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sexta-feira, 1 de abril de 2022

Dvar Torá: Vendo as doenças como parte da vida (CIP)


Esta semana, nós tivemos a 94ª edição do Oscar mas a verdade é que eu não sei mais como me preparar para o Oscar nem o que fazer com a lista dos filmes premiados na sequência. Na minha adolescência e na época de faculdade, tentávamos assistir todos os filmes indicados antes da premiação — e, se por acaso, um filme que não tínhamos assistido ganhasse algum prêmio importante, pegávamos fila no cinema para conseguir vê-lo.

Hoje, com pandemia e inúmeros serviços de streaming, tenho a impressão de que a experiência do Oscar perdeu a importância e que eu prefiro continuar maratonando a minha série bobinha a parar pra assistir um filme premiado. Mas talvez, seja só eu….

De qualquer forma, nesta 94ª edição, parece que ninguém falou sobre os filmes premiados no dia seguinte. Tudo que as pessoas comentavam era o tapa que o Will Smith tinha dado no Chris Rock. Se você não sabe o que aconteceu, Chris Rock estava apresentando a cerimônia e fez uma piada comparando Jada Pinkett Smith, esposa do Will Smith, com um papel de Demi Moore no filme G. I. Jane, no qual ela tinha a cabeça raspada. A questão é que Jada tem alopecia, uma condição que leva à queda de cabelo.

Durante toda esta semana, falou-se se Chris Rock teria sido insensível ao fazer piada de uma condição médica ou se Will Smith teria sido hipócrita ao defender a paz mas resolver os problemas através da violência. Qualquer que seja a sua opinião (ou a minha) nestas questões, elas abriram a possibilidade de pensarmos como conversamos sobre doenças, um tema com o qual nossa sociedade, em geral, não lida bem.
Muitas vezes, escondemos que estamos doentes mesmo das pessoas mais próximas, porque não queremos preocupá-los ou não queremos que eles passem a nos tratar de forma diferente. 

Em outras, há um sentimento de vergonha, como se tivesse sido por culpa nossa que tivéssemos adoecido. A linguagem coloquial também não ajuda — não são raras as situações em que nos referimos metaforicamente a doenças como aquilo que causa todo o mal do mundo. Imagina, por exemplo, como se sente uma pessoa que tem câncer quando nos referimos a uma fenômeno social terrível como um câncer da sociedade. Quem iria se identificar como tendo câncer em um contexto desses? Nós sofremos de doenças, lutamos contra elas, estávamos em guerra contra a Covid. Neste contexto cultural, não é difícil entender porque a parashá desta semana cause tanto estranhamento aos comentaristas e nos cause tanta dificuldade para comentá-la. Em parashat Tazria, a questão central do texto é uma condição dematológica chamada “tsaraat”, que é frequente e erroneamente traduzida como “lepra”. O texto da Torá instrui os sacerdotes em como investigar a questão e tratá-la, muitas vezes afastando a pessoa doente do convívio social.

O rabino Art Green escreveu a respeito da dificuldade e da importância de encontrarmos estes textos hoje em dia: 
Todos nós (…) somos sobreviventes. Vivemos juntos durante anos terríveis de peste. Muitos de nós perdemos pessoas que amávamos ou com quem nos preocupávamos. As pessoas mais velhas também tendem a se ver como sobreviventes de vários outros eventos ao longo de nossas vidas: câncer, acidentes de trânsito, vícios e muitos outros tipos de pragas. [1]
Em sua leitura metafórica, baseada no tipo de análise de texto comum entre os mestres chassídicos, ele propõe 5 ensinamentos a partir da forma como os sacerdotes abordavam a questão da tsaraat, que podem nos inspirar também na forma como nós tratamos das nossas próprias doenças ou daquelas das pessoas à nossa volta, em particular com questões de saúde mental ou da alma, como a depressão, o pânico e outras tantas condições:
  1. Enxergue, além da doença, também a pessoa que está doente a sua dor emocional. Quão profunda é ela? Será que você pode ajudá-la a evitar que esta dor se espalhe e acabe tomando conta de tudo que esta pessoa é?
  2. Se permita ser surpreendido de forma positiva e, se este for o caso, ajuda o enfermo a recuperar parte da alegria e da esperança;
  3. A dor pela re-ocorrência pode ser ainda maior que a dor por contrair uma doença pela primeira vez. Leve a sério os pedidos de ajuda, sem tratar a questão com desdém;
  4. Há situações, em particular, aquelas referentes a traumas psicológicos, nos quais se sentir reconhecido, enxergado e escutado já é um imenso primeiro passo para a recuperação;
  5. Não despreze a importância de rituais (religiosos ou não) para marcar a recuperação do corpo, da alma e do espírito. 
O rabino Art Green nos lembra que este rituais são ainda mais poderosos quando contém, dentro deles, elementos da antiguidade.

Na literatura talmúdica, alguns rabinos mantinham distância absoluta dos enfermos. Rabi Ami e Rabi Asi não entravam em uma rua em que alguém tivesse tsaraat, Reish Lakish, um dos maiores expoentes da sua geração, atirava pedra nas pessoas que tivessem esta doença. [2]

Outros sábios, no entanto, mantinham uma relação de proximidade com aqueles que mais precisavam do seu carinho e atenção. Em uma passagem [3], o Talmud nos conta como o rabino Iehoshua ben Levi se juntava a quem estava doente e estudava Torá junto com eles. Em outra passagem do Talmud [4], o mesmo rabino Iehoshua ben Levi encontra Eliahu haNavi, o profeta Eliahu, que a tradição acredita que serve como uma ponte entre o mundo celestial e o mundo terreno. O rabino Iehoshua ben Levi pergunta a Eliahu haNavi quando o Messias chegará. “Vá e pergunte a ele”, foi a resposta do profeta. “E onde o encontro?”, perguntou o rabino. “Na entrada de Roma.” “E como eu saberei quem ele é.” A resposta de Eliahu haNavi aponta para o carinho dispensado a quem está doente: “Ele se senta entre os pobres que sofrem de doenças. E todos eles desamarram suas ataduras e amarram todas de uma vez, mas o Messias desamarra uma atadura e amarra uma de cada vez. Ele diz: Talvez eu precise servir para trazer a redenção. Portanto, nunca vou fazer mais de um curativo, para não me atrasar.”.

Que neste shabat Tazria, de leituras tão difíceis e que remetem tantos de nós às situações difíceis pelas quais estamos passando, que tenhamos a capacidade de verdadeiramente acolher os enfermos e de enxergá-los completamente, sua verdade, sua dor, suas alegrias, sua esperança, seu cansaço.

Shabat Shalom,

[1] Art Green, Comentários da Parashá distribuídos por email.
[2] Avraham Burg, Very Near to You, p. 236.
[3] BT Ketubot 77b
[4] BT Sanhedrin 98a
 

sexta-feira, 5 de abril de 2019

A busca permanente por significado na Torá

A parashá desta semana, Tazria, é uma das que mais têm desafiado rabinos e comentaristas ao longo dos séculos a encontrar significado e relevância para sua vida cotidiana. A seu respeito, o rabino Art Green escreveu: “Como alguém encontra algo relevante a dizer quando a Torá está tão preocupada com doenças de pele e a cor das lesões de alguém?”[1] Se a Torá é realmente uma “árvore da vida para aqueles que a ela se apegam (…), seus caminhos são caminhos de doçura e todas as suas veredas são de paz”, como explicar uma parashá que demonstra pouca empatia para com o aflito por doenças de pele?
O rabino Jonathan Sacks propõe que há uma dissonância cognitiva entre nossa leitura literal do texto e sua real intenção [2]. De acordo com ele, a discussão para o tratamento de tzara’at (a condição de pele discutida nesta parashá) não devem ser entendidas a partir da dicotomia doente x saudável e sim dentro do paradigma de impureza x pureza. Citando diversas fontes tradicionais, o rabino Sacks atribui à transgressão de “Lashon haRá” (a fofoca com intuito malicioso) a responsabilidade por esta condição de impureza.
A mesma abordagem metafórica é adotada pelo rabino Noam Elimelech, um mestre chassídico do século 18, que associa a pele ao nosso orgulho. Nesta leitura, o inchaço da pele seria sinal de um orgulho que se desenvolveu demais, tornando-se arrogância.
O que o comportamento arrogante e o hábito de falar mal dos outros têm em comum? Ambos têm a capacidade de esgarçar o tecido social, causando danos que vão muito além das pessoas que foram diretamente afetadas. O afastamento social temporário para aqueles que desenvolvem estas práticas, como é instituído na nossa parashá, busca limitar seu impacto, permitindo que seja tratado antes de “contagiar” toda a sociedade.
Em nossos tempos, em que a veiculação de informações inverídicas pelas redes sociais tem se tornado a norma mais do que a exceção, em que realidades históricas são distorcidas pela conveniência política de quem as diz, quando egos super-inflados fazem com que as pessoas tenham pouca disponibilidade para considerar pontos de vista diferentes dos seus, a parashá Tazria ganha especial importância. Urge buscarmos formas equivalentes ao tratamento proposto na Torá, para garantirmos o bem estar coletivo da sociedade.
Claramente, “עץ חיים היא”, “a Torá é uma árvore da vida”, sempre relevante em nossas vidas!
Shabat Shalom!

[1] Arthur Green; Ebn Leader; Ariel Evan Mayse; Or Rose. “Speaking Torah: Spiritual Teachings from around the Maggid’s Table”, vol. 1, p. 283.

[2] Jonathan Sacks. “Covenant & Conversation: A Weekly Reading of the Hebrew Bible; Leviticus: the Book of Holiness”, pp. 187-193

.[3] “Speaking Torah”, pp. 276-277.