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quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Faz sentido perguntar “quantas esposas é demais”?!


Quando eu era criança, preciso reconhecer, eu cantava “Atirei o Pau no Gato” sem pensar muito no bem estar dos animais. Quem sabe, se o pau fosse atirado contra um cachorro, não contra um gato, eu teria mais empatia pela vítima da ação, mas como nunca fui lá muito fã dos felinos, nem me dava conta da violência da ação. Quando eu já era adolescente, comecei a escutar versões da música que, ao se proporem um papel educativo, trocavam a letra para dizer “não atire o pau no gato porque isso não se faz, o gatinho é nosso amigo, não devemos maltratar os animais.” Ao mesmo tempo em que cantávamos isso de forma ridicularizada, fazendo pouco caso da preocupação em trocar a letra de uma música infantil para não incentivar a violência contra os animais, eu me dava conta, pela primeira vez, que a letra original era, de fato, violenta e encorajava comportamentos indesejados.

Ao olharmos para o passado, é relativamente comum percebermos comportamentos inapropriados que aceitávamos como naturais e que hoje não são mais aceitáveis. Entramos no mês de Elul, o último do calendário judaico, no qual damos ênfase ao processo de Cheshbón haNéfesh, a contabilidade da alma, no qual olhamos com atenção para nossa ação no ano que passou, identificando onde fomos a pessoa que gostaríamos e onde nos afastamos deste ideal. É também uma oportunidade para expandirmos o olhar e percebermos quais condutas inadequadas continuam naturalizadas e que devem ser reavaliadas.

Na parashá desta semana, Shoftim, o povo recebe autorização para ter um rei depois de entrarem na Terra Prometida. O texto deixa claro que este líder seria um homem, ao mesmo tempo em que estabelece limites para o poder do monarca: ele deve ser israelita, não poderá acumular riqueza excessiva em outro, prata ou cavalos, não mandará seu povo de volta ao Egito e não terá muitas esposas. O texto não explicita quanto seria “muitas” mas parece haver um consenso de que até dezoito esposas seria aceitável; acima desse número, já seria um exagero.

Por muito tempo, os comentaristas desta passagem (homens, todos eles) [1] debateram se o número dezoito era exagerado ou não, se ele poderia ser ultrapassado se todas as mulheres fossem “boas”, se o limite se aplicaria também a uma pessoa que não fosse rei. Ninguém perguntou, no entanto, porque as esposas estavam listadas juntamente às demais riquezas que o rei podia acumular, ainda que com limites. Talvez a maior inovação que o judaísmo trouxe ao mundo foi a ideia de que todos os seres humanos foram criados à imagem e semelhança de Deus e que, portanto, são dotados de dignidade inalienável. Será que as instruções ao rei que tratam suas esposas como propriedade refletem este profundo valor judaico?

Podemos encontrar exemplos semelhantes, nos quais as mulheres não foram tratadas com a devida dignidade em outras histórias da tradição judaica (o livro de Ester ou a história do rei Shlomô e suas 700 esposas, por exemplo) e de outras culturas, mas é chegado o momento de revisitarmos as condutas implicitamente aceitas nessas narrativas e apontarmos para o que não estamos mais dispostos a aceitar. Nos últimos anos, o movimento #metoo tem jogado luz para a forma como homens poderosos abusam de suas posições sociais e profissionais para praticar assédio e violência, práticas sobre as quais muitos sabiam mas que consideravam como “parte do jogo”.

Parashat Shoftim trata também da estruturação de um sistema judicial que torne a busca pela justiça uma característica central da sociedade hebreia. A este respeito, o rabino Eliezer Berkovits escreveu: “Buscar justiça é aliviar os oprimidos. Mas como os oprimidos serão aliviados, se não for julgando o opressor e esmagando sua capacidade de oprimir?! (…) A tolerância à injustiça é a tolerância ao sofrimento humano. Uma vez que os orgulhosos e poderosos que infligem o sofrimento geralmente não cedem à persuasão moral, a responsabilidade pelo sofredor exige que a justiça seja feita para que a opressão seja encerrada.” [2]

Que neste shabat, possamos buscar justiça para todos, em particular desafiando os abusos naturalizados dos poderosos e que assim comecemos o processo de nos transformarmos na versão de nós mesmos que queremos ser.

Rabino Rogério


[1] Veja, por exemplo, os comentário de Rashi, Ibn Ezra, Aderet Eliahu para Deut. 17:17.

[2] Conforme citado em Harvey Fields, “A Torah Commentary for Our Times”, vol. 3, p. 140. 

 


sexta-feira, 21 de agosto de 2020

A busca pela mais absoluta justiça

Nesses dias, a discussão sobre o “abuso de poder religioso” no Supremo Tribunal Federal trouxe de volta à ordem do dia a questão sobre a relação entre religião e política ou, colocado de outra forma, qual participação critérios religiosos devem ter na vida pública. De um lado, o Brasil é um país laico, onde vigora (ou deveria vigorar) a separação entre religião e estado; de outro, as religiões acabam definindo valores e posições políticas de seus integrantes. Religiões não se ocupam apenas do metafísico, da relação do ser humano com o Divino, mas também da relação entre as pessoas, das formas como nos tratamos e como organizamos nossas sociedades. O judaísmo coloca especial atenção à forma como tratamos os segmentos mais vulneráveis e oprimidos das nossas comunidades e coloca a proteção deles na categoria de obrigação religiosa. O rabino Abraham Joshua Heschel expressou esse conceito de forma bastante clara quando, ao terminar uma marcha pelos direitos civis dos afro-americanos ao lado do Reverendo Martin Luther King Jr. em 1965, afirmou “para muitos de nós, a marcha de Selma a Montgomery foi sobre protesto e oração. Pernas não são lábios e andar não é se ajoelhar. E, no entanto, nossas pernas entoaram canções. Mesmo sem palavras, nossa marcha era reza. Senti que minhas pernas estavam rezando.” [1]

A parashá desta semana, Shoftim, está entre aquelas que coloca as questões de organização social no centro das preocupações judaicas. Entre os temas que aborda estão a organização do sistema judicial, critérios para a escolha de monarcas e normas para sua conduta, alertas para falsos profetas que abusem do nome de Deus para avançar seus objetivos pessoais e regulação para conduta ética em situações de guerra. Entre suas frases icônicas, está “Tsedek, tsedek tirdof”, “a mais absoluta forma de justiça você deve buscar”. [2]

A busca por justiça continua nos nossos dias, assim como a discussão sobre qual seria “a mais absoluta forma de justiça” que devemos buscar. Para alguns, trata-se de estabelecer as estruturas de um sistema judicial que trate a todos de forma idêntica, sem considerar as condições subjetivas; para outros, a definição vai na direção contrária e a justiça verdadeira só pode ser estabelecida quando compreendemos os contextos que levam cada um dos agentes a agir de determinada forma. Paradoxalmente, encontramos no judaísmo elementos que dão sustentação a essas duas abordagens.

Qualquer que seja nossa visão para um cenário no qual a justiça reine, estamos muito longe dele e temo que estejamos caminhando no sentido contrário, aprofundando as injustiças na sociedade brasileira. Nesse contexto, é fundamental que não normalizemos esta conjuntura e continuemos buscando “a mais absoluta forma de justiça.”

Elie Wiesel nos conta que uma pessoa justa que vivia na cidade de Sdom, onde esta qualidade era rara, e que andava pelas ruas da cidade protestando pelos atos de injustiça que testemunhava. A cidade ria dele e do seu protesto. Finalmente, uma pessoa jovem lhe perguntou por que continuava protestando mesmo quando era claro que ninguém prestava atenção. A resposta da pessoa justa deve servir de alerta para a situação em que vivemos hoje: “no começo, eu achava que podia mudar as pessoas. Hoje, eu reconheço que não posso. Mesmo assim, se eu continuar a protestar, eu terei prevenido que os outros me mudem.” [3]

Que a busca pela justiça e a preocupação com aqueles que sofrem os maiores impactos do ambiente injusto em que nos encontramos continuem determinando nossos atos e que consigamos encontrar parceiros e aliados que nos ajudem nesse processo.


Shabat Shalom!


[1] Michael Shire, “The Jewish Prophet: Visionary Words from Moses and Miriam to Henrietta Szold and A.J. Heschel”, p. 121.
[2] Deut. 16:20
[3] Harvey J. Fields, “A Torah Commentary for Our Times: volume three, Numbers and Deuteronomy”, p. 141.