sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Dvar Torá: Reservatórios escondidos da Ner Tamid interior (CIP)


Nestes dias, nós completamos um ano de pandemia no Brasil: foi em 25 de fevereiro de 2020 que o primeiro caso foi registrado no Brasil. Vocês lembram como foram os primeiros dias da pandemia? O primeiro serviço de Cabalat Shabat que transmitimos online foi no dia 13 de março, ainda com a presença do público. Um dia antes, uma equipe de umas dez pessoas, entre profissionais e voluntários da CIP, tínhamos saído assustados de uma reunião com epidemiologistas do Einstein e entendido que a Covid-19 estava chegando com força e que era preciso nos prepararmos. Uma semana antes, ainda estávamos nos reunindo sem maiores preocupações e até tivemos um jantar comunitário de Purim mas tudo mudou a partir de então. No Cabalat Shabat do dia 13, teríamos uma Laila Laván, um acantonamento dos alunos de Bar e Bat que passariam a noite aqui na sinagoga e que foi cancelada na última hora. Já na semana seguinte, no shabat do dia 20/03, fizemos o Cabalat Shabat com a sinagoga vazia pela primeira vez e assim tem sido desde então….

Naqueles primeiros dias, o Ale gravou um vídeo pro facebook cantando uma música do Raul Seixas,“O dia em que a Terra parou”, com uma pequena mudança — a versão que o Ale cantou dizia: “nas sinagogas, ninguém para rezar pois sabiam que o rabino também não tava lá e o chazán não apareceu para cantar pois sabia que não tinha ninguém para escutar.” [1]

Pois é… estamos aqui, praticamente um ano depois, 251.661 [2] vidas perdidas depois, no número de ontem. Cada um de nós, cansados, carentes de um abraço apertado, sem aguentar mais aulas e reuniões por Zoom, festas de aniversário a distância, happy-hours em que a gente cada um toma a sua cerveja e come o seu petisco sem poder compartilhar com os outros… é como se a gente fosse sentindo aquela luzinha interior que cada um tem se apagando, um sentimento que é ainda mais agudo e doloroso quando a gente vê a luz dos nossos filhos diminuindo.

Se a gente voltar ainda mais no tempo, 5781 anos para ser exato, e voltar para a criação do mundo de acordo com a narrativa judaica, a Torá diz que a primeira coisa que Deus criou foi a Luz, e viu que era boa e distinguiu a Luz da Escuridão [3]. A mística judaica diz que esta primeira luz foi escondida e a luz que temos hoje é aquela que apareceu no quarto dia da criação, quando Deus criou o Sol, a Lua e as estrelas. Este assunto do que aconteceu com האור הגנוז, a Luz Priomordial que foi escondida, é assunto de muita especulação na literatura [4]. Há midrashim que dizem que ela está guardada para os tsadikim, para as pessoas especialmente justas e corretas, que a receberão no futuro [5]. O Zohar, por outro lado, a obra central da Cabalá argumenta que, se esta Luz Primordial tivesse sido inteiramente removida, não seria possível que a vida continuasse existindo. Pelo contrário, diz o Zohar, essa Luz foi escondida e plantada como uma semente, que gera frutos e suas próprias sementes e possibilita que o mundo continue existindo [6].

A liturgia diária talvez reflita um pouco desta perspectiva — na reza que. vem imediatamente depois do Barechú, que trata da questão da luz e na qual agradecemos a Deus por formar a luz e criar a escuridão, fazer a paz e criar tudo, nós afirmamos que Deus renova a todo dia e sempre os atos da Criação. Esta criação contínua que nunca para e que é nutrida pela Luz Primordial, ainda que não seja totalmente claro como este processo acontece.

Nesse momento em está mais difícil manter as nossas próprias luzes internas, as faíscas divinas que nutrem a nossa própria alma, eu adoraria descobrir um reservatório assim de luz escondida, animando um processo permanente de Criação. 

A parashá desta semana também trata de luz — logo no seu começo, ela traz a instrução para que os israelitas estabelecessem uma ner tamid, uma luz eterna que ficasse acesa o tempo todo. Os comentaristas quebraram a cabeça tentando entender o motivo para esta instrução. Hoje em dia é fácil: ligamos uma lâmpada em um fio que não está ligado a nenhum interruptor e garantimos que, a menos que falte luz elétrica, a luz eterna não se apagará. Imaginem, no entanto, antes da invenção da luz elétrica — manter a tal chama acesa permanentemente implicava ter uma fonte permanente de combustível, normalmente azeite que precisava ser sempre adicionado para que a chama não se apagasse.

Um professor querido meu, o rabino Nechemia Polen, diz que precisamos ler muitas passagens da Torá como instrumentos para alimentar a relação entre Deus e a humanidade, como buquês de flores que casais se presenteiam sem motivo algum ou as delicadezas do dia a dia que fazemos àqueles de quem gostamos. Pequenos gestos de apreciação cotidiana, que indica para a outra pessoa que ela é importante para nós. Um midrash [7] é rápido em afirmar que Deus não precisa desta luz, a instrução para colocá-la acima da arca só está lá para nosso benefício.

Quem sabe, foi justamente para este momento e outros momentos de desespero ao longo da história judaica, que a luz eterna foi estabelecida? Uma lembrança da nossa capacidade permanente de recriação em um mundo dinâmico, uma indicação que existem recursos escondidos até mesmo de nós mesmos aos quais podemos recorrer quando as notícias parecem especialmente desanimadoras, um recado claro de que depende de nós alimentarmos constantemente o azeite para que a nossa luz eterna continue brilhando, iluminando as nossas vidas e de todos aqueles ao nosso redor.

Aquela reza à qual eu fiz menção, ela termina dizendo אוֹר חָדָשׁ עַל צִיּוֹן תָּאִיר וְנִזְכֶּה כֻלָּנוּ מְהֵרָה לְאוֹרוֹ, “que uma nova luz brilhe sobre Tsión e que todos possamos vê-la em breve”. A tradição tem entendido que essa frase indica que a Redenção, esta nova luz que esperamos que brilhe sobre todos nós, não precisa ser inventada, ela apenas precisa ser revelada e tirada do seu esconderijo, um processo que envolve cada um de nós e nossos esforços de manutenção das nossas luzes eternas.

Que nesse shabat, ainda escondidos em nossas casas, possamos revelar nossas luzes e, assim ganhar impulso para iluminar o mundo todo. 

Shabat Shalom!


[2] https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/02/25/brasil-bate-recorde-de-mortes-por-covid-19-registradas-nas-ultimas-24-horas-1582.ghtml
[3] Gen. 1:3-4
[4] https://www.jstor.org/stable/26833118
[5] Bereshit Rabá 3:6
[6] Zohar II 148b-149a. 
[7] Shemot Rabá 36:2

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