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sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Dvar Torá: A invisibilidade de quem nos serve (CIP)


Esta semana, eu estava dando uma aula quando precisei parar e buscar uma analogia para algo que eu estava tentando explicar. Minha escolha, eu confesso, não foi das mais felizes e eu terminei comparando o acelerar quando vemos o sinal amarelo, um hábito que, pela sua frequência no Brasil, acabou se transformando quase na regra de trânsito, com o fato de que alguns costumes judaicos, quando praticados e repetidos por muitas gerações, ganham força quase de lei. מנהג אבותינו, minhag avotêinu, é o termo técnico para quando isso acontece.

Quem já esteve neste papel de explicar um conceito complexo sabe que, muitas vezes, estabelecer uma analogia com algo conhecido ajuda muito para que as pessoas consigam começar a compreender do que falamos. No entanto, a busca por analogias e metáforas faz parte, não apenas de como explicamos conceitos complexos mas também de como os entendemos. Na Introdução do seu livro “Metaphors we live by”, um clássico no assunto, George Lakoff e Mark Johnson afirmam que “o nosso sistema conceitual ordinário, em termos daquilo que pensamos e agimos, é fundamentalmente metafórico em essência. Os conceitos que governam nossos pensamentos não são apenas assunto do intelecto. Eles também governam o funcionamento da rotina, até os detalhes mais mundanos.” 

Quando pensamos em Deus, as metáforas são essenciais. A pastora Carolyn Jane Bohler afirma a este respeito: “Ainda que nossas metáforas de Deus não sejam descrições formais, não há forma de pensar em Deus sem metáforas. Nossas metáforas apontam para o Deus no qual acreditamos e o apontar é vivenciar. Se “apontamos”, emocional, mental e espiritualmente para Deus como Aquele que conforta, então é provável que vivenciemos conforto. Se apontamos para Deus como Capataz, podemos ter a experiência de exigências de Deus.”

Os Rabinos da antiguidade reconheciam o poder das metáforas (ou משל, mashal, em hebraico) e abusavam delas nos seus midrashim. Uma das metáforas mais recorrentes para falar de Deus nos textos rabínicos era falar de Deus como Rei, uma metáfora que, por sinal, se repete na fórmula clássica das bençãos: ברוך אתה ה׳, אלוהינו מלך העולם, Baruch Atá Adonai, Elohêinu Mélech haOlám, "Você é Abençoado, ה׳, nosso Deus, Rei do Universo". Nestes midrashim rabínicos pensar em Deus como Rei, lhes ajudava a pensar como se relacionar com o Divino, como honrar a Deus, mas também como entender as formas como Deus se relaciona com a humanidade. Será que somos o filho preferido de um Rei amoroso, que desculpa todos os erros sem punição? Ou será que somos o filho esforçado de um Rei distante que, apesar das nossas tentativas, nunca responde aos nossos pedidos? Quem mais vive no entorno do Rei? Algumas vezes, encontramos מלאכי השרת, malachei haSharêt, os anjos da Corte Celestial, que vivem ao redor de Deus e que, com frequência, por ciúmes tentam sabotar os esforços humanos. Outras vezes, encontramos o Rei na companhia do seu mordomo, um empregado especial que goza de toda a intimidade do Rei. O Rei se troca na sua frente, lhe faz os pedidos mais descabidos, pensa em voz alta sem se importar que o mordomo esteja ouvindo.

Um professor querido, o filósofo Moshe Halbertal, destaca que esta intimidade da qual desfruta o empregado não vem, necessariamente, de um lugar de dignidade, de “איש אל רעהו”, ish el re'êhu, "de uma pessoa com outra", e sim de um lugar de invisibilidade, como se o empregado fosse um móvel, uma “coisa” que está no quarto. De uma forma sutil, a mesma intimidade que eleva  a dignidade quando dirigida a uma pessoa querida pode ter efeito oposto e causar humilhação quando, na sua raiz, está a invisibilidade do outro.

Na parashá desta semana, talvez tenhamos uma destas situações em que a intimidade da qual desfruta o empregado pode ser entendida como evidência da sua dignidade ou da falta dela.

Após o falecimento de Sará, Avraham, com a idade já avançada, decide que é hora de buscar uma companheira para seu filho Itschak. Assim está escrito na Torá:
E Avraham disse ao servo sênior da sua casa, que tinha o comando de tudo o que ele possuía: “Ponha tua mão debaixo da minha coxa e te farei jurar por ה׳, o Deus do céu e o Deus da terra, que você não tomará uma esposa para meu filho das filhas dos cnaaneus, entre os quais eu habito, mas irá para a terra onde nasci e arranjará uma esposa para meu filho Itschak.”
Esta é claramente uma função importante — encontrar uma parceira para o filho através do qual, Deus garantiu a Avraham, se dará a continuidade de suas bençãos. E esta função, de imensa centralidade, Avraham confere ao seu servo mais experiente, aquele que liderava a equipe. Toda minha vida eu aprendi que este servo era Eliezer — mas o fato é que o texto mantem o “servo sênior de sua casa, que tinha o comando de tudo o que [Avraham] possuía” sem nome. O servo vai a Nahor, encontra Rivcá, negocia os termos do seu casamento com Itschak, a traz de volta. Em resumo: desempenha com excelência a função que Avraham havia lhe atribuído. E mesmo assim não sabemos o seu nome.

É a tradição rabínica, incomodada com a falta do nome do servo sênior, que  o identifica, em um midrash, como Eliezer. A única vez que o nome de Eliezer aparece na Torá é em uma reclamação de Avraham, pedindo a Deus um descendente para que suas posses não sejam todas entregues a Eliezer. 

Será que Eliezer era, para Avraham, como o móvel no quarto do Rei? Alguém com quem ele podia contar para desempenhar as tarefas mais sensíveis mas que não merecia o tratamento de dignidade com que ele recebeu, por exemplo, os três homens que vieram visitá-lo, a quem chamou de “meus senhores”, lhes lavou os pés e lhes serviu comida? Será que a intimidade com o mestre veio às custas de ser percebido como um igual, alguém que merece exatamente o mesmo tratamento digno?

Vivemos uma época da mecanização de todos os nossos relacionamentos. Achamos que somos amigos de pessoas com quem nunca trocamos uma palavra porque é isso que as plataformas das redes sociais nos dizem. Por isso, contamos nossos amigos aos milhares… Ao mesmo tempo, a tecnologia nos afastou das pessoas com quem nos relacionamos. Antes, encontrávamos o vendedor da loja cara-a-cara, quem sabe sentávamos ao seu lado na sinagoga. Tínhamos com ele uma relação respeitosa, sabíamos que o tom da conversa teria impacto em outras instâncias de relacionamento. Mesmo antes das redes sociais, isso mudou e passamos a ter relações profissionais e comerciais com pessoas completamente fora dos nossos círculos sociais, a nos relacionar com atendentes de call center com os quais não desenvolvíamos o mesmo tipo de relacionamento respeitoso. Nas redes sociais, a distância e a possibilidade do quase-anonimato permitiram que desenvolvêssemos condutas ácidas que acabaram corroendo também o tecido social fora do mundo virtual.

Quantas vezes não cometemos, também nós, o pecado do Rei e tratamos aqueles que nos servem de uma forma muito distinta daquela que reservamos para as pessoas que consideramos “iguais”? Quantos de nós sabem o nome dos porteiros do seu prédio, da equipe de limpeza da sua empresa? Quantos de nós tratam o direito da empregada doméstica ao descanso com o mesmo afinco com que tratam do seu direito às férias? Quantos de nós ficaremos irritados ao receber uma mensagem profissional  não urgente no celular no meio do feriado ou no meio da noite mas não pensamos duas vezes antes de enviar mensagens muito parecidas para nossas equipes?

Hoje nós homenageamos as quase 90 pessoas que compõem a equipe desta casa e eu preciso confessar que sou culpado de várias dos pecados aos quais fiz referência acima: por exemplo, não saber o nome de vários deles e mandar mensagens em horários inapropriados ao mesmo tempo que me irrito quando fazem isso comigo. Muito além dos rabinos, chazanim e músicos que vocês vêem sempre na tela, há uma grande equipe — grande em número, em competência e em dedicação — que constrói esta comunidade e que nem sempre recebe o merecido crédito. Em breve os nomes de cada um deles aparecerão na tela e eu peço para que vocês tomem o cuidado de lerem-no com atenção, com o carinho que cada um de nós merece. 

Hoje nós queremos dizer à nossa equipe: nós te enxergamos, nós te respeitamos e somos orgulhosos por poder contar com cada um de vocês no nosso time.
Pela imensa dedicação de cada um de vocês, nosso imenso תודה רבה, todá rabá, muito obrigado e um Shabat Shalom muito carinhoso.


[1] George Lakoff e Mark Johnson, Metaphors we live by (2003), p. 3
[2] Carolyn Jane Bohler, God the what? What our Metaphors for God Reveal about Our Beliefs in God (2008), p.xiii.
[3] Gen. 24:1-3
[4] Gen. 15:2



sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Dvar Torá: Os Tempos Estão Mudando; Nossas Respostas Precisam Mudar (CIP)


Um velho ditado diz que estamos sempre lutando a batalha do ano passado. Como se a vida fosse um longo video-game, vivemos identificando padrões e atuando de acordo com o que aprendemos das nossas experiências passadas. As eleições nos Estados Unidos são um bom exemplo disso - depois de preverem a vitória de Hillary Clinton em 2016, os institutos de pesquisa se adequaram para não repetir os mesmos erros: corrigiram a amostragem para incluir o nível de instrução e recalibraram os pesos da amostra. Mesmo assim, erraram feio nas eleições de dez dias atrás: previram vitórias avassaladoras dos democratas, tanto para a presidência quanto para a Câmara e o Senado. Tudo indica que Biden tenha efetivamente vencido a eleição presidencial, mas  por uma margem muito menor que a prevista, e os resultados das eleições legislativas foram bastante frustrantes para os democratas. Ainda que os problemas de amostragem de 2016 não tenham se repetido, novos desafios apareceram, para os quais os institutos não estavam preparados.

Em muitos outros cenários, nossas condutas pessoais repetem essa abordagem de nos prepararmos mais para as situações que enfrentamos no passado do que para aquelas que estão à nossa frente.
Há pouco mais de vinte anos, eu cursei uma disciplina no meu mestrado em economia  em Israel chamada “Escolhas Dinâmicas em Cenários Ambíguos”. Parece um curso desenhado especialmente para o contexto em que vivemos hoje, em que situações inéditas se apresentam o tempo todo, desafiando a forma como tínhamos nos preparado olhando para trás.

E o pior acontece quando os mesmos desafios se apresentam e, mesmo assim, continuamos despreparados. Na mesma época em que fazia o curso de economia do qual falei, aconteceu um episódio que marcaria minha experiência com a sociedade israelense. Dois jovens que passavam em uma van por uma estrada pouco movimentada, viram um idoso andando pelo acostamento. Colocaram um pedaço de madeira para fora do carro de forma que ele atingisse a cabeça do idoso a alta velocidade. O idoso morreu na hora. A notícia saiu nos jornais, mas continuamos todos com nossas rotinas, sem nos importarmos com o que ela significava. Naquela sexta-feira, o rabino Meir Azari nos alertou a todos do risco de nos transformarmos em uma sociedade que aceita este tipo de brutalidade como se fosse normal. 

No último domingo, a ciclista e ativista Marina Kohler Harkot foi atropelada enquanto andava na sua bicicleta na Avenida Paulo VI em Pinheiros. O motorista do carro que a atingiu fugiu sem dar socorro. Marina morreu no local [1]. A verdade é que eu só ouvi falar deste incidente ontem, e olha que eu checo sites de notícias de forma compulsiva ao longo do dia. Simplesmente, não era uma das notícias no meu radar. Letícia Lindenberg Lemos, colega de Marina no ciclo-ativismo e no Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, disse a respeito do acidente: “Precisamos avançar na ideia de que somos todos seres humanos. Quando a pessoa que atropelou a Marina foge, é um sinal de que a humanidade está fugindo dessa pessoa. Não tem empatia pelo próximo para dar o mínimo de socorro.” [2] A verdade é que a humanidade foge de todos nós que seguimos com nossas vidas como se Marina não tivesse sido morta de forma covarde, assim como se tantas outras pessoas são todos os dias na nossa cidade.

O principal suspeito de atropelá-la se apresentou à polícia dois dias depois do ocorrido, quando já estava valendo a lei que proíbe prisões nos cinco dias anteriores a eleições. Vivemos resolvendo os problemas do passado sem nos darmos conta das questões que enfrentamos no presente. Em algum momento, era comum que autoridades prendessem apoiadores de oponentes políticos para impedir que eles participassem das eleições. Como a democratização do voto, esta prática se tornou menos comum e hoje poderíamos estabelecer proteções que fossem concedidas caso-a-caso. No entanto, a regra criada para proteger a população dos desmandos de seus governantes acabou se virando contra nós mesmos e acabou protegendo a falta de empatia e de socorro.

Na parashá desta semana, após a morte de Sará, Avraham trata da compra de meharat hamachpelá, a caverna em que ela seria enterrada. Na negociação entre Avraham e Efron, o hitita a quem a caverna pertencia,  Avraham diz: “נָתַתִּי כֶּסֶף הַשָּׂדֶה קַח מִמֶּנִּי וְאֶקְבְּרָה אֶת־מֵתִי שָׁמָּה”, “eu te dei o dinheiro pelo campo, tome de mim e eu enterrarei minha falecida esposa lá.” [3] Prestem atenção: “קַח מִמֶּנִּי”, “tome [o dinheiro] de mim.” Em outra passagem, sem nenhuma relação com essa, no final da Torá, o texto trata do divórcio e diz: “כִּי־יִקַּח אִישׁ אִשָּׁה וּבְעָלָהּ וְהָיָה אִם־לֹא תִמְצָא־חֵן בְּעֵינָיו כִּי־מָצָא בָהּ עֶרְוַת דָּבָר וְכָתַב לָהּ סֵפֶר כְּרִיתֻת וְנָתַן בְּיָדָהּ וְשִׁלְּחָהּ מִבֵּיתוֹ׃”, “quando um homem tomar uma mulher e se tornar seu marido e se ela não mais lhe agradar por ele encontrar nela algo que o incomode, ele escreverá um documento de separação e o dará na mão dela e a mandará embora da sua casa.” [4] Deixemos de lado por um segundo todos os incômodos causados por este segundo texto… eu quero que você prestem atenção no comecinho do verso, que diz “כִּי־יִקַּח אִישׁ אִשָּׁה וּבְעָלָהּ”, ““quando um homem tomar uma mulher e se tornar seu marido”. Em um verso diz “tome [o dinheiro] de mim” e no outro diz “quando um homem tomar uma mulher”. O uso do verbo לקחת, “tomar” nesses dois versos, que não tem nenhuma outra relação entre si, faz com que os sábios do Talmud juntem as duas passagens e concluam que, da mesma forma que o uso do verbo em uma instância caracteriza uma transação financeira, também na outra instância está caracterizada uma transação financeira. Dessa forma, com uma analogia que eu caracterizaria como bastante forçada, nossos sábios estabeleceram que o casamento é uma transação comercial. Apesar de todo o desconforto que estes conceitos nos trazem, lidos em seus contextos históricos, eles representam um avanço com relação ao que era praticado em outras sociedades. Ao estabelecer que as dimensões financeiras do casamento, os rabinos foram capazes de garantir proteção financeira para mulheres divorciadas e para viúvas, ainda que não tenham chegado nem perto do tipo de relação igualitária que buscamos em nossas relações contemporâneas. Através da sua analogia linguística forçada, os rabinos foram capazes de estabelecer proteções que eram um avanço em relação a outros períodos.

A rabina Rachel Adler, uma querida professora, afirma que “[os] textos descrevem o casamento de uma jovem virgem como uma transação comercial privada na qual os direitos sobre a mulher são transferidos do pai para o marido” [5]. O que foi solução para a situação de divorciadas e viúvas, hoje virou um problema. Os movimentos judaicos plurais têm se adaptado e revisto a liturgia e o texto da ketubá, o contrato matrimonial judaico. Já falei aqui do lindo trabalho desenvolvido pelo grupo de Empoderamento e Liderança Feminina da FISESP para proteger vítimas de violência doméstica na nossa comunidade. Precisamos fortalecer estas iniciativas e fazer mais para que encorajemos relações igualitárias na nossa comunidade, inclusive do ponto de vista ritual. Não é possível que continuemos usando respostas para problemas do passado quando enfrentamos situações completamente distintas. Não é razoável que mantenhamos uma resposta formulada há mais de 1500 anos para outro problema simplesmente porque ela é tradicional….

Depois de amanhã, domingo, dia 15 de novembro, teremos eleições para prefeito. Com a pandemia, com a diminuição da audiência na TV aberta, com a mudança de hábitos , acabamos todos prestando menos atenção a quem são os candidatos a prefeito e a vereador e como eles pretendem endereçar os problemas do presente e do futuro. A Covid criou novos desafios para a cidade de São Paulo, explicitando o vergonhoso abismo na qualidade dos serviços públicos entre aqueles que vivem na região central e quem vive nas periferias. Que respostas apresentadas pelos candidatos tem o potencial de ajudar a criar uma cidade mais humana, mais solidária e mais justa? Entidades judaicas como a FISESP e o Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil entrevistaram candidatos e nos oferecem uma boa oportunidade de nos informarmos mais antes das eleições. É fundamental que saiamos da nossa inércia e que enfrentemos os problemas atuais da cidade com coragem, criatividade, honestidade e justiça!

Shabat Shalom


[1] https://agora.folha.uol.com.br/sao-paulo/2020/11/suspeito-de-atropelar-e-matar-ciclista-em-sp-ainda-nao-foi-encontrado-pela-policia.shtml
[2] https://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2020/11/por-que-falar-do-legado-de-marina-harkot-e-tao-urgente-quanto-falar-de-sua-morte.html
[3] Gen. 23:13
[4] Deut. 24:1
[5] Rachel Adler, “Engendering Judaism”, p. 171.



Unidos pela dissidência

Eu conheço algumas pessoas que, depois de terem passado décadas juntas, acabam morrendo com meses, às vezes dias, de diferença. Algumas vezes, eram casais; em outras, eram irmãos ou melhores amigos. A intimidade da convivência contínua fez com que a vida se tornasse insuportável sem a presença do outro; o corpo acaba atendendo ao pedido da alma, se despedindo da vida. 

A parashá desta semana começa com o falecimento de Sará e termina com a morte de Avraham. Apesar de não terem acontecido na sequência [1], a narrativa da Torá aproxima a partida dos nossos dois primeiros patriarcas e nos leva a pensar sobre a relação entre os dois. Claramente, havia uma parceria que levou Sará a abandonar a sua vida e seguir com seu marido em busca de uma terra desconhecida, obedecendo as instruções de Deus. Baseando-nos em histórias da parashá da semana passada, podemos também imaginar alguns desentendimentos entre os dois, como na expulsão de Hagar e Ishmael [2] e no fato de Avraham ter aceitado o pedido de Deus para sacrificar o filho deles [3]. O texto sugere que, no final da vida, eles nem moravam mais na mesma cidade: Avraham estava em Beer Sheva, mas Sará faleceu em Kiriat Arba. Será que, depois de tantos anos de parceria, foi a incapacidade de discordarem sobre temas tão centrais que acabou causando a morte de Sará?

Uma história famosa do Talmud [4] nos apresenta um outro modelo de parceria e conta da amizade entre dois rabinos, Rabi Iochanan e Resh Lakish, que faziam do debate intenso uma marca do seu relacionamento. Depois de uma briga entre eles, Resh Lakish ficou tão magoado que morreu de desgosto; Rabi Iochanan morreu pouco tempo depois, inconformado com a falta do amigo. Rabi Iochanan sentia especial falta dos desafios que Resh Lakish levantava aos seus argumentos, e da forma como, nesses embates, ambos melhoravam sua compreensão da tradição judaica. Nossas discussões, assim como nossas amizades e relacionamentos amorosos, também ajudam, muitas vezes, a definir quem somos — em especial a forma como lidamos com elas. 

Na semana passada marcamos os 25º aniversário do assassinato de Itzchak Rabin, o primeiro-ministro israelense responsável pelo Processo de Paz de Oslo, e que foi assassinado por um opositor radical. Nesta semana, faleceu Saeb Erekat, o principal negociador palestino no processo de paz com Israel. Rabin e Erekat eram figuras polêmicas: alguns os viam como visionários na construção de um futuro de paz, outros como pessoas dispostas a fazer concessões sem construir antes amplos consensos nacionais, há ainda quem os visse como inimigos, soldados do outro lado de um conflito que já custou mais de uma centena de milhares de mortos. Assim como as mortes de Avraham e Sará, que aparecem próximas na narrativas mesmo tendo acontecido com distância de muitos anos, vinte e cinco anos separam as mortes de Rabin e Erekat, mas elas apareceram próximas no calendário deste ano. Nas décadas que se passaram, continuamos buscando uma paz estável e duradoura entre israelenses e palestinos sem, no entanto, atingi-la. Nossas divergências e a forma como lidamos com elas continuam, em grande parte, nos definindo.

Nossa parashá termina com o reencontro de Itschak e Ishmael, dois irmãos separados por conflitos, no enterro de Avraham. Na morte de seu pai, retomaram a possibilidade de construírem uma relação em vida, mesmo com as discordâncias. Que as memórias de Avraham e Sará, de Itschak e Ishmael, de Itschak Rabin e Saeb Erekat iluminem nosso caminho para avançarmos, apesar das nossas divergências, na construção de uma paz justa e duradoura.

Shabat Shalom!    

[1] A tradição fala em quase quatro décadas separando os dois eventos.
[2] Gen. 21:9-19
[3] Gen. 22:1-19
[4] Talmud Bavli Bava Metsia, 84a-84b. See Less



sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Dvar Torá: Sendo gente em um lugar onde falta humanidade (Lar das Crianças)

“Rogério, em uma terra de rinocerontes, se esforce para ser gente.” Eu não lembro dos detalhes da prédica do rabino Sobel no meu Bar Mitsvá, mas eu lembro desta mensagem final.
במקום שאין אנשים, השתדל להיות איש”, “em um lugar em que a humanidade estiver em falta, se esforce para ser gente” [1]
O rabino Sobel tocou milhares de vidas durante sua longa carreira no rabinato. Ele nem sempre conseguiu o consenso, mas ele certamente foi transformador para muitos que entraram em contato com ele. Hoje, no facebook, foi emocionante ver a quantidade de relatos pessoais de como as suas palavras e a sua atitude impactaram as pessoas de maneira muito positiva. 
במקום שאין אנשים, השתדל להיות איש”, “em um lugar em que a humanidade estiver em falta, se esforce para ser gente”
Em um momento da história do nosso país em que se comportar fora das normas da moralidade e da humanidade tinha se tornado aceitável, o rabino Sobel ousou ser gente. Apresentado ao caso de Vladimir Herzog com sinais claros de tortura em 1975, teve a coragem de negar publicamente a narrativa de que ele tinha se suicidado. Não foi a única manifestação do rabino que incomodou a ditadura. Manifestou-se pela democracia da bimá da CIP, nas ruas, em encontros políticos e no famoso ato ecumênico na Catedral da Sé, ao lado do dom Paulo Evaristo Arns e James Wright. Sua coragem de desafiar os poderosos, de ir contra o senso comum, de desenvolver um Judaísmo de relevância para os nossos momentos mais alegres e nossas horas mais sombrias foi contagiante e inspirou uma geração de judeus a se aproximarem do judaísmo e, através dele, sonhar com um mundo melhor.
במקום שאין אנשים, השתדל להיות איש”, “em um lugar em que a humanidade estiver em falta, se esforce para ser gente”

A parashá desta semana se chama “Chaiei Sará”, “a vida de Sará”, e muitos comentaristas destacam o fato de que, apesar deste nome, a parashá fala, logo no seu início, do falecimento de Sará. Fala também, no seu final, do falecimento de Avraham. Juntos, Avraham e Sará deram início à maravilhosa saga judaica. Um casal que teve a coragem de ser iconoclasta, de contestar o senso comum e as verdades absolutas da sua época, de escutar seu chamado interno e abandonar tudo o que conhecia e começar uma nova vida, em um novo lugar. E, mesmo assim, quando lhe pediram algo que desafiava seu senso de justiça, teve a coragem de desafiar o mesmo Deus por quem tinha largado tudo. Desafiar o senso comum exige coragem, mas desafiar a autoridade que tem o poder de punir e que já tinha demonstrado a disposição em punir, exige muito mais.
במקום שאין אנשים, השתדל להיות איש”, “em um lugar em que a humanidade estiver em falta, se esforce para ser gente”
O rabino Sobel se encontra com Avraham e com Sará neste lugar dos tzadikim que ousaram ser pessoas em terras de rinocerontes, de serem pessoas em lugares em que a humanidade estava em falta. Longe de serem pessoas perfeitas, longe de serem apresentados como santos, mas seus eventuais tropeços em nada tiram da enormidade de suas qualidades, do impacto das suas ações e das suas palavras, das milhares de pessoas que foram impactadas por estas personalidades maiores do que a vida. 
במקום שאין אנשים, השתדל להיות איש”, “em um lugar em que a humanidade estiver em falta, se esforce para ser gente”
Comentando sonbre esta parashá, a rabina Rona Shapiro sugere:
“Talvez, esta parashá seja chamada Chaiei Sará, ‘a vida de Sará’, porque, com a morte de Sará, Avraham finalmente aprende a viver a vida dela; ele desce da montanha e se torna um homem do coração, um homem que toma conta dos membros de sua família e vive sua vida no plano humano. Ele aprende a encontrar verdade e significado dentro do contexto de sua família, ao casar seu filho, criar crianças, nos pequenos atos de gentileza que tornam a vida sagrada. Avraham aprende que Deus não está em um trono nos céus, mas está em qualquer lugar em que os humanos O convidarem em suas vidas.” [2]
Com a morte de Sará, Avraham precisa assumir um novo papel na sua relação com Itschak. Em seu livro “A Tenda Vermelha”, a escritora judia norte-americana Anita Diamant nos conta sobre a Tenda de Sará, onde as mulheres se reuniam e se prestavam apoio mútuo, mas quem apoiava Avraham em seu novo papel de tomar conta de Itschak? É a seu servo, Eliezer, que Avraham pede ajuda e o manda para a terra de seus ancestrais, que ele tinha deixado para trás, para encontrar uma esposa para seu filho.
Um ditado popular africano que se tornou popular nos Estados Unidos diz que “it takes a village to raise a child”, “é necessária uma vila inteira para criar uma criança”. A ideia é que a educação de uma criança não é apenas o resultado do esforço dos seus pais, ou nem mesmo da sua família expandida, mas que todo o seu entorno tem uma parte dessa responsabilidade. Em um mundo em que as normas de convívio e de solidariedade se deterioram a cada momento, em que cada um parece se preocupar apenas com seus próprios problemas, nos quais andamos pelas nossas ruas indiferentes à multidão que lá dorme, eu me pergunto onde está a vila que ajuda a criar cada criança.
במקום שאין אנשים, השתדל להיות איש”, “em um lugar em que a humanidade estiver em falta, se esforce para ser gente”
Assim como Avraham, nossos pais, avós e bisavós chegaram a este país deixando um mundo para trás. Deixaram suas famílias, deixaram suas posses, deixaram suas redes de apoio. Assim como Avraham, eles também precisavam de ajuda na criação de seus filhos e, assim, nasceu este Lar das Crianças. Com o tempo, as famílias que precisavam de ajuda já não eram mais as famílias dos nossos imigrantes, mas o Lar foi mudando o seu foco sem diminuir o carinho e a atenção que dá a cada uma das crianças que educa. Numa terra em que impera a escuridão, o Lar acende luzes; numa terra de indiferença, o Lar ensina a solidariedade; numa terra em que cada um cuida dos seus próprios problemas, o Lar nos mostra que alguns problemas são responsabilidade de todos nós.
O Lar é a vila que ajuda os pais a educarem os seus filhos. Muito obrigado pelo papel lindo e gigante que vocês desempenham pelos seus educandos e pela alma de todos nós.
São exemplos como os de Avraham, de Sará, do rabino Sobel, e do Lar que nos ensinam a sermos gente numa terra de rinocerontes; a sermos gente em lugares em que a humanidade está em baixa.

Que eles continuem nos inspirando e iluminando nossos caminhos.

[1] Pirkei Avot 2:5
[2] Elyse Goldstein (ed.), The Women’s Torah Commentary: New Insights from Women Rabbis on the 54 Weekly Torah Portions. Jewish Lights: Woodstock, Vermont. p. 74.

Amores e fraturas nas nossas famílias

Uma das coisas que mais me encanta nas histórias da Torá é a forma como a nossa tradição não evita apresentar nossos ancestrais como pessoas verdadeiras, com suas contradições internas, que acertavam e erravam, às vezes ao mesmo tempo. Da mesma forma, nossos textos sagrados refletem relações humanas, especialmente as relações familiares, em toda a sua complexidade, com conflitos, traições, injustiças, mas também com momentos maravilhosos de generosidade, de amor profundo e de luta pelos injustiçados. 

Nas últimas semanas, lemos histórias complicadas para a família dos nossos patriarcas e matriarcas. A pedido de Sará (que recebe o apoio de Deus em seu pedido), Avraham expulsou Hagar e o filho deles, Ishmael. Em seguida, sem consultar sua esposa, Avraham escutou a ordem de Deus e levou o filho deles, Itschak, para ser sacrificado. Alguns _midrashim_ contam que, quando Sará escutou que seu marido havia levado o único filho dela para ser sacrificado, o terror e a tristeza fizeram com que ela falecesse imediatamente, sem saber que Itschak havia sido poupado [1].

A parashá desta semana, Chaiei Sará, começa com os impactos da morte da nossa primeira matriarca. Refletindo, novamente, a verdadeira intensidade das nossa relações humanas, o texto nos conta como Avraham se abateu com a perda de sua esposa [2] – apesar de esta não ser a primeira morte da Torá, é a primeira oportunidade em que a Torá nos fala sobre alguém ficar enlutado pela perda um parente próximo.

Nas próximas semanas, leremos sobre complicações na relação entre a segunda geração desta família, Itschak e Rivcá, em particular no que tange ao relacionamento de seus filhos. Nesta parashá, tomamos conhecimento do momento em que os dois se conhecem: quando Rivcá desce do seu camelo ao vê-lo à distância [3] e como ele levou-a à tenda de sua mãe, tomou-a para esposa e amou-a [4] – a primeira vez em que a Torá nos conta sobre o amor entre um casal. Muitos comentaristas discutem a ordem dos verbos: se o amor não deveria vir antes do casamento e apontam para um tipo de amor relacionado à parceria do dia-a-dia, que se desenvolve ao longo do relacionamento e que se soma ao amor que havia anteriormente.

No final da parashá, Avraham também falece, aos 175 anos. Em seu enterro, Itschak reencontra seu meio-irmão, Ishmael, que havia sido expulso pelo pai deles. 

Nas histórias da nossa parashá, entre Avraham e Sará, entre Rivcá e Itschak, entre Avraham e seus filhos, Itschak e Ishmael, o amor é a chave da superação dos conflitos. Seres humanos são criaturas complexas, que reagem de formas, algumas vezes, imprevisíveis e inexplicáveis. Certas crises são facilmente superadas com um toque de bom senso; para outras, temos que engolir o ego e dar o primeiro passo para reconstruir relacionamentos fraturados. Nas relações mais tranquilas e naquelas mais tumultuadas, o amor é a chave que possibilita e dá significado ao que construímos em parceria, em particular aos nossos relacionamentos familiares. Percebemos o amor no choro de Avraham ao perder Sará, no carinho que o texto deixa claro entre Itschak e Rivcá, no reencontro de Ishamel com seu meio-irmão e com seu pai. Exemplos dos quais precisamos aprender e exercitar nas nossas próprias rotinas.

Que este seja um shabat de muito amor, de encontros e de reencontros, em que saibamos reconhecer a importância daqueles que nos são mais próximos e queridos em toda a sua complexidade e beleza.

Shabat Shalom!


[1] Veja, por exemplo, o comentário de Rashi para Gen. 23:2.
[2] Gen. 23:2.
[3] Gen. 24:64.
[4] Gen. 24:67.