quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Cento e onze

(Postado originalmente no facebook)

Teve um episódio que marcou profundamente os 3.5 anos que morei em Israel. Aconteceu em junho de 1998. Um grupo de jovens dirigia pela estrada quando viram um velho andando pelo acostamento. Colocaram uma vara para fora do carro, para que o atingisse. O golpe foi fatal e o senhor morreu na hora.

Em um conflito em que atos de ódio viraram corriqueiros, esta notícia não chamou muita atenção. Os políticos fizeram suas condenações habituais da boca para fora e ninguém parou o que estava fazendo. Foi só quando meu rabino mencionou o absurdo da notícia em sua prédica de shabat, que eu me dei conta do efeito corrosivo de uma sociedade que se mantém indiferente ao sofrimento do Outro, especialmente um Outro que ela despreza.

Quando a humanidade do Outro não é, para mim, tão sagrada quanto a minha própria, entramos em um caminho sem volta em direção à deterioração dos nossos valores mais básicos. É uma postura que destrói nossa própria humanidade.

Me lembro de tudo isso vendo, agora, a anulação dos julgamentos dos 74 PMs no Massacre do Carandirú, que aconteceu quase seis anos antes do ataque em Beit Haggai. Pior que a anulação, foi a fala do relator do processo, desembargador Ivan Sartori, "Não houve realmente um massacre. O que houve foi estrito cumprimento do dever legal, obediência hierárquica e legítima defesa, inclusive." Depois de Hanna Arendt, o mundo deveria ter aprendido o que acontece quando há o "estrito cumprimento do dever legal" e "obediência hierárquica" sem questionar a moralidade das ordens dadas.

CENTO E ONZE pessoas morreram na chacina do Carandirú. Cento e onze pessoas que foram tratadas pior do que se trata gado que vai pro abate. Cento e onze almas humanas, ainda que parte da nossa sociedade insista em deseumanizá-las. Cento e onze famílias. Cento e onze histórias de vida que, eu tenho certeza, não foram nada fáceis. Cento e onze. Cento e onze.

Assim como os seis milhões e os trinta e três, há um risco em banalizar a violência quando focamos no número e deixamos de contar cada uma das suas histórias.... mas como alguém pode dizer que não houve massacre quando cento e onze foram mortos; como pode falar em legítima defesa quando todos os policiais saíram de lá com vida? Que justiça é essa?

Cadê as panelas? Cadê os milhões na rua? Onde está a indignação? Seguimos todos com nossas vidas, cumprindo os prazos dos trabalhos em que estávamos envolvidos. Não temos tempo para esta tolice....

Ellie Wiesel Z"L, disse certa vez que "o oposto do amor nãe é o ódio, é a indiferença; o oposto da arte não é a feiura, é a indiferença; o oposto da fé não é a heresia, é a indiferença; o oposto da vida não é a morte, é a indiferença."

Neste finalzinho de Elul, que o toque do shofar possa quebrar a casca que impede que nossos corações se solidarizem com as injustiças do Outro, permitindo que olhemos com carinho para nossa indiferença e que perguntemos quando vamos sair dela.

Shaná Tová.
Que a virada do ano seja uma oportunidade de recomeçar,
e de retornar a quem um dia quisemos ser.