terça-feira, 27 de outubro de 2020

Podcast 5.8 - Episódio 5: Identidades Judaicas: Será que somos Hifenizados?

(originalmente publicado em https://5ponto8.fireside.fm/5)

Nosso universo como judeus e cidadãos é cheio de tensões. Como ser autêntico dentro de uma comunidade? Como ter valores sólidos em meio a uma modernidade cada vez mais líquida?

Em um mundo em que o judaico e o secular interagem e se misturam, às vezes fica difícil separar e identificar como o judaísmo influencia os valores universais ou vice-versa.

Como compreender nossa necessidade, direito e obrigação de agir e transformar a realidade, como judeus e como indivíduos únicos?

E, frente a todas a estas perguntas, será que é possível identificar tendências sobre o futuro das nossas identidades judaicas?

Nosso convidado desta semana é o sociólogo e historiador Bernardo Sorj.

Dicas Culturais:

Com Rogerio Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música de Abertura: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Edição: Misa Obara

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Dvar Torá: Reafirmando nossa humanidade apesar da tecnologia (CIP)

Em seu livro sobre a revolução francesa “18 do Brumário de Napoleão Bonaparte”, impressionado com os papéis de Napoleão Bonaparte e seu sobrinho, Luís Napoleão, que foi o primeiro presidente eleito da França, mas deu um golpe e se tornou seu último monarca, Karl Marx cunhou uma de suas frases mais famosas: “a história se repete: primeiro como tragédia, depois como farsa”. [1]

Em 1918, quando a Primeira Guerra Mundial estava chegando ao seu fim, uma pandemia atacou uma população que já estava desgastada pelos quatro anos da guerra: com a população mal nutrida e em péssimas condições de higiene, a infecção atacou em cheio,  causando uma reação excessiva do sistema imunológico e milhões de vítimas [2]. Entre 50 e 100 milhões de pessoas morreram por esta doença, que na verdade não estava originalmente associada à Espanha. Os estudos mostram que a pandemia teve origem, provavelmente, em acampamentos militares norte-americanos, mas por causa do esforço de guerra, a censura militar impedia que notícias sobre a infecção de soldados americanos fossem divulgadas; sobrou para a Espanha, que não participava da guerra e onde a imprensa podia noticiar livremente as infecções. Estima-se que cerca de 500 milhões de pessoas se infectaram entre fevereiro de 1918  e abril de 1920. No Brasil, as estimativas são de que mais da metade da população da cidade de São Paulo se contaminou pelo vírus e na cidade do Rio de Janeiro, cerca de 12.700 pessoas morreram devido à pandemia [3]. Por todo o mundo, autoridades políticas negaram sua gravidade; quando a seriedade da doença foi compreendida, medidas de distanciamento social foram adotadas; cinemas, escolas e centros religiosos foram fechados e máscaras passaram a ser usadas em locais públicos [4].

 “A história se repete: primeiro como tragédia, depois como farsa.”

Um aspecto no entanto, faz com que a história da pandemia de 1918 e a que estamos vivendo hoje sejam radicalmente diferentes e basta um pouquinho de matemática para percebermos: 500 milhões de pessoas infectadas em 1918, entre 50 e 100 milhões de mortos. A taxa de letalidade era entre 10% e 20% daqueles que se infectavam. Hoje, com quase 42 milhões de infectados e 1.140.422 mortos [5], a taxa de letalidade está na casa de 2,7% — o que ainda é muito alto e justifica todas as medidas de proteção que estamos adotando, mas é muito menos que 20%!

O que explica essa diferença nos números? Em 1918, não existiam remédios anti-virais [6] ou antibióticos [7] que permitissem tratar as infecções secundárias. O primeiro respirador artificial foi desenvolvido apenas em 1928 [8] e a Internet, que tem permitido que médicos de todo o mundo compartilhem, em tempo real, suas experiências no tratamento da doença, não fazia parte nem do sonho das pessoas antes do anos 1960.

Em resumo, o desenvolvimento tecnológico tem salvado vidas todos os dias, tanto na prevenção de novas infecções quanto no tratamento daqueles que já se infectaram. Negar os benefícios que a tecnologia tem trazido às nossas vidas, quando eu falo com vocês através das telas, seria no mínimo tolice.

A parashá desta semana, no entanto, traz alguns alertas sobre os impactos negativos da tecnologia.[9]

Na época sobre a qual a Torá fala, a tecnologia mais recente era o desenvolvimento do tijolo queimado e da argamassa. Com eles, a humanidade acreditou que poderia se transformar em deuses se construíssem uma torre que chegasse até o céu. Deus percebeu que, no ritmo em que eles iam, nada estaria fora do seu alcance e agiu para que seus planos fossem frustrados.

“A história se repete: primeiro como tragédia, depois como farsa.”

Não são poucas as experiências contemporâneas nas quais o desenvolvimento tecnológico tem permitido que acreditemos na possibilidade de nos tornarmos deuses.

Quando eu leio a história da Torre de Babel, imediatamente eu penso na ovelhinha Dolly, o primeiro mamífero nascido por um processo de clonagem, em 1996 [10]. Graças ao desenvolvimento científico e tecnológico que ela desencadeou, especialmente na área de células tronco, temos hoje a possibilidade de curar doenças para as quais não havia qualquer tratamento.

O desenvolvimento de técnicas de clonagem, no entanto, também abriu a possibilidade de manipulação genética para fins de eugenia, um conceito ultrapassado de melhoria genética da espécie humana, popular no século 19 e que deu roupagem científica a preconceitos raciais.  Já imaginou se toda a população pudesse ter olhos azuis? Ou aquela covinha na bochecha quando sorri? Quando seres humanos acreditam que nosso desenvolvimento tecnológico nos permite decidir quais características genéticas a população terá no futuro, onde fica a ética? Onde fica a moral? A busca de bebês que sejam a materialização dos sonhos biológicos de seus pais dá expressão ao sonho maligno do Dr. Josef Mengele, o anjo da morte de Aushwitz, que usava os prisioneiros judeus para seus experimentos.
 
Mas não é só na medicina que a tecnologia tem nos confundido sobre o que ela nos possibilita fazer. Aplicativos inocentes nos nossos celulares permitem que as operadoras saibam todo lugar em que passamos, quem visitamos e quanto tempo ficamos em cada lugar. Tecnologias de reconhecimento facial permitem que padres e rabinos identifiquem quais comentários fazem mais sucesso pela forma como as feições dos fiéis respondem às suas prédicas e sermões. Deep fake, a irmã mais nova no parquinho das maldades, permite que recriemos o que de fato aconteceu, construindo aparições em vídeo onde a voz e a imagem dizem uma coisa, mas a realidade dos fatos diz exatamente o seu oposto.
Muitas vezes, o mesmo desenvolvimento tecnológico que salva vidas coloca na ponta dos nossos dedos capacidades que nos seduzem, que nos fazem sentir todo-poderosos e que traem nosso sonho de uma sociedade mais justa, mais aberta, mais inclusiva. 

Uma outra forma como a tecnologia tem permitido que nos sintamos deuses é o efeito da caixas de ressonância criadas pelas redes sociais. Em uma live no domingo passado [11], em que lançou a edição em português do seu livro “O Impasse de 1967”, o dr. Micah Goodman falou de como o negócio de empresas como facebook, YouTube e Twitter, é reter a nossa atenção e como, infelizmente, ideias extremas e que confirmem aquilo no que já acreditamos capturam nossa atenção com muito maior eficiência. Por isso, as redes sociais tendem a gerar uma radicalização do discurso, dando legitimidade a ideias que germinavam apenas nos segmentos mais extremos da população e a criar contextos uniformes, que dão a aparência de que todos concordam com a tua opinião.

Nessas caixas de ressonância, em que nossas opiniões reinam sem que sejam questionadas, nos sentimos deuses, senhores absolutos de toda a razão. Nesses cenários, não existe incentivo algum para escutar a perspectiva do outro; não existe nem mesmo o reconhecimento de que este outro, que pensa diferente, existe. Neste cenário polarizado, em que cada um se considera o único dono da verdade, o diálogo com quem pensa diferente é uma traição inaceitável. Basta ver a reação da massa quando um político eleito por uma plataforma ideológica é visto conversando com um político que representa outra ideologia. A política, a arte da produção de consensos, de busca de campos comuns, tem sido negada, não só pelos escândalos de corrupção, mas principalmente por uma pureza ideológica que não aceita nenhum tipo de concessão.

Yeshayahu Leibowitz, um filósofo ortodoxo israelense de ideias polêmicas e que incomodava todos os governos de Israel, afirmou que o conceito de Bavel, a cidade em que todos tinham a mesma linguagem e as mesmas palavras é um eufemismo para falar de totalitarismo, a situação em que todos são forçados a pensar o mesmo e no qual uma ideia diferente é percebida como uma traição.

Leibowitz escreveu: 
“Uma linguagem e um discurso é, de acordo com muitas pessoas ingênuas em nossos dias, a descrição de uma situação ideal: toda a humanidade em um único bloco sem diferenciação e, como resultado, sem conflitos. Mas quem realmente entende saberá que não há nada mais ameaçador do que este conformismo artificial: uma cidade e uma torre como o símbolo da concentração de toda a humanidade em um único tópico – onde não haverá diferenças de opinião e onde não haverá mais conflito sobre diferentes pontos de vista e valores. Não se pode imaginar maior tirania do que esta, não se pode imaginar maior infertilidade mental e moral do que esta – que não deve haver exceções e que não deve haver desvios do que é aceito e acordado, situação mantida pelos meios artificiais de uma cidade e uma torre.” [12]

O que o tijolo queimado e a argamassa produziram na geração da Torre de Babel, as redes sociais replicaram na nossa geração: a possibilidade de acharmos que somos quase-deuses e, assim,  que todos devem pensar o mesmo que nós e adotar o nosso discurso.

Para Leibowitz, a resposta de Deus, espalhando as pessoas pelos quatro cantos da terra e fazendo com que adotassem idiomas diferentes, não foi uma punição, mas um sinal da compaixão infinita de Deus pela humanidade. Para ele, foi só em um mundo em que não havia mais uma única língua e um único discurso que Avraham, o mais iconoclasta dos nossos patriarcas, pôde aparecer e questionar a tradição dos seus pais.

“A história se repete: primeiro como tragédia, depois como farsa.”

Não faz sentido desejarmos viver em um mundo sem tecnologia, da mesma forma que não faria sentido para Avraham rejeitar o uso do tijolo queimado e da argamassa. No entanto, é fundamental que reconheçamos também os efeitos nocivos que a tecnologia pode trazer consigo — a notícia boa é que nenhum deles é inevitável. Podemos assinar jornais nos quais posições plurais sejam expressas; podemos buscar diálogo com quem pensa radicalmente diferente da gente; podemos rejeitar ou limitar o uso de tecnologias que, apesar de oferecerem comodidades, invadem a nossa privacidade ou, ainda pior, nos permitem invadir a privacidade dos outros.

Que nesta distopia em que temos vivido, na qual nos tornamos cada vez mais dependentes da tecnologia, tenhamos a coragem de olhá-la nos olhos e re-afirmar a nossa humanidade.

Shabat Shalom

[1] https://en.wikipedia.org/wiki/The_Eighteenth_Brumaire_of_Louis_Bonaparte
[2] https://en.wikipedia.org/wiki/Spanish_flu
[3] https://brasilescola.uol.com.br/historiag/i-guerra-mundial-gripe-espanhola-inimigos-visiveis-invisiveis.htm
[4] https://en.wikipedia.org/wiki/Spanish_flu#Public_health_management
[5] https://en.wikipedia.org/wiki/Template:COVID-19_pandemic_data acessado em 23/10/2020.
[6] https://en.wikipedia.org/wiki/Antiviral_drug
[7] https://en.wikipedia.org/wiki/Antibiotic#History
[8] https://en.wikipedia.org/wiki/Ventilator#History
[9] Gen. 11:1-9
[10] https://en.wikipedia.org/wiki/Dolly_(sheep)
[11] https://youtu.be/dE9jvFAOd1c
[12] Yeshayahu Leibowitz, Earot leParshiot haShavua, Ch. 2: Bereshit - Noach




A esperança que supera o desespero

Há alguns anos, o rabino Ariel Kleiner e eu liderávamos juntos um grupo de estudos da parashá com midrash e arte na sala de estar da minha casa. Logo na segunda semana do projeto, nos deparamos com parashat Noach, que conta a história da Arca de Noé e que lemos esta semana novamente. O rabino Ariel e eu tínhamos entendimentos radicalmente diferentes de como o texto bíblico se relacionava com a realidade contemporânea. Para mim, focando na decisão Divina de destruir o mundo através de um dilúvio, este era um alerta para a nossa sociedade de como o comportamento irresponsável de uma geração tinha levado o planeta à sua quase-destruição; para ele, focando no final da história, quando as águas baixaram e Noé, sua família e os animais desceram da arca, esta era uma história sobre esperança, um exemplo de como, mesmo após as piores catástrofes, existe a possibilidade de reconstrução.

Bem no espírito dos debates rabínicos, a verdade é que nós dois tínhamos razão! Esta história da Torá é tanto sobre destruição quanto sobre reconstrução; é um alerta e também um sinal de esperança -- e nesses dois aspectos, profundamente necessária nos nossos dias. 

“A terra tinha se corrompido frente a Deus e tinha se enchido de violência” [1] parece uma descrição da realidade em que vivemos: a realidade em que vivemos nos leva perigosamente próximos a desastres, seja pelo esgotamento dos recursos naturais, pela acirramento dos conflitos sociais e internacionais, ou pela nossa incapacidade de demonstrarmos empatia pela situação do outro quando quadros de crise exigem ações coordenadas, seja pelo coronavírus ou por desastres naturais. Temos perdido nosso senso de responsabilidade para com o coletivo, do qual a recusa em usar máscaras em certos segmentos é apenas uma manifestação, como bem indicou Yehuda Kurtzer em um artigo recente [2]; a devastação ambiental bate recordes a cada ano, sem que consigamos diminuir a velocidade com que destruímos os recursos naturais; depois de seis décadas em que parecia que o mundo tinha aprendido uma lição das tragédias da primeira metade do século XX e buscava frear nacionalismos radicais, movimentos neonazistas e outras correntes baseadas no ódio ao diferente, incluindo muitos movimentos antissemitas, têm reaparecido em diversas partes do mundo; as democracias liberais, baseadas na sociedade civil e no respeito às instituições também parecem viver profunda crise; o sistema multilateral de relações internacionais que procurava evitar novos conflitos através da cooperação entre as nações está desmoronando e aumentam os conflitos entre as principais potências. Vista por esta perspectiva, nossa situação é desesperadora.

Na tradição judaica, no entanto, o desespero dá lugar à possibilidade de t’shuvá, a transformação das nossas condutas que possibilita nosso retorno à melhor versão de nós mesmos. Apesar de reconhecer nossa tendência a sermos seduzidos por nossos olhos e corações, há um otimismo inerente à visão judaica de mundo, de que reformaremos nossas condutas e, neste processo, ajudaremos a transformar o mundo. O rabino Ariel tinha razão: a história do Dilúvio não termina com a destruição do mundo, mas com a sua reconstrução e com a esperança, trazida pela pomba, de uma vida muito diferente. Assim,  a Torá não permite que o desânimo pelo estado atual das coisas nos leve a desistir: não permitiu na geração de Noach e continua não permitindo nos nossos dias.

O ciclo de leitura da Torá está apenas começando -- oferecendo a todos nós uma nova oportunidade de nos reencontrarmos com o texto central da nossa tradição e, através deste encontro, buscarmos transformar o mundo em um lugar justo para todos.

Shabat Shalom

[1] Gen. 6:11
[2] https://www.theatlantic.com/ideas/archive/2020/10/brooklyns-anti-masking-protests-betray-a-broken-culture/616694/



terça-feira, 13 de outubro de 2020

Podcast 5.8 - Episódio 4: Identidade Judaica: Novas Ondas

(originalmente publicado em https://5ponto8.fireside.fm/4)

leDor vaDor, de geração em geração -- pra muita gente, esta é a premissa básica do judaísmo, a ideia de transmitirmos nossas práticas, tradições e valores de uma geração para a outra. E apesar de falarmos e cantarmos sobre esta transmissão como algo óbvio, quase natural, podemos ler nas entrelinhas de vários textos judaicos que muitas vezes ao longo da nossa longa história, talvez todas as vezes, os mais jovens quiseram escrever a sua própria trajetória.

Continuamos falando em “liderança judaica do futuro”, mas esse futuro parece nunca chegar e o conceito de “liderança do futuro” não reconhece que parte da juventude já é liderança hoje, sem precisar esperar nenhum outro tempo. Mais do que isso: a juventude tem seus próprios sonhos de vida judaica, nem sempre totalmente alinhados com os de seus pais ou das grandes instituições comunitárias, mas que têm levado a atitudes concretas, que fazem diferença e mudam nosso caminho e pensamento como povo.

Como será, no Brasil de hoje, ser jovem e judeu com todas as outras identidades acopladas que cada um traz na mala? Quais são as transformações pelas quais lutam os jovens judeus? Quais são as novas identidades judaicas que eles estão construindo?

Essas são algumas das perguntas sobre as quais vamos conversar hoje com duas jovens lideranças judaicas: Guilherme Pasmanik e  Eduardo Barros.

Dicas Culturais:

Com Rogerio Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música de Abertura: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Música de encerramento: Avraham Avinu interpretada por Eduardo Barros, com produção musical de Daniel Tauszig. Versão para o filme "200 Anos de Imigração Judaica do Mediterrâneo", do diretor Marcio Pitliuk.
Produção Executiva e Edição: Marie Naudascher

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Dvar Torá: o imperativo judaico da consciência ambiental

No dia 26 de novembro de 2017, o jovem Matheus Dutra Thomaz Aldeia, de 17 anos tomou seu café da manhã reforçado e, como tinha planejado, saiu da sua casa em Embu das Artes pra pegar o ônibus. O tempo passava e o ônibus não chegava e, quando veio, estava lotado. Quem anda de ônibus sabe que ônibus lotado sempre demora mais, para em todos os pontos, demora pras pessoas conseguirem entrar e sair. Quando, finalmente, Matheus conseguiu chegar ao seu destino, a Faculdade de Economia, Administração e Ciências Contábeis da USP, os portões tinham acabado de fechar — e ele viu frustrado seu sonho de tentar uma vaga para o curso de Publicidade e Propaganda na USP [1].

Todo ano, no final de Iom Kipur, a cerimônia de Neilá, eu fico pensando nessas cenas, que a gente vê todo ano de gente que chegou alguns minutos atrasado para uma prova importante e deu com o portão fechado. Neilá quer dizer “trancamento” e como eu disse no final da cerimônia deste ano, há muito debate sobre o que de fato está sendo trancado. Pessoalmente, eu não acredito que os portões da t’shuvá o processo de introspecção, auto-análise e transformação se tranquem de verdade. Eles estão nos esperando o ano inteiro, só esperando darmos o primeiro passo, prontos para que usemos a chave que sempre levamos no bolso, abramos a porta e, pé-ante-pé,  entremos nesse espaço.

Segundo algumas tradições místicas, é só em Hoshaná Rabá, o sétimo dia de Sucot que a gente acabou de terminar, que o processo de inscrição, confirmação e selamento dos nossos nomes no Livro da Vida é encerrado. Como eu disse, eu acredito que as portas da t’shuvá tão abertas o tempo todo, mas Hoshaná Rabá também é um dia no qual pedimos especialmente por água. Segundo a Mishná, o mundo todo é julgado em Sucot com respeito às chuvas [2] e as comemorações das noites de Sucot na época do Templo em Jerusalém faziam uso intenso de água, com muita música e dança — realmente validando a idéia de que Sucot é Zman Simchateinu, o tempo da nossa alegria. De acordo com a Mishná, “uma pessoa que não tenha visto Simchat Beit haShoevá [essas comemorações], nunca viu alegria na vida.” [3] Esse é um dos versos associados a estas comemorações:

וּשְׁאַבְתֶּם מַיִם בְּשָׂשׂוֹן מִמַּעַיְנֵי הַיְשׁוּעָה. 
Vocês devem retirar água com alegria das fontes da redenção [4]

Neste contexto de pedidos por chuva, Hoshaná Rabá, o sétimo dia de Sucot é, então, o último dia para implorarmos por água na medida certa — e, como é normal nas nossas últimas chances, os pedidos são reforçados nesta data.

Vivemos em sociedades urbanas, nas quais, na maioria das vezes, não pensamos em como a água e as chuvas são essenciais para a vida. Além disso, a ideia de rezarmos por chuva nos parece tão contrária à nossa mentalidade científica que aqueles entre nós que se dispõe a participar destes rituais, o faz por concessão ao folclore judaico, sem realmente acreditar que uma reza ou um jejum por chuva possa ter qualquer impacto. 

O rabino Yedidya Sinclair, que trabalha com Hazon, a principal entidade judaica trabalhando em questões ligadas ao meio-ambiente e à sustentabilidade nos Estados Unidos, diz que esta perspectiva teve início após o terremoto de Lisboa de 1755, que os especialistas imaginam ter atingido um valor entre 8,7 e 9 na escala Richter. Voltaire, o filósofo francês da época do Iluminismo, entende que não é possível atribuir qualquer impacto teológico ao evento, que teria acontecido pelas forças da natureza e da Física, não por desígnio de um Deus benevolente que tivesse querido punir algum grupo em Lisboa. O paradigma da dissociação entre os eventos naturais, como os terremotos ou o clima o comportamento humano se estabeleceu, quase que incontestável, desde então até o final do século XX. De acordo com o rabino Sinclair, o furacão Katrina, que causou estragos enormes em Nova Orleans em 2005, é o primeiro desastre natural no qual esta perspectiva foi questionada. De acordo com o consenso científico, a ação humana tem levado a fenômenos climáticos mais extremos: tempestades, furacões, secas e incêndios muito mais devastadores do que eles eram no passado.

Tendências históricas precisam ser analisadas em contextos mais amplos, mas São Paulo viveu nas últimas semanas alguns dos dias mais quentes desde que a temperatura é registrada por aqui [5] e ainda falta mais de dois meses para o início do verão; mais de um quarto do Pantanal já foi queimado este ano [6]; a Califórnia enfrenta incêndios terríveis que colocam em risco milhões de pessoas. Depois de Katrina, vários outros furacões igualmente destrutivos afetaram o Sul e o Meio-Oeste dos Estados Unidos. Este ano [7], a Europa sofreu inundações como não via há 500 anos, a África Oriental e a América do Sul sofreram com nuvens de gafanhotos devastadoras [8]. A ideia de que a ação humana tem, sim, impacto nos fenômenos naturais não parece tão absurda como achavam os filósofos iluministas.

O rabino Sinclair diz que o Tratado de Tannit do Talmud deveria se chamado Tratado Mudança Climática, tal é a relevância dos assuntos lá levantados para a discussão do impacto da ação humana sobre o clima e sobre nossa condição de vida neste planeta. Ele diz “As primeiras dez páginas do volume tratam muito pouco de reza e muito sobre o estado das coisas na sociedade que levam a mudanças nas condições do clima: as chuvas vão parar por causa de roubos, as chuvas vão parar por causa das trapaças das pessoas. Tratar do questão das chuvas leva rapidamente à conclusão de que a forma de resolver este problema não é através das rezas, mas através da regeneração social e espiritual.

Mary Evelyn Tucker e John Grim, que dirigem o Forum de Religião e Ecologia da Universidade de Yale nos Estados Unidos, escreveram: 

Uma crise ambiental dessa complexidade e abrangência não é resultado apenas de certos fatores econômicos, políticos e sociais. É também uma crise moral e espiritual que, para ser tratada, exigirá uma compreensão filosófica e religiosa mais ampla de nós mesmos como criaturas da natureza, inseridos em ciclos de vida e dependentes de ecossistemas. As religiões, portanto, precisam ser reexaminadas à luz da atual crise ambiental. [9]

A verdade é que a tradição judaica está muito bem equipada pra tratar desses assuntos. Eu quero convidar vocês a acompanharem nos seus sidurim a partir da página 16. Eu vou ler a tradução interpretativa do rabino Arthur Waskow para os 3 parágrafos do Sh’má, que eu considero uma excelente apresentação dos temas em termos relevantes para a nossa realidade:

Se você ouvir, realmente escutar o “Eu”, aquele “Eu” que fala por todo o Universo, esse “Eu” que fala do fundo de cada um de nós como o nosso ser mais pleno, mais completo.

Se você ouvir, realmente escutar, o que “Eu” ensino sobre as vínculos que te conectam com a Totalidade de toda a vida - para amar a Respiração da Vida e trabalhar pelo Poder Criativo do mundo com todo o teu coração e a cada respiração —  

então as chuvas cairão como deveriam, 
os rios vão correr, 
os céus vão sorrir 
e a boa terra te alimentará com abundância como os grãos, com alegria como o vinho, com suavidade como o azeite.
Mas se você dividir o mundo em partes e escolher um ou alguns para adorar — como deuses de riqueza e de poder, de ganância, da ambição, do vício em fazer e produzir sem interrupção para ser ou para praticar o Shabat, então a harmonia que você quebrou vai, com seus estilhaços, destruir a tua harmonia —

a chuva não vai cair [ou será ácida], 
os rios não correrão [ou irão transbordar porque você não deixou solo que a chuva possa encharcar], 
e os próprios céus se tornarão teus inimigos [a camada de ozônio deixará de te proteger, o dióxido de carbono que você despejar no ar queimará teu planeta], e você perecerá da boa terra que o Sopro da Vida exala por você.

Então, deixe essas verdades se estabelecerem no teu coração, Respire-as a cada sopro, encha cada ação das tuas mãos com elas e guie os teus olhos para enxergar profundamente ao observar a luz delas.

Ensine-as às crianças que viverão ou morrerão em um planeta que você transformou em ruínas ou que fez florescer. Compartilhe-as uns com os outros em suas casas, ao escolher como comer e como se aquecer; Compartilhe-as em suas estradas quando decidir como viajar e quais combustíveis usar;

Compartilhe-as conforme você cruzar cada limiar de vez em quando, de um lugar para outro.

Então, os teus dias e os dias dos teus filhos serão maduros e completos e muitos,

O que as árvores expirarem, você inspirará; o que você expirar, as árvores vão inspirar;

Como o Sopro da Vida jurou para aqueles que vieram antes de você, assim será também para você e para aqueles que te seguirem, a Terra será tão harmoniosa quanto o céu.

Aquele que é ilimitado disse a Moshé: Fale com Filhos de Israel. Diga-lhes para fazerem tsitsit nas pontas das suas roupas, ao longo de suas gerações. Peça-lhes que coloquem no canto tsitsit um fio azul roial. Este é o seu tsitsit. Olhe para isso e lembre-se de todas as mitsvot de ה׳. E cumpra-as, para que não vá atrás dos desejos do seu coração ou do que chamar a sua atenção, para que se lembre de cumprir todas as minhas mitsvot e ser santo para o seu Deus.

Se escutarmos, realmente escutarmos, o que a nossa tradição está nos dizendo — ela está afirmando que as nossas ações importam e têm impacto e é nossa responsabilidade cuidar pelo impacto das nossas ações. Quem assistiu a conversa ontem sobre Kohelet com os três rabinos da CIP e a rabina Nelly Altenburger [10] viu a relação que a rabina Nelly estabeleceu entre a destruição do Templo em Tishá b’Av e a construção da Sucá nesta época do ano. Com o Templo e sua estabilidade permanente, foram embora nossas certezas, nossa crença em um mundo no qual os sacrifícios seriam suficientes para sustentar nossa relação com o mundo. Uma sucá, com toda a sua fragilidade, é a resposta humana a um mundo que percebemos como vulnerável e em constante transformação. 

Eu ainda me lembro de quando levávamos de volta as garrafas de refrigerante de vidro pro supermercado e quando esta prática teve fim pela introdução das embalagens PET. Contrariando as palavras do Sh’má, nos deixamos sermos seduzidos pelos nossos olhos e principalmente pela conveniência. 

Pela conveniência de não ter que lavar, 
pela conveniência de não ter que guardar, 
pela conveniência de não ter que devolver,
pela conveniência de podermos agir sem considerarmos as implicações dos nossos atos para o futuro do planeta que deixaremos para nossos filhos.

Quem sabe, na sequência deste Hoshaná Rabá de 5781, escutemos nossas próprias súplicas, escutemos nossas próprias rezas, escutemos o que diz o Sh’má, e deixemos de idolatrar a conveniência.

Sucot chegou ao fim, o Livro da Vida, pelo que dizem por aí, está fechado. Mas os portões da tshuvá estão escancarados nos esperando. O mundo está gritando que espera nosso retorno e é só por teimosia que ainda não lhe demos ouvido.

Shabat Shalom e Chag Sameach

[1] https://g1.globo.com/educacao/noticia/fuvest-2018-candidato-chega-atrasado-perde-prova-e-culpa-problema-no-transporte-publico.ghtml
[2] Mishná Rosh haShaná 1:2
[3] Mishná Sucá 5:1
[4]  Isaías 12:3
[5]  https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/10/02/sao-paulo-tem-novo-recorde-de-calor-em-2020-e-segunda-marca-mais-quente-da-historia-da-cidade.ghtml
https://agora.folha.uol.com.br/sao-paulo/2020/10/estado-de-sao-paulo-registra-maior-temperatura-da-historia.shtml
[6]  https://gazetaweb.globo.com/portal/noticia/2020/10/area-devastada-no-pantanal-e-maior-que-o-estado-de-alagoas-diz-inpe_116733.php
[7]  https://edition.cnn.com/2020/08/28/weather/rapid-fire-disasters-in-coronavirus-pandemic-weir-wxc/index.html
[8] https://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2020/08/21/argentina-monitora-10-nuvens-de-gafanhotos-risco-de-entrada-no-brasil-e-baixo.ghtml
[9] https://fore.yale.edu/Publications/Books/Religions-World-and-Ecology-Book-Series/Challenge-Environmental-Crisis
[10] https://youtu.be/wIY-BWFRMWk



sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Uma sinfonia para o ano novo!

Em uma conversa recente com o intelectual carioca Paulo Geiger que virou o terceiro episódio do podcast 5.8 [1], ele citou a frase “chadesh iameinu kekedem”, “renove os nossos dias como os outrora” [2] como evidência da constante e paradoxal busca judaica de transformação por meio  da tradição. Para ele (e eu concordo), o judaísmo conseguiu manter a si mesmo e seus valores relevantes ao longo dos séculos por ter tido a flexibilidade de se transformar continuamente.

Neste shabat temos uma leitura da Torá especial, por ser o primeiro dia de Sucot. Nela, Deus define alguns dos parâmetros básicos do calendário judaico: o shabat, Pessach, Shavuot, Rosh haShaná, Iom Kipur e Sucot [3]. Lendo esse texto em 5781, talvez não reconhecêssemos, pelas suas descrições, algumas das datas mencionadas: não se fala em entrega da Torá em Shavuot, da peregrinação pelo deserto em Sucot ou do começo do ano em Rosh haShaná. Todas essas, são interpretações rabínicas sobre o texto da Torá, evidência do processo que Paulo Geiger descreveu, de como mantivemos a relevância da tradição adaptando-a e atribuindo novos significados.

Como uma sinfonia bem composta, as festas judaicas dialogam entre si buscando harmonia e equilíbrio e suas mensagens têm se mantido incrivelmente atuais. O foco universal na liberdade do Pessach, por exemplo, é balanceado pela perspectiva particularmente judaica do pacto de Deus com nosso povo, simbolizado pela entrega da Torá que celebramos em Shavuot.

Nesta época do ano em que estamos, o foco na reflexão, na introspecção e na espiritualidade de Rosh haShaná e Iom Kipur levam a nosso crescimento pessoal mas poderiam nos cegar para a realidade do que acontece ao nosso redor, especialmente para os mais vulneráveis. Há um risco de, ao repetirmos o Unetanê Tokef e nos darmos conta da nossa própria fragilidade, desenvolvermos condutas que buscassem apenas à nossa própria salvação. Sucot dá resposta a esse risco e nos expõe às nossas fragilidades coletivas e do planeta, com foco em quem vive permanentemente em cabanas ou nas ruas.

Também as novas datas que os Rabinos incorporaram ao calendário judaico como parte de seu projeto de inovação por meio da tradição mantiveram sua relevância ao longo do tempo. Em Purim, entre outros assuntos, falamos de riscos da vida judaica na diáspora que tem sido especialmente verdadeiros nos últimos anos em várias partes do mundo: o risco de nos vermos sem poder algum e vulneráveis às autoridades do momento ou, de forma paradoxal e paralela, de sermos seduzidos pelo poder e abrirmos mão dos nossos valores. Em Chanucá, a festa em que buscamos trazer luz a um mundo cada vez mais tomado pela escuridão, questões parecidas se apresentam, dessa vez na terra de Israel: a possibilidade de respeitarmos as diferenças (e sermos respeitados) ao mesmo tempo em que dialogamos com outras culturas. A leitura rabínica de Tishá b’Av nos leva a considerar qual nosso papel para dar fim a uma cultura do ódio, no qual sermos indiferentes é sinônimo de conivência.

Dando ritmo a essa sinfonia, o Shabat marca, a cada semana, a possibilidade de apenas sermos. Com um longo respiro, buscamos nos centrar novamente, recarregando as baterias do corpo e as energias da alma. E cada maestro, cada solista, dão seus toques especiais à música, adequando-a aos tempos e à pluralidade da vida judaica.

Nesse ritmo, o calendário judaico tem o potencial de dar textura e significado ao nosso tempo -- mas depende de cada um de nós permitirmos que essa sinfonia faça parte da trilha sonora das nossas vidas. Quem sabe, 5781 é o ano em que você vai tentar fazer isso?

Shabat Shalom e Chag Sameach!


[1] https://5ponto8.fireside.fm/3
[2] Lamentações 5:21
[3] Lev. 23