sexta-feira, 30 de julho de 2021

Dvar Torá: A coragem para desistir e recomeçar (CIP)


Tem um midrash do qual eu gosto muito que diz que, quando Deus começou a construir o universo, criou vários mundos e os destruiu antes de ficar satisfeito até que criou este mundo e declarou “este me agrada; aqueles não me agradam.” [1] Nem Deus acertou de cara quando chegou a hora de um projeto tão complexo quanto a criação do mundo e precisou de algumas experiências falhas antes de Se sentir satisfeito com o resultado.

Eu fiquei pensando muito nesse midrash esta semana quando Simone Biles, a menina prodígio do esporte olímpico revelou sua humanidade e desistiu de competir em Tóquio este ano [2]. Foi interessante escutar a reação de locutores e comentaristas à decisão da atleta e ao seu reconhecimento de que, apesar de estar em plena forma física, está debilitada em sua saúde mental e sem capacidade de competir. Faziam de tudo para explicar que ela se retirava de uma prova mas certamente continuaria no time olímpico; depois que sairia das provas em equipe mas continuaria a competir nas provas individuais e, finalmente, tiveram que reconhecer que Simone Biles, a prodígio, tinha decidido se retirar inteiramente dos Jogos Olímpicos. Pessoalmente, acho que aprendemos mais dos nossos líderes na forma como eles reagem às crises e desafios do que quando vencem; me inspiro mais quando vejo grandes figuras reconhecerem suas vulnerabilidades do que quando falam apenas das suas histórias de sucesso.

Este é um aspecto da tradição judaica que fomos perdendo com o tempo… nossos textos sagrados são cheios de falhas que nossos patriarcas e matriarcas tinham, como Avraham expulsou um de seus filhos a pedido de Sará mesmo com o risco que ele e a mãe morressem de sede no deserto; como Itschak favorecia Essav enquanto Rivcá favorecia o irmão, como Iaacov enganou o pai para receber a benção da primogenitura, como Rachel roubou os ídolos de seu pai. A lista continuaria e seríamos capazes de identificar, para cada antepassado bíblico, traços de sua trajetória pessoal que indicariam falhas de caráter — falhas como todos nós temos! Mas ao longo dos séculos, fomos nos sentindo menos confortáveis em apontar estas falhas nos nossos heróis e fomos construindo narrativas através das quais justificávamos suas falhas e as transformávamos em grandes virtudes. E, assim, fomos nos sentindo também menos confortáveis em reconhecer nossas próprias falhas, tanto individuais quanto coletivas.

Na parashá desta semana, Moshé continua seu discurso relembrando os quarenta anos do deserto, incluindo a entrega da Torá no Monte Sinai, o episódio do Bezerro de Ouro que o leva a quebrar as primeiras Tábuas, e a entrega das Segundas Tábuas na sequência.

Eu tendo a ver a Torá como o livro do nosso projeto conjunto, onde estão reunidos nossos valores e histórias sagradas, a base das nossas leis e o gosto judaico pela polêmica, o fundamento de um sonho com uma sociedade mais justa e mais igual, que proteja seus vulneráveis com especial atenção. A primeira versão deste projeto, determinado em Tábuas talhadas e inscritas inteiramente por Deus, falhou pois não havia como a humanidade dar conta de expectativas que não considerassem nossas vulnerabilidades, nossas inúmeras falhas. O ato de Moshé ao quebrar as Tábuas pode ser visto como aquele que reconheceu a falha em um processo destinado ao fracasso — e que, ao mesmo tempo, abriu a possibilidade da reconstrução do Pacto sobre alicerces mais sólidos.

Como o episódio de Simone Biles escancarou, expectativas irreais a levaram a tremendas frustrações — e no caso da geração do deserto, à idolatria do Bezerro de Ouro. A primeira reação Divina foi de frustração intensa e, não fosse pela intervenção de Moshé, nosso mundo teria entrado para a conta dos mundos que não deram certo e foram destruídos. Mas Deus parece ter percebido que a humanidade precisava de um sonho judaico no qual sua voz também fosse considerada — do ponto de vista mítico, representado nas Tábuas da Lei talhadas por Moshé mas contendo a escrita de Deus; do ponto de vista concreto, representado por uma tradição judaica interpretada e reinterpretada, filtrada por séculos de lentes rabínicas que buscam, através do melhor esforço de cada geração, estabelecer o diálogo entre o humano e o Divino.

Em cada um destes episódios, a coragem de reconhecer a falha, de ter a coragem de parar o curso do rio para determinar para onde queremos navegar foram fundamentais para conseguirmos ter sucesso na sequência. A atitude corajosa de Simone Biles nos inspira, não apenas por ter exposto a crise na saúde mental entre praticantes de esportes de alto rendimento e em tantas outras profissões de alto stress, mas também pela possibilidade de que a atleta, reconhecendo seus limites e seu imenso potencial, saia ainda mais forte deste episódio, trilhando seu verdadeiro caminho e não aquele que narradores e comentaristas gostariam que ela tivesse.

Estamos na ponte entre Tishá beAv e Rosh haShaná, entre o dia de luto pelo ódio infundado disseminado nas nossas sociedades e o dia do nosso julgamento pessoal e coletivo. Esta é uma época de avaliação, de introspecção, daquilo que a tradição chama de “contabilidade da alma”. Que neste processo tenhamos a coragem de reconhecer nossas vulnerabilidades, de desistir de processos que nos levam por caminhos perdidos e de nos reconstruirmos a partir de então.

Shabat Shalom!



[1] Bereshit Rabá 3:7 
[2] https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2021/07/28/simone-biles-sai-de-prova-por-saude-mental-atletas-devem-priorizarbemestar.htm

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