná, a data é referida simplesmente como “ano novo da árvore”, no singular.