Mostrando postagens com marcador 51-Nitsavim. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador 51-Nitsavim. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Dvar Torá: Tshuvá por nossa história coletiva (CIP)


No longínquo ano de 2014, eu trabalhava em uma escola judaica de São Paulo e levei uma turma de alunos do Ensino Médio para a Marcha da Vida, a visita aos campos de concentração e extermínio que ajudaram a praticamente exterminar a vida judaica em diversos países europeus durante a Segunda Guerra Mundial. Quando estávamos na Polônia, eu encontrei o Celso Zilbovicius, amigo desta casa e meu amigo pessoal, diretor pedagógico da Marcha dos Universitários, organizada pelo Fundo Comunitário de São Paulo. Eles tinham ido pela primeira vez a Berlim, que não fazia parte do nosso roteiro e eu lhe perguntei como tinha sido. “Eles se encontraram com seu passado e com toda a dor que dele deriva de forma verdadeira e corajosa”, ele me disse. “A partir de agora, nosso roteiro sempre passará a incluir a Alemanha” na Marcha. 
Esse encontro verdadeiro e corajoso com nossos erros tem nome na tradição judaica: “tshuvá”, que vem da raiz “lashuv”, “retornar”. Em hebraico contemporâneo, “tshuvá” quer dizer “resposta”, da mesma forma que, em português, nós dizemos que daremos “retorno” a algum questionamento mais complexo depois de averiguá-lo. Quando mencionamos “tshuvá” no do contexto judaico ao qual eu estou me referindo, é muito frequentemente traduzido como “arrependimento”, mas é um conceito muito mais complexo e estruturado do que o que normalmente entendemos por “arrependimento”.

O rabino Joseph Soloveitchik, a principal referência do Ortodoxia Moderna norte-americana no século XX carinhosamente chamado de “O Rav”, falaou assim sobre a tshuvá:
É um preceito cuja essência não está na realização de certos atos ou feitos, mas sim em um processo que às vezes se estende por toda uma vida, um processo que começa com o remorso, com o sentimento de culpa, com a crescente consciência do homem de que não há propósito para sua vida, com uma sensação de isolamento, de estar perdido e à deriva no vácuo, de falência espiritual, de frustração e fracasso - e o caminho a ser percorrido é muito longo, até que o objetivo do arrependimento seja realmente alcançado. O arrependimento não é uma função de um ato único e decisivo, mas cresce e aumenta de tamanho lenta e gradualmente, até que o penitente sofre uma metamorfose completa, e então, depois de se tornar uma nova pessoa, e só então, ocorre o arrependimento. [1]
Tshuvá é um tema central da preparação espiritual que nos leva a Rosh haShaná e a Iom Kipur e da liturgia das Grandes Festas. Também é, pelo menos gramaticalmente, importante na parashá desta semana, na qual temos 8 variações verbais de “lashuv” em apenas 10 versos [2]. Certamente, não é por coincidência que os rabinos estruturaram o ciclo de leituras da Torá de forma que parashat Nitsvamim caísse quase sempre no Shabat antes de Rosh haShaná.

Hoje eu queria propor um exercício um pouco diferente daquele que vamos fazer em Rosh haShaná e Iom Kipur. Lá, o foco será, na maioria das vezes, os erros que cometemos individualmente, as pessoas que ofendemos pessoalmente, as formas como nos afastamos da pessoa que gostaríamos de ser. Hoje, eu queria que pensássemos em um processo mais coletivo de tshuvá, de pensarmos como comunidade, como sociedade, como nação, as formas como erramos no nosso passado e a forma como, em muitos destes casos, a tshuvá verdadeira e profunda, como definiu o Rav Soloveitchik.

Como vocês devem saber, eu escuto muitos podcasts e nas últimas semanas, uma coincidência de efemérides me levou a pensar em nossos erros históricos cujos processos de tshuvá ainda estão no início: de um lado, os 200 anos da Independência do Brasil, em especial quando avaliados em perspectivas distintas daquelas que eu aprendi na escola — olhando para estes processos a partir do olhar de mulheres, de negros, de indígenas e de outros grupos cujas experiências históricas foram quase apagadas mas que agora começam a re-aparecer [3]. De outro lado, a semana que vem marcará 30 anos do Massacre do Carandirú, no qual 111 presos foram brutalmente assassinados, sem que nenhuma pessoa tenha ido para a prisão. Estes são dois temas caros para mim, que talvez não sejam para vocês, mas podemos todos concordar que merecemos um encontro profundo e verdadeiro com nosso passado, que este processo será dolorido e nos causará constrangimento, mas que ao final dele sairemos melhores e mais fortes. Guardadas as proporções, o exemplo da Alemanha sempre ecoa nos meus ouvidos quando penso neste tema — certamente não foi fácil para um geração de alemães que não tinham nascido quando a Shoá foi perpetrada por seus pais, avós e bisavós falar dos erros como se fossem pessoalmente deles, mas nenhum processo que levasse a menos do que isso levaria à transformação necessária.

A rabina Danya Ruttenberg publicou há algumas semanas um livro sobre este assunto entitulado “On Repentance and Repair”, “Sobre o Arrependimento e o Reparo”, no qual ela se baseia nos ensinamentos de Maimônides sobre a tshuvá para analisar o momento que a sociedade norte-americana vive hoje. Em suas palavras:
O trabalho de se arrepender completamente é o trabalho de transformação. É o trabalho de enfrentar histórias falsas e se envolver com a realidade dolorosa. É o trabalho de estar aberto para nos ver como realmente somos, de entender que as necessidades e a dor de outras pessoas são pelo menos tão importantes - se não mais - do que as nossas. É sobre descobrir como ser o tipo de pessoa que vê o sofrimento dos outros e assume a responsabilidade por qualquer papel que possamos ter em causar isso. É sobre reconhecer sua responsabilidade - reconhecer quem fomos e o que fizemos, e também reconhecer a pessoa que somos capazes de nos tornar.
Na estrutura que ela adota, fortemente baseada na que propôs Maimônides, há cinco etapas no processo de tshuvá:
  1. Reconhecimento do erro e da sua responsabilidade por ele. Aqui, a rabina Danya destaca que é fundamental ser o mais específico possível e indicar porque essa ação machucou outras pessoas. Pedidos genéricos de desculpas, sem indicar o motivo ou sem reconhecer nossa culpa não levam ao processo de tshuvá verdadeiro. Nas suas palavras: “Uma pessoa não pode se arrepender se não entender por que o que aconteceu é realmente um grande problema – por que a pessoa que foi magoada está realmente ferida.” O exercício de empatia, de reconhecer uma situação da perspectiva de outra pessoa, que não necessariamente tem os mesmos valores que você, e entender como tuas ações a machucaram não é trivial mas é profundamente necessário, como reconhecemos quando somos nós as vítimas da ofensa.
  2. Começar a mudar. Nas palavras de Maimônides: “O que é arrependimento completo? O [caso de] alguém que tinha o poder de repetir uma transgressão, mas se separou dela e não o fez porque se arrependeu” [4]. Mudar sempre é difícil. Carregamos conosco nossos vícios, nossas manias — nos acostumamos com eles, não queremos abrir mão de quem fomos até agora. No entanto, se não nos transformarmos, continuaremos tomando as mesmas decisões e cometendo os mesmos erros.  Não há processo verdadeiro de tshuvá sem uma mudança de algo significativo em quem somos. Na época de Maimônides, as ferramentas para esta etapa incluíam a reza em súplica, a doação financeira, colocar-se em situação de vulnerabilidade — como ir morar em outro lugar — para desinflar o ego e permitir que a mudança ocorresse. A rabina Danya propõe uma atualização desta lista, adicionando terapia, meditação, e se educando sobre os temas relacionados à ofensa para garantir uma compressão mais sofisticada e complexa do que está em jogo. 
  3. Restituição e Aceitação das Consequências. Maimônides listou cinco categorias nas quais a restituição deveria ser paga em casos de dano físico: pela ofensa em si mesma, pela dor, pelos custos médicos, pelo tempo sem trabalhar e pela humilhação.  Para cada uma destas categorias, poderíamos pensar qual sua melhor aplicação em cada caso. Se uma pessoa, em função de um ato causado por outro, perdeu a oportunidade de continuar na sua área profissional, por exemplo, a restituição pode incluir o custo de treiná-la em outra profissão, de tal forma que ela possa voltar a ter um emprego.
  4. Desculpas. Mesmo depois que uma pessoa fez “restituição da dívida monetária, ela é obrigada a apaziguar [a pessoa prejudicada] e implorar seu perdão. Mesmo que ela só tenha ofendido a outra pessoa verbalmente, ela deve apaziguar e implorar até que [a parte prejudicada] a perdoe.” De acordo com a rabina Danya, “um verdadeiro pedido de desculpas não se destina à pessoa que foi ferida, mas é dada em relação a ela. Requer vulnerabilidade e escuta empática; exige uma oferta sincera de arrependimento e tristeza por suas ações. Requer compreensão de quando aproximar-se de uma vítima pode prejudicá-las ainda mais e navegar por isso com sensibilidade. O objetivo não é fazer mais danos, mas fazer um trabalho que seja de cura, de reparação. Isso significa que as necessidades da vítima devem sempre estar no centro do processo.”
  5. Tomando decisões diferentes. O processo de tshuvá só está completo quando, apresentado com um contexto semelhante, tomamos decisões distintas. Somos frutos do hábito e, sem querer, tomamos decisões muito parecidas uma vez depois da outra. Mudar esta forma de agir exige intencionalidade e reconhecimento do impacto das nossas ações.
A rabina Sharon Brous, de cuja comunidade eu tive a honra de fazer parte em algum momento, sempre diz que o judaísmo é paradoxalmente exigente e otimista ao mesmo tempo. De um lado, nos aponta com frequência a necessidade de tshuvá, de transformação profunda; de outro, sempre acredita no nosso potencial de nos transformarmos e oferece inúmeras oportunidades para fazê-lo. Neste sentido, a rabina Danya cita Rav Nachman de Brestlav: “Se você acredita que pode causar danos, acredite que pode consertar. Se você acredita que pode machucar, acredite que pode curar.”

Que estas Grandes Festas sejam uma experiência transformadora para todos nós, individual e coletivamente e que em 5783 nos encontremos com a versão de nós mesmos que sempre sonhamos ser.

Shabat Shalom! Shaná Tová!


[1] Pinchas Pelo, “On Repentance: The Thought and Oral Discourses of Rabbi Joseph Dov Soloveitchik”, p. 75
[2] Deut. 30:1, 2, 3 (3x), 8, 9, 10
[4] On Repentance and Repair, p. 52/381 (e-book) 

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Dvar Torá: Encontrando razão naquele de quem discordamos (CIP)


Dá para acreditar que já estamos naquela época do ano de novo?

Parece que foi ontem que saímos do Teatro Artur Rubinstein, onde tínhamos feito o primeiro serviço de Iom Kipur conjunto Hebraica-CIP, a primeira vez que nossos serviços das Grandes Festas eram transmitidos online, a primeira vez que passávamos Iom Kipur sem a comunidade presente fisicamente, sem aquele mar de talitot no final da Neilá.

Parece que foi ontem, mas já faz quase um ano — viramos as doze folhinhas do calendário judaico e estamos às vésperas das Grandes Festas de novo.

Desta vez, nem tudo será novidade; nem tudo será a primeira vez na história — e, ainda assim, teremos novos dilemas a resolver. O primeiro dia de Rosh haShaná, neste ano, cai no 7 de setembro, feriado nacional e data prevista para manifestações ideologicamente antagônicas, uma no centro da cidade e outra na avenida Paulista. Todos os dias, nossos jornais estampam notícias sobre possível violência de lado a lado e a preocupação do que pode acontecer casos estes dois grupos se encontrem. 

Há um texto lindo de Rav Nachman de Brestlav, um mestre chassídico que viveu na Polônia no final do Século 18, no qual ele diz que a divergência é ingrediente fundamental para a criatividade [1]. Na sua leitura, seria a divergência que criaria o espaço vazio no qual novas criações pudessem ocorrer, da mesma forma que a retração Divina criou o espaço vazio no qual a criação do mundo pôde ocorrer, de acordo com o mito luriânico da Criação.

No encontro de sectarismos que vivemos hoje, no entanto, a divergência dá origem à negação da legitimidade de outra posição que não a sua e ao desejo de silenciar esta outra forma de ler a realidade. Cada um de nós (e, sim, a questão do sectarismo e da demonização do outro atinge cada um de nós) escuta este comentário e comenta “mas você não pode comparar a minha postura com a que o outro lado tem, eles representam a negação de todos os valores nos quais acredito!”

A parashá desta semana começa conclamando toda a comunidade dos israelitas. De uma forma paradoxal, afirma logo nos seus primeiros versos: “vocês estão aqui todos hoje perante ה׳ seu Deus, os líderes das tribos, seus anciões, oficiais, todo homem de Israel, suas crianças e mulheres e seu estrangeiro, do cortador de lenha ao carregador de água.” [2] Claramente a comunidade toda, mas por que a imagem do cortador de lenha ao carregador de água?!

Eu gosto da explicação proposta pelo rabino Bradley Shavit Artson [3]:  para quem o cortador de lenha indica alguém sem maior respeito pela dignidade daqueles com quem se relaciona, que vê em seu oponente alguém a ser destruído, com argumentos ou com uso da força, se for necessário. Os carregadores de água, por outro lado, simbolizariam pessoas com a capacidade de enxergar em todas as opiniões mananciais de inspiração, potencial para que aprendamos algo dela. Em nossos equilíbrios internos, todos nós temos um pouco de cortadores de lenha e um pouco de carregadores de água. Que aspecto nos permitimos salientar em cada momento? Isso depende muito do contexto social no qual vivemos… em momentos polarizados como estamos vivendo hoje, o lado cortadores de lenha acaba ganhando força e os conflitos ficam mais acirrados. Cabe a cada um de nós, então, criar as condições para mudar este contexto e permitir que nos comportemos mais como carregadores de água. Que nos permitamos aprender algo da manifestação à qual não iríamos mesmo se ela não acontecesse em Rosh haShaná; identificar algo positivo na conduta da qual discordamos fundamentalmente. Só assim, como preconizado por Rav Nachman, a divergência dará espaço à criatividade.

O curioso é que a divergência destas manifestações se dá, ao menos no nível das narrativas, sob o mote de uma causa comum: a defesa da democracia brasileira. Nossa parashá termina com um um curioso desafio: “veja, eu te ofereço hoje a vida e o bom, a morte e o ruim (…) escolha a vida.” [4] Eu não conheço ninguém que, dadas estas opções, decidisse optar pela morte e pelo ruim e, mesmo assim, as pessoas fazem opções distintas todos os dias. O que significa escolher a vida ou defender a democracia pode ser radicalmente diferente, dependendo do nosso interlocutor. Assumir que decisões distintas das nossas impliquem necessariamente um conjunto de valores deturpados ignora a possibilidade de que estas decisões simplesmente reflitam distintas leituras do que seja vida, bom, morte e ruim ou do que signifique defender a democracia brasileira e o direito a uma sociedade na qual diferentes concepções possam conviver. 

Estamos na reta final para Rosh haShaná, o dia em que começamos a nos confrontar com nossa própria mortalidade e com as consequências dos nossos atos. Que aproveitemos os próximos dias para exercitar nosso lado carregador de água e nossa capacidade de discordar com civilidade e respeito e de aprender até mesmo de quem discordamos.

Shabat Shalom e Shaná Tová!



sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Dvar Torá: É difícil e maravilhoso ser judeu (CIP)

Eu estou há alguns meses envolvido em um projeto concebido pelo presidente da CIP, o Mario Fleck, chamado 5.8. O primeiro braço do projeto a virar realidade foi um podcast, também chamado 5.8, que eu tenho a honra de comandar junto com a Laura Trachtenberg Houser [1] — quando terminar o shabat, vai lá no teu tocador favorito de podcasts, que pode também ser o Spotify e procura 5.8 e você vai nos encontrar e vai poder escutar os episódios publicados a cada duas semanas, sempre às 3as feiras. Por enquanto, tem só um episódio publicado, mas na próxima 3a feira, dia 15/09, segundo episódio vai ao ar. E o melhor é que você pode escutar quando quiser, e até escutar os episódios anteriores…

A partir do segundo episódio, a gente vai começar uma série pra explorar o que quer dizer ser judeu e vamos conversar com gente normal, como você e como eu, e também com alguns intelectuais e especialistas. 

Ser judeu nem é sempre fácil. O judaísmo tem a mania irritante de exigir que nossas ações e as nossas palavras estejam alinhadas, que sejamos coerentes com os valores que dizemos ter. Se o texto diz, como a nossa parashá diz, “escolha a vida” [2] e a gente afirma levar o texto a sério, a gente não pode reunir centenas de pessoas pra passarem juntos as rezas de Rosh haShaná e Iom Kipur. Se o texto diz, como a nossa parashá diz, que o pacto entre o povo judeu e Deus não foi firmado somente com a geração de Moshé, mas também com todas as gerações posteriores [3] e, como a nossa parashá também diz, que a tradição judaica não está distante nem nos céus, mas que está próxima e que devemos agir de acordo com seus valores [4], e a gente afirma que este é um texto sagrado e verdadeiro, a gente não pode tratar a cultura judaica como se fosse algo que tenha ficado congelado no passado ou que não tenha relacionamento com as nossas ações.

Ser judeu é difícil e estabelece expectativas com relação ao nosso comportamento. Expectativas que têm basicamente a ver com a forma como tratamos uns aos outros, como protegemos os vulneráveis, como defendemos o planeta. Como dizia o rabino e filósofo Abraham Joshua Heschel “Você não pode adorar a Deus e então olhar para um ser humano, criado por Deus à Sua imagem, como se esse ser humano fosse um animal.”

De algum jeito, ser judeu e viver com a expectativa de que nos comportemos como gente no lugar em que a humanidade estiver em falta [5] é mais ou menos como tentar escrever uma redação com um pai olhando a tela do computador por cima do seu ombro e você com medo de que ele vai apontar todos os erros gramaticais do teu texto…. é viver com medo de errar, sabendo que o erro é praticamente inevitável. Na parashá desta semana, Deus já avisa Moshé que o povo vai fazer besteira e vai andar por caminhos errados e até pede pra Moshé colocar um poema na Torá que sirva de lembrete pra quando esse momento chegar [6].

O final do ano judaico vai chegando, o processo de cheshbon nefesh, de avaliação verdadeira de quem realmente fomos em 5780 vai tomando corpo, e o medo desse encontro com Deus, com nós mesmos, vai crescendo dentro da gente. Se a gente realmente leva a tradição a sério, Rosh haShaná, que começa exatamente daqui a uma semana, tem que ser mais do que a festa da maçã com mel, da cabeça de peixe e do toque do shofar. Rosh haShaná é o dia de visitarmos as partes de nós mesmos, das nossas vidas e das nossas condutas, que não revelamos para mais ninguém, muitas vezes nem para nós mesmos… é o dia de encararmos pra onde estamos indo e nos perguntarmos se essa é mesmo a direção correta.

O mágico do judaísmo é que, junto com esse monte de expectativas, com a certeza de que nós vamos fazer besteira e vamos andar por caminhos errados, e vamos esquecer das lições da tradição, tem um otimismo infinito que aponta pra possibilidade de redenção, de re-invenção de quem nós somos, de t’shuvá, de retorno à melhor versão de nós mesmos, à possibilidade de atingirmos um sonho do qual já tínhamos esquecido, de escolhermos a vida frente a um cenário de caos, morte e destruição. Na parashá, em seu discurso aos israelitas, em apenas 10 versos, Moshé usa 8 vezes variações verbais de lashuv, retornar, da mesma raiz de t’shuvá [7]. 

Essa reta final antes de Rosh haShaná é nossa chance de aproveitarmos esse otimismo judaico, de retornarmos, de derrubarmos de verdade as nossas defesas e nos permitirmos fazer as perguntas que temos evitado, as perguntas que podem nos levar a mudar de opinião, a mudar de conduta, a mudar a nós mesmos. Dá medo, é algo pra qual a gente não se sente preparado, mas quando a gente tem coragem e pula nesse rio, é absolutamente libertador!

Que a chegada de 5781 permita que cada um de vocês se encontre e se transforme e se liberte e que seja o começo de um ano cheio de alegrias, de realizações e, principalmente, de saúde e de vida. 

Shabat Shalom e Shaná Tová!


[1]  http://5ponto8.fireside.fm
[2]  Deut. 30:19b
[3]  Deut. 29:13
[4]  Deut. 30:11-14
[5]  Pirkei Avot 2:5
[6]  Deut. 31:16-22
[7]  Deut. 30:1, 2, 3 (3x), 8, 9, 10


Quando a escolha pela vida é mais do que uma frase bonita

“Escolham a vida, para que você viva junto com a sua descendência” [1]. Poucas vezes um verso da Torá foi tão relevante para experiência de toda a humanidade. Há praticamente seis meses, temos adotado práticas de distanciamento social, limitado nossas interações físicas com as pessoas mais próximas; nos acostumado a conduzir aulas, reuniões e serviços religiosos pela tela do computador, com todos os desafios envolvidos. A verdade é que ninguém aguenta mais! Ansiamos pela volta do contato humano, pela possibilidade de darmos abraços apertados em nossos amigos, de sairmos para beber uma cerveja sem medo ou de ir tomar um sorvete na esquina sem receio de quem mais estará na fila.

Nessa época do ano judaico, esses anseios se tornam ainda mais intensos. Na próxima sexta-feira à noite, comemoraremos Rosh haShaná, o Ano Novo Judaico. Em geral, além das rezas e do toque do shofar que nos ajudam a aprofundar o processo de reflexão e introspecção, as Grandes Festas são também oportunidades para vermos amigos com quem não estamos sempre em contato, de nos sentirmos parte de uma grande comunidade. Neste ano, as coisas serão muito diferentes: não teremos o toque do shofar no primeiro dia de Rosh haShaná (que cai no Shabat) e os serviços serão a distância, vivenciados pela tela do celular, do computador ou da televisão. Grandes e significativas mudanças para as quais muitos de nós não estávamos prontos. Em um ano de tantas situações inusitadas com as quais nunca imaginamos, torcíamos para que as Grandes Festas nos trouxessem um pouco do conforto dos espaços conhecidos -- e é com frustração que nos demos conta de que não seria assim. 

Poucas linhas antes da frase com que abri este comentário, encontramos este outro verso da nossa parashá: “certamente, esta instrução que eu te ordeno hoje não está além da tua capacidade ou distante. Ela não está no céu, que você pudesse dizer ‘quem vai subir lá no céu e buscá-la para que a escutemos e sigamos?’” [2] O judaísmo se destaca pela forma como valoriza a ação; seu objetivo não é que apenas filosofemos sobre seus ensinamentos, mas que exerçamos na prática seus valores nas nossas decisões cotidianas. De que valeria falarmos nas nossas prédicas sobre a importância de escolhermos a vida ao mesmo tempo em que arriscássemos nossa comunidade, reunindo centenas de pessoas em um mesmo espaço enquanto a pandemia ainda não está controlada? A incoerência entre nossa fala e nossa conduta seria óbvia e negaria tudo que sempre ensinamos. Acreditamos de fato na importância de valorizarmos e escolhermos a vida e que nossas ações devem refletir esta crença.

Por tudo isso, e apesar de também já estarmos cansados do distanciamento físico e saudosos de cada membro da nossa comunidade, de querermos repetir a prática de anos anteriores e nos despedirmos calorosamente de cada um de vocês na saída dos serviços religiosos, decidimos que os serviços seriam apenas a distância. Ao longo dos últimos meses, nos dedicamos para repensar a liturgia que utilizaremos, o formato de cada um dos serviços, a linguagem mais adequada para rezas mediadas pelas telas, tudo pensado para que cada um de nós consiga atingir a mesma espiritualidade que conseguia nos serviços presenciais. 

A tradição judaica nos ensina a reviver nossos momentos históricos, apesar do tempo e da distância. Em Pêssach, não apenas nos lembramos da saída de Mitsrayim, mas saímos dos nossos lugares estreitos junto com nossos antepassados; em Shavuot, voltamos a receber a Torá todo ano, juntamente com Moshé. Neste ano, também em Rosh haShaná e em Iom Kipur venceremos o tempo e a distância e verdadeiramente nos veremos frente ao Dia do Julgamento e da Expiação, analisaremos nosso ano com Deus e refletiremos sobre nossos sucessos e nossas falhas, onde estamos orgulhosos de 5780 e quais aspectos preferíamos que nunca tivessem acontecido. 

Em uma terceira passagem da parashá desta semana, Deus anuncia que o pacto contido na Torá foi firmado com todo o povo, tanto com quem estava presente quanto com quem não estava lá [3]. Com responsabilidade e escolhendo a vida, este será o nosso desafio este ano: estarmos todos conectados, todos presentes, todos nos sentindo parte do mesmo pacto, ainda que estejamos cada um nas nossas casas.

Se você ainda não fez sua inscrição para Rosh haShaná e Iom Kipur com a CIP, corra e faz agora! O link é https://cip.org.br/grandesfestas/

Shabat Shalom!

[1] Deut. 30:19b
[2] Deut 30:11-12
[3] Deut. 29:9-14