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sexta-feira, 17 de junho de 2022

Dvar Torá: Por que é tão difícil não falar mal dos outros? (CIP)


Eu quero voltar pro finalzinho da Amidá, na página 26. Nos primeiros séculos do período rabínico, as pessoas ofereciam pedidos pessoais ANTES da Amidá. Quando Raban Gamliel II, líder da comunidade judaica na Terra de Israel no começo do 2º século, instituiu a Amidá, este espaço para pedidos pessoais foi mudado para o FINAL da Amidá. No Talmud, vários rabinos propuseram formulações para estes pedidos pessoais, um rabino da Babilônia, Mar bar Ravina [1],[2]. Quando Amram Gaon codificou o primeiro sidur do qual temos conhecimento, ao redor do ano 860 EC [3], ele incluiu a versão de Mar bar Ravina como sugestão para as pessoas que não soubessem como compor sua própria petição pessoal e quando o primeiro sidur europeu, o Machzor Vitry, foi impresso no século 11, o que era uma sugestão se tornou uma regra: todos deveriam, ao final da Amidá, dizer aquela versão da prece pessoal.

E o que diz a prece pessoal de Mar bar Ravina? “Meu Deus, impeça minha língua de dizer o mal e meus lábios de enganarem” e por aí vai…

De tudo que os rabinos podiam pedir do ponto de vista pessoal, eles não pediram riqueza, nem sabedoria, nem a disposição para trabalhar de forma mais intensa no dia seguinte. Eles pediram a capacidade de se conter e não fazer parte do que a nossa tradição chama de “lashon hará”, a língua do mal. E a verdade é que é tão difícil, né?!

A prática de falar mal dos outros se tornou de tal forma parte das nossas rotinas que a gente nem percebe mais… entra em reunião de trabalho falando mal do colega; se reúne com a família e se põe a falar mal da prima que ninguém gosta; cria grupo paralelo dos pais da escola pra poder falar mal dos pais que ficaram abandonados no grupo original. Quando a gente se dá conta, já foi — e não foi nem por maldade, mas simplesmente porque é assim que todo mundo se comporta.

Se você parar para prestar atenção nas confissões que fazemos em Iom Kipur, grande parte delas são coisas que fazemos com a fala. Só para dar alguns exemplos:
  • Difamamos = דיברנו דופי
  • Incitamos o mal = הרשענו
  • Acusamos falsamente = טפלנו שקר
  • Demos mau conselho = יעצנו רע
  • Zombamos = לצנו
  • Provocamos = ניאצנו 
Ao mesmo tempo, a tradição reconhece que a fala é um atributo Divino, através do qual Deus criou o mundo e que distingue os seres humanos dos outros animais. Quando Rashi comenta o verso em Bereshit que fala do sopro Divino que deu ao ser humano sua alma viva, ele diz: “animais também são chamados de almas vivas, mas a alma humana tem tudo o que eles têm e mais porque aos seres humanos foi dada a compreensão e a fala.” [4]

E o mesmo Rashi revela uma compreensão assustadoramente contemporânea ao analisar uma passagem da Torá, no livro de Vaicrá [5] que proíbe a fofoca. Ele escreveu: “Digo isso porque todos os que semeiam a discórdia entre as pessoas e todos os que falam calúnias vão à casa dos amigos para espiar o mal que ali vêem, ou o mal que ali ouvem, para que o divulguem nas ruas. - eles são chamados de "pessoas que andam espionando.”

Um midrash [6] diz que, dos 6 atributos que foram dados aos seres humanos, 3 estavam sob nosso controle e 3 não. A visão, o olfato e a audição não estariam sob nosso controle — afinal de contas, cheiramos, escutamos e enxergamos mesmo o que não queremos. De outro lado, a fala e os movimentos dos pés das mãos estariam sob nosso controle. O exemplo que o midrash dá não poderia ser mais claro com relação às nossas escolhas: “a pessoa precisa decidir para estudar Torá, difamar, blasfemar e se rebelar.” E uma passagem dos Provérbios confirma este caráter de escolha, ao afirmar: “Morte e vida estão no poder da língua.” [7]

De acordo com o Talmud, lashon hará tem o poder de matar três pessoas: aquela que fala, aquela que escuta e aquela sobre quem está sendo falado. Por que será que é tão difícil usar sempre este atributo na direção da vida?!

Na parashá desta semana, Miriám, a profetisa, se torna a fofoqueira, ao fazer contra um comentário maldoso sobre Moshé ou sobre sua esposa para Aharón — comentário específico não é claro e há comentaristas que enxergam nele aspectos de preconceito racial e outros que dizem que ela estava defendendo a cunhada, que estaria recebendo pouca atenção de Moshé. De qualquer forma, ela desenvolve uma doença de pele como punição pelo seu ato e teve que ser excluída do acampamento por sete dias.

Na maioria dos casos, no entanto, a exclusão que acontece como consequência de lashon hará, não é daquele que dá início ou que espalha a fofoca, mas aquele sobre quem se fala. Seja por vergonha, por sentir-se não acolhido ou por sentir-se explicitamente rejeitado, não é incomum que as vítimas dos processos de lashon hará se afastem do ambiente comunitário em um processo no qual todos perdemos.

Há uns 25 anos, eu morava em Tel Aviv e passei a frequentar a sinagoga reformista de lá, Beit Daniel. Toda semana, eu me sentava mais ou menos no mesmo lugar e havia uma senhora que sentava sempre perto de mim. Com o tempo, começamos a conversar, ela sempre tentando me apresentar sua neta… Um dia, ela me pergunta: “você viu quem está na sinagoga hoje?”. “Não,” eu respondi. “Quem?!” “Convidados não desejados!”, ela me disse. “Quem são eles?” eu perguntei, e adicionei em tom de piada, “o Rabino Chefe”, uma figura ultra-ortodoxa e sisuda que nunca apareceria na nossa sinagoga reformista. “O rabino-chefe não é bem vindo?!”, ela se espantou com a minha brincadeira. “À minha casa eu não o convidaria”, eu respondi e com isso concluímos nossa conversa.

Mais tarde, durante o kidush, entendi de quem ela estava falando. Naquele dia, havia acontecido a Parada do Orgulho Gay em Tel Aviv e membros da nossa sinagoga tinham ido participar e convidar os participantes a virem ao Cabalat Shabat. Para minha vizinha de sinagoga, no entanto, aquelas pessoas que não tinham lhe feito nada, eram convidados indesejados apenas por serem quem eles eram. 

Por muito tempo, por tempo demais, aqui em São Paulo, aqui nesta CIP, membros LGBTQIA+ da comunidade judaica se sentiram também convidados indesejados. Eles se sentaram ao nosso lado e escutaram nossas piadas homofóbicas, fingindo rir delas para não colocar em risco sua aceitação na comunidade. Parece absurdo, mas com uma frequência imensa lashon ha-rá assume o formato de piada — piada de mal gosto, piada cheia de preconceito, mas que continuamos contando ser perceber o efeito corrosivo que elas têm.

Em um documento escrito há alguns anos por um grupo de judeus LGBT no facebook, ao falarem de como se sentiam na intersecção de suas múltiplas identidades, os autores escreveram: “Nosso Judaísmo foi duplamente – triplamente – exílico. Nós fomos primeiramente forçados para fora de nossa identidade sexual e, a seguir, fomos forçados para fora do Judaísmo. E a única alternativa era esconder uma das duas identidades, para poder preservar a outra.” 

Hoje, um grupo de membros do Hineni, o grupo LGBTQIA+ da Fisesp, veio participar conosco do Cabalat Shabat. Ao lhes dar as boas vindas, eu queria tentar quebrar pelo menos duas dimensões deste exílio triplo do qual o documento falava. Saibam que vocês não são hóspedes indesejados. Primeiro, porque esta casa é sua e ninguém pode ser hóspede na sua própria casa. Segundo, porque nós queremos muito que vocês participem e venham e estejam sempre por aqui. O Judaísmo é inegavelmente a sua casa e a CIP é uma das muitas casas de portas abertas para vocês dentro da comunidade judaica.

Que neste shabat possamos engajar somente em lashon hatov, a língua do bem — e que esta prática de shabat nos sirva de incentivo para podermos sempre usar as palavras só para construir, encantar, unir e acolher.

Shabat Shalom.


[1] My People’s Prayer Book, vol. 2, p. 187
[2] Talmud Bavli 17a
[3] My People’s Prayer Book, vol. 1
[4] Comentário de Rashi para Gen. 2:7:4
[5] Lev. 19:16
[6] Bereshit Rabá 67:3
[7] Prov. 18:21
 

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Dvar Torá: Violência contra as mulheres - saindo da inércia (CIP)


Pra quem ainda lembra das aulas de Física do colegial, “inércia” é a tendência de um objeto se manter no estado em que está, seja parado ou em movimento, a menos que uma força seja aplicada sobre ele. Na fala um pouco mais coloquial, “inércia” é a tendência das coisas continuarem como são hoje.

Esse conceito se aplica aos objetos em movimento, como nos casos estudados pela Física e às pessoas, também. Se não nos esforçarmos para “sair da inércia”, faremos sempre as mesmas coisas, com as mesmas pessoas, nos mesmos lugares. Pelas leis da inércia, Avram e Sarai teriam continuado a viver e Ur Casdim ou se mantido em Harán, onde eles pararam no meio da viagem.

“Lech Lechá”, o chamado Divino que convocou Avram e Sarai e abandonarem sua terra, o lugar em que tinham nascido e as casas dos seus pais [1], foi provavelmente a força que levou-os a transformarem radicalmente as suas realidades. Não fosse esse chamado, Avram e Sarai, teriam continuado a viver em Harán, onde Terach, o pai de Avram, faleceu.

Outro lugar onde a ideia inércia se aplica é na nossa auto-percepção. Congelamos conceitos que um dia foram verdadeiros e, muitas vezes, não nos damos conta quando as coisas mudaram radicalmente. A idade que imaginamos ter, nossa capacidade física, a relação que temos com algumas pessoas. Quantas vezes não dizemos sobre alguém com quem não falamos há anos “esta e pessoa e eu somos grandes amigos”?!

No mundo judaico isto também se aplica. Ainda falamos sobre a nossa tradição que os personagens da Torá são humanos cheios de falhas, não semi-deuses perfeitos que nunca erram… E, mesmo assim, ao longo dos séculos a tradição judaica foi desenvolvendo desculpas e explicações para cada um dos erros cometidos pelos nossos patriarcas, de forma que eles deixaram de ser erros. Os patriarcas, na prática, passaram a ser vistos como perfeitos…

Como eu argumento com frequência, é hora de sair da inércia e olharmos com honestidade para as falhas dos nossos patriarcas. Quem sabe, seja este o nosso momento “Lech Lechá”, de abandonarmos o conforto das nossas certezas e permitirmos que as dúvidas aflorem, também na relação com a tradição. Na parashá desta semana, depois de chegarem à terra de Cnaán, Avram e Sarai enfrentam uma seca e precisaram ir ao Egito comprar mantimentos. 
Quando estava para entrar no Egito, ele disse à sua esposa Sarai: “Eu sei como você é uma mulher bonita. Se os egípcios virem você e pensarem: ‘Ela é a esposa dele’, eles vão me matar e deixar você viver. Por favor, diga que você é minha irmã, para que tudo corra bem por sua causa e que eu possa continuar vivo graças a você. ” Quando Avram entrou no Egito, os egípcios viram como a mulher era excepcionalmente bonita. Os cortesãos do Faraó a viram e elogiaram ao Faraó, e a mulher foi levada ao palácio do Faraó. Por causa dela, foi correu bem para Avram; ele adquiriu ovelhas, bois, jumentos, escravos e escravas, jumentas e camelos. [2]
Ou seja: Avram colocou sua esposa, Sarai, em risco para salvar sua própria pele. Pelos versículos seguintes, que eu não vou ler, a impressão que temos é que o Faraó, de fato, a tomou para sua esposa. A objetificação da mulher, tanto por Avram quanto pelo Faraó é clara. Neste episódio, não escutamos a voz de Sarai, apenas a de Avram e do Faraó.

Há outro episódio na parashá no qual a objetificação da mulher é evidente: Sarai não podia ter filhos e oferece Hagar, sua escrava, para que a Avram possa ter um filho seu através dela. Aqui, a voz de Sarai é escutada; o que não ouvimos é a voz de Hagar, sua escrava egípcia. Quem escuta a voz de Hagar é um anjo de Deus, que lhe aparece que quando ela fugia da opressão de Sarai.

Como podemos continuar lendo estas passagens sem a devida crítica, sem que tentemos fazer ticún, uma correção, ainda que tardia às realidades que elas descrevem?

Mais problemático é o fato de vivermos em um mundo no qual a violência contra a mulher continua ocorrendo como um fato do cotidiano. 

Este ano, com a volta do Taliban ao poder, o tema da violência contra a mulher voltou à tona. Lá, uma série de atos contra a liberdade feminina foram adotados, incluindo o fechamento de abrigos para vítimas de violência doméstica e a severa limitação para que meninas possam continuar estudando.

Seria muito fácil, no entanto, apontar só pra fora quando pensamos na questão da violência contra as mulheres quando o assunto no Brasil é extremamente sério.

De acordo com o 14° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, uma mulher é estuprada no Brasil a cada 10 minutos [3]. A edição anterior do Anuário, indicava que em 2018, 3 mulheres foram vítimas de feminicídio a cada dia; 61% delas, negras. O companheiro ou ex-companheiro foi o responsável pelo feminicídio em 88.8% dos casos [4]. De acordo com uma pesquisa feita pelos Institutos Patricia Galvão e Locomotiva, 97% das mulheres já foram vítimas de assédio em meios de transporte [5].

Pra quem acha que a comunidade judaica está imune a esta realidade, temos, mais uma vez, que sair da nossa inércia conceitual. O Comitê de Acolhimento do Grupo de Empoderamento e Liderança Feminina da FISESP vêm desenvolvendo há alguns anos iniciativas para acolher mulheres vítimas de violência doméstica em parcerias com entidades dentro e fora da comunidade judaica. Desde que a iniciativa começou e cartazes foram colocados em lugares estratégicos da comunidade judaica, mais de 60 mulheres e famílias receberam acolhimento, escuta e ajuda para resolver a situação em que se encontravam. O grupo tem trabalhado com abordagens distintas, multi-disciplinar e respeitando as diferentes sub-culturas dentro da comunidade judaica, incluindo — mas não restrita — às diferenças de movimentos religiosos.

Como a frequência às sinagogas está limitada, você pode acessar o folheto do projeto através deste link: https://bit.ly/predica1510. Nele, você encontra o número de telefone e email para encontrar acolhimento e ajuda.

A iniciativa do Grupo de Empoderamento Feminino da Fisesp vai muito além. Eles tem atuado também na prevenção da violência e no desenvolvimento de relacionamentos saudáveis, atuando junto às escolas judaicas e movimentos juvenis na defesa de políticas públicas que enderecem estas questões.

A questão da violência contra a mulher é séria e ela é judaica também. Não foi ok quando Avram possibilitou a violência contra Sarai. Não foi ok quando Sarai possibilitou a violência contra Hagar. Não é ok nos silenciarmos quando pessoas da nossa comunidade se vêem em relacionamentos abusivos, sem saber onde pedir ajuda. 

Temos que sair da nossa inércia e nos tornarmos parceiros ativos destas iniciativas — pelo bem de cada um de nós e da nossa comunidade toda!

Shabat Shalom!


sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Dvar Torá: Violência contra as mulheres – um problema dos homens! (CIP)

Há pouco mais de 20 anos, a escritora judia norte-americana Anita Diamant publicava a primeira edição de “A Tenda Vermelha”, na qual retratava a vida das mulheres nos tempos bíblicos, em especial na geração de Lea, Rachel, Bilá, Zilpá e suas filhas. Inicialmente, apesar de a autora ir a todos os círculos de leitura que ela conseguia, o livro não teve sucesso e ela precisou de um plano para evitar que as cópias já impressas do livro fossem recolhidas e destruídas pela editora, que achou que elas nunca seriam vendidas. Seu plano envolveu enviar cópias para a Rede de Mulheres Rabinas do movimento Reformista e para a Associação Rabínica Reconstrucionista, além de angariar o apoio de pequenas livrarias locais. Desta forma, o livro cresceu em popularidade e chegou à lista dos mais vendidos no New York Times [1]. Hoje, transformada em uma minisérie de dois capítulos, a história pode ser assistida no Netflix [2].

O que fez dessa história um sucesso tão grande? Ela deu às mulheres das narrativas bíblicas uma voz e um ponto de vista. Sabemos muito sobre os personagens masculinos das histórias do Tanach; sabemos muito menos a respeito das personagens femininas. Aqui está um exemplo: conhecemos o nome de 12 filhos do patriarca Yaacov: Reuven, Shim’on, Levi, Iehudá, Dan, Naftali, Gad, Asher, Issachar, Zevulun, Iossef, and Biniamin — além do número, eles dão nome às tribos do povo de Israel e, por isso, são relembrados constantemente. Há apenas uma filha de Yaacóv cujo nome é mencionado,  Diná, que não tem uma tribo que receba seu nome. A esse respeito, Shadal, o rabino Shmuel David Luzato, que viveu no começo do século 19, disse que era muito improvável que Yaacóv tivesse tido 12 filhos e apenas uma filha e que o nome de Diná só tinha sido mencionado por um episódio que aconteceu com ela (e sobre o qual já vamos falar) — e ele completa: “em todo lugar na história das nossas gerações, são mencionados apenas os homens e as mulheres que tiverem algum evento particular significativo ou que eram famosas por algum motivo” [3]. Pois é, quase que por regra, a história das nossas matriarcas não foi registrada.

A este respeito, minha professora Merle Feld escreveu o seguinte poema:
Todos estivemos juntos 
Meu irmão e eu estivemos no Sinai
Ele tinha um diário
do que ele via
do que ele ouvia
de tudo o que aquilo significava para ele
Eu queria ter um registro assim
do que aconteceu comigo
Parece que toda vez que eu quero escrever
Eu não posso
Estou sempre segurando um bebê
um meu
ou um de uma amiga
sempre segurando um bebê
então minhas mãos nunca estão livres
para escrever coisas
E então
conforme o tempo passa
os detalhes
a informação
de quem o que quando onde porquê
foge de mim
e tudo que me sobra é
o sentimento
Mas sentimentos são apenas sons
As vogais latindo do silêncio
Meu irmão tem tanta certeza do que escutou
afinal, ele tem o registro
consoante após consoante após consoante
Se nós lembrássemos juntos
poderíamos recriar tempo sagrado
fagulhas voando. [4]
Por isso, Anita Diamant tentou recriar este tempo sagrado, escrevendo uma história com a perspectiva das mulheres bíblicas. No centro da história que ela conta está uma passagem da nossa parashá — o tal episódio que aconteceu com Diná. Diz a Torá, em tradução minha:
“Diná, filha de Lea, que tinha dado a luz a Yaacov, saiu para ver as mulheres do local. Shchem ben Chamor, o chivita, o príncipe do local, a viu e a tomou e a violentou com força.” [5]
O texto continua, dando mais detalhes sobre a história: Shchem se apaixona e tenta se casar com Diná e seu povo acaba sofrendo um massacre pelas mãos de Shim’on e Levi. O que falta no texto bíblico é a voz de quem sofreu esta violência. Não sabemos o que se passou com Diná: o que ela sentiu, com quem falou ou no ombro de quem foi chorar. 

A resposta de Yaacov e de seus filhos se preocupa com a honra deles, ninguém fala do que aconteceu com ela! Por isso, Anita Diamant escreveu seu livro e deu voz e opinião às mulheres da história — e, para ser justo, eu adianto que Anita Diamant tem uma leitura totalmente diferente desse episódio.

Esse não é o único caso de violência sexual dessa parashá. No final do capítulo seguinte [6], ficamos sabemos que Reuven, o primogênito de Yaacov, violentou Bilá, a concubina do seu pai. Aqui, eu sigo a leitura de Lia Bass, a primeira brasileira a receber o título de rabina. Ela nota uma questão gramatical: a preposição “et” usada depois do verbo “lishcav, se deitar”  indica o uso de força no ato sexual e aparece apenas três vezes no Tanach, na história de Diná, na história de Reuven e Bilá e na história de Amon e Tamar. Nas palavras da rabina Lia:
Nestas três situações, fica claro que a motivação para o estupro não é o desejo. A questão é o poder, como aprendemos nos nosso tempo. O estupro é um ato violento, um ato de estabelecimento de autoridade e poder através do medo (…) Esta é uma mensagem tão relevante hoje quanto era séculos atrás, pois homens continuam usando e abusando de mulheres como peões em seus jogos de poder.  [7]
Precisamos falar da violência contra as mulheres! Um levantamento do Ministério da Saúde indica que, no Brasil, uma mulher é vítima de violência a cada 4 minutos [8]. Nos quinze minutos que esta prédica deve demorar,  quatro mulheres com nome, com uma história de vida, com sentimentos e dores e desejos e sonhos que terão sofrido algum tipo de violência. Como estima-se que menos de metade das mulheres denunciam essas agressões [9], é possível que neste tempo tenham sido oito ou mais as mulheres que sofreram violência.

Precisamos falar da violência contra as mulheres!

Nossa autopercepção judaica é que esse não é um problema nosso. Judeus não fazem essas coisas…. ainda bem que o Grupo de Empoderamento e Liderança Feminina da Fisesp pensa diferente [10]! Eles criaram uma Central de Acolhimento à Mulher e uma campanha para a denúncia de casos de violência contra a mulher, sob o lema “Violência Doméstica também é um assunto judaico. Use sua voz” e eles alertam: “Agressão verbal, humilhação, intimidação, isolamento e ameaças também são formas de violência.”

O projeto oferece o apoio de psicólogas, psiquiatras, advogadas para ouvir as histórias, dar acolhimento e oferecer apoio a mulheres que estão sofrendo estas agressões. Além da Fisesp, uma rede comunitária de apoio está se empenhando neste projeto — a CIP, por exemplo, tem ajudado dando orientação ao trabalho para mulheres que, ao saírem de casa, precisam desenvolver sua independência financeira.

Eu conversei com nossa querida Miriam Vasserman, Diretora do Grupo de Empoderamento e Liderança Feminina, que me pediu para não divulgar os números de pessoas atendidas, mas eles me deixaram de cabelo em pé. Ela destacou que muitas dessas mulheres não sabem que estão sendo vítimas de violência, acham que seus namorados ou maridos são apenas ciumentos e acreditam na narrativa de que são elas as verdadeiras culpadas, por causa do comprimento da saia, por causa da maquiagem, pela forma como conversaram com um colega.  
Vamos deixar bem claro: violência é inaceitável e a culpa é sempre do agressor. Toda mulher precisa saber disso, toda menina precisa ser educada sabendo disso. A culpa é sempre do agressor!
Eu sou filho de uma mulher, pai de uma menina e, por isso, esse assunto é pessoal para mim. Esse assunto também é pessoal para mim porque eu eu sou homem, pai de um menino, porque eu sou filho de um homem. Não existe solução para esta questão que não envolva mudanças de atitude em nós, homens.
Mudanças nas piadas, mudanças nos comentários, mudanças profundas nas visões de mundo nas quais fomos criados e que não são mais adequadas para a época em que vivemos. 

Somos grande parte do problema e, enquanto não reconhecermos este fato, teremos que continuar lidando com a triste realidade de quase uma dezena de mulheres sofrendo violência no tempo que eu demoro para ler uma prédica. Podia ser a minha filha, ou a tua, podia ser tua dentista, a engenheira da obra ou tua melhor amiga — ou podia ser eu o agressor, podia ser o teu médico ou o teu advogado. 

Uma mulher a cada quatro minutos. Não dá pra achar que o problema vai se resolver sozinho ou sem mudanças profundas, que são sempre difíceis.

Em outra passagem desta parashá, Yaakov fica sozinho na margem do rio e tem um duelo misterioso durante a noite, que o deixa ferido para o resto da vida. Alguns comentaristas interpretam que ele se encontra consigo mesmo e que este encontro no espelho, confrontando suas próprias falhas, olhando pra dentro de si mesmo como nunca tinha feito antes, o deixa profundamente marcado. Deste encontro, ele ganha o nome Israel, aquele que enfrentou Deus e humanos e prevaleceu.

Esta é nossa hora: temos que nos olhar no espelho e reconhecer nossas verdades mais escondidas, nossa responsabilidade em acabar com a vergonha que são as práticas de violência contra a mulher em nosso país e em nossa comunidade. As mulheres já deram o primeiro passo, agora é a hora de nós, homens, fazermos a nossa parte.

Shabat Shalom!

[3] Comentário de Shadal para Gen. 37:35, no qual fala-se em :"filhos e filhas de Iaacov" (no plural para os dois gêneros
[4] Merle Feld, “We All Stood Together”, A Spiritual Life, p. 205. Tradução minha.
[5] Gen. 34:1-2
[6] Gen. 35:22
[7] Rabbi Lia Bass, “No Means No”, in Rabbi Elyse Goldstein (Ed.) The Women’s Torah Commentary, p. 85. Tradução minha.