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quinta-feira, 22 de julho de 2021

Relações que transformam e nos preparam para o período

Desde domingo passado, entramos em um período bastante especial do calendário judaico: de acordo com o rabino Alan Lew, durante as dez semanas que vão de Tishá b’Av ao final de Sucot, vamos do luto profundo pela destruição da Casa central da tradição judaica (os Templos de Jerusalém) à alegria pelo desmonte de outras casas, as cabanas temporárias que montamos em Sucot. Ao longo deste período (que representa um quinto do ano!) transitamos da destruição ao renascimento à alegria, nos desconstruímos, nos questionamos, nos auto-avaliamos e nos reconstruímos em bases que, esperamos, sejam mais sólidas e nos permitam estarmos mais próximos de quem queremos, de fato, ser.

T’shuvá, o processo de auto-avaliação, arrependimento e correção de rumos é uma parte central da experiência destas dez semanas. A rabina Sharon Brous fala de uma dialética judaica que, de um lado, destaca a justiça e o rigor em analisar nossas próprias falhas e, de outro, mostra um otimismo infinito ao acreditar na nossa capacidade de sempre retornarmos à melhor versão de nós mesmos. Neste shabat, que a tradição chama de Shabat Nachamú, começamos a reencontrar a capacidade de permitir que  o passado informe nossa conduta, mas não a defina, de reconhecermos nossos erros sem permitir que eles determinem nosso futuro, de buscar a redenção apesar do (ou por causa do) caminho que nos trouxe até aqui. A haftará (a leitura dos profetas) desta semana [1] trata da possibilidade deste processo de reconstrução e começa com estas palavras:

“Consolem completamente (Nachamú nachamú) o meu povo, diz o teu Deus. Fale ternamente a Jerusalém, e declare-lhe que acabou o seu tempo de serviço, que a sua iniqüidade foi expiada.”

Do outro lado do processo de t’shuvá está nossa capacidade de aceitar pedidos de desculpas e, de fato, perdoar. Quantas vezes andamos pelas nossas vidas arrastando correntes de mágoas passadas, incapazes de nos libertarmos delas, amarrados ao passado? T’shuvá e perdão são processos complexos, difíceis de serem conduzidos, especialmente quando nos sentimos sozinhos e fragilizados. Quem se sente abandonado tende a ter mais dificuldade em reconhecer seus erros ou em perdoar outra pessoa; como se agarrar-se à certeza da sua própria retidão compensasse pela dor de se ver isolado.

Neste shabat, que além de ser Shabat Nachamú também é Tu b’Av, a data judaica que celebra o amor, temos a oportunidade de nos fortalecer e nos preparar, através do amor, para os processos de introspecção e avaliação que marcam os próximos meses. Estes processos são também boas oportunidades para avaliarmos a forma como amamos e como somos amados. Será que nos entregamos verdadeiramente, com todas as nossas energias [2]  nas relações amorosas que desenvolvemos, sejam elas com nossos pais, irmãos, amigos ou parceiros românticos ou até com nós mesmos? O que será que significa amar desta forma? É algo que gostaríamos de tentar? E, se não for assim, que outras possibilidades de amor se colocam à nossa frente?

Em outro exemplo paradigmático do amor, na parashá desta semana, Moshé relembra da entrega do Decálogo, as Dez Afirmações que Deus proferiu no Monte Sinai. Muitos comentários rabínicos entendem este momento como um casamento místico entre Deus e o povo judeu, que pode nos ensinar sobre as formas de amar. As primeiras Tábuas, símbolos desta união mística (como se fossem alianças) não tardaram a ser quebradas, depois do episódio do bezerro de Ouro. De acordo com o rabino Art Green, este resultado do processo era esperado, uma vez que as Tábuas, esculpidas por Deus e com a Sua escrita, não continham nenhum elemento humano. Era uma união em que havia espaço para apenas uma voz; um relacionamento em que o povo de Israel não teve sua singularidade reconhecida. De acordo com uma tradição, Iom Kipur marca o dia em que Moshé desce pela segunda vez do Monte Sinai, carregando o segundo jogo de Tábuas, que tinham sido esculpidas por ele e nas quais Deus tinha adicionado Sua escrita. Estas Tábuas, resultado da parceria entre o humano e o Divino, perduraram como símbolo de uma união na qual ambas as partes se sentiam enxergadas, escutadas e validadas. E você, sente que teus relacionamentos amorosos respeitam a pessoa que você é?

A mutualidade nos  relacionamentos permite que nos sintamos seguros a ponto de reconhecer nossas vulnerabilidades e nos engajarmos em processos verdadeiros de t’shuvá e de perdão. Que neste shabat possamos nos fortalecer através do amar e do ser amado, com respeito e reconhecimento, escuta e validação, para que possamos nos abrir para a possibilidade de sermos transformados nas relações e pelo processo que elas possibilitam.

Shabat Shalom


[1] Isa. 40:1-26

[2] Deut. 6:5



segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Encontrando consolo na história de amor de uma saudita

Para usar um título de álbum dos Titãs, sexta-feira (19/08) foi um exemplo de “tudo ao mesmo tempo agora.” Era Tu beAv (15 de Av), a data judaica que comemora o amor, e meu 15o. aniversário de noivado. Além disso, era véspera de Shabat Nachamú, o primeiro sábado depois de Tishá beAv (9 de Av), no qual a leitura dos profetas começa com נחמו, נחמו, עמי (“nachamú, nachamú, Ami”, “ofereçam grande consolo ao Meu povo”.) 

Estávamos nos aproximando do final da olimpíada do Rio, onde às alegrias e às dores naturais de vitórias e derrotas em competições esportivas, tinham se somado preconceitos contra a cidade, contra nacionalidades, contra religiões, contra a torcida, contra atletas. Incrível a força destrutiva do preconceito, capaz de criar escuridão mesmo frente a esforços coletivos para manter a luz.

Falando em preconceitos, durante a semana, tinha me envolvido em uma conversa online sobre um artigo falso (“hoax”), no qual argumentava-se que cientistas saudistas tinham “descoberto” que mulheres eram mamíferos, ainda que não fossem humanas. Depois de debater o assunto em páginas individuais, tinha resolvido colocar um comentário na minha página:
Há dois dias, uma amiga postou um artigo falso (hoax) sobre a relação às mulheres na Arábia Saudita (que está longe de ser equilibrada, mas o artigo relatava verdadeiros absurdos como se fossem verdade).
Em quinze minutos, alguém postou uma resposta, mostrando que o artigo era falso. Mesmo assim, outras pessoas começaram a compartilhá-lo como se fosse verdadeiro. Entrei nas postagens de alguns deles (um deputado estadual do RJ, uma ONG ambiental no RS) e os alertei de que a notícia era falsa. Nada aconteceu...
Em dois dias, já são mais de 180 compartilhamentos da notícia. Minha amiga mudou seu comentário para indicar que a notícia é falsa, mas a grande maioria daqueles que a replicaram mantiveram seus comentários preconceituosos.
Claro que a Arábia Saudita, um país em que mulheres não podem dirigir, tem lá seus problemas na questão da igualdade entre homens e mulheres –– mas a maioria dos comentários que eu li não tinham nada de construtivo. Pelo contrário, eles chamavam os muçulmanos de animais – e a impressão que ficava era que qualquer pretexto valia para extravasar o ódio pelo "outro da vez". Quem realmente se importa com a condição das mulheres na Arábia Saudita procura fortalecer a sociedade civil lutando para mudar a situação por lá, não sai por aí distilando seu ódio pelos árabes e muçulmanos.
O ódio ao diferente tem um poder de destruição que me amedronta!
A tradição judaica nos ensina que devemos proteger o estrangeiro / "outro" / oprimido (גר) por que um dia fomos estrangeiros / "outros" / oprimidos na terra de Mitzrayim, mas ainda há muitos nas comunidades judaica e muçulmana que se vêem como inimigos naturais e eternos. É hora de dizer "chega!" e garantir que "nunca mais!" realmente signifique "nunca mais!”.
Esses debates online acabam drenando minhas forças, especialmente minha energia espiritual, e chegava ao final de semana precisando de uma boa recarregada. Mal sabia que ela viria de uma fonte inusitada.
Meu telefone indicava que estava ficando sem espaço, então comecei a rever o que eu podia limpar. Fotos, vídeos, músicas, arquivos, podcasts…. Lá no fundo deste baú digital, encontrei um episódio de podcast que eu tinha gravado mas nunca escutado. 

Há alguns anos, o programa Radio Diaries organizou um concurso para ver quem compartilharia clipes de áudio com seus ouvintes, como se fosse um diário digital. Entre os mais de mil candidatos do concurso, eles escolheram Majd Abdulghani, uma jovem saudita que compartilhou, por dois anos, suas experiências, encontros, emoções, impressões com os ouvintes. Dos 19 ao 21 anos, a acompanhamos na universidade, nas suas disputas com o irmão sobre o comportamento apropriado para mulheres muçulmanas, em seu estágio no laboratório de genética, no começo e desenvolvimento de um relacionamento amoroso. Neste resumão de meia hora, descobrimos um pouquinho do que aconteceu em dois anos na vida de Majd.
Não devia ser surpresa para ninguém que, apesar das idiossincrasias de cada lugar, as experiências humanas se repetem em toda parte. Por mais que sua história seja apenas isso: uma experiência pessoal sem maiores pretensões, a potência da contação de histórias é incrível. O relato de Majd dá dimensões pessoais que nenhuma discussão no facebook poderia; contra preconceitos, sua história dá o exemplo pessoal das dificuldades que ela enfrenta como mulher na Arábia Saudita e das possibilidades que ela tem abertas à sua frente.
Escutava sua história enquanto preparava o jantar e, assim, fui me livrando dos problemas da semana e ganhando uma inspiração diferente. Na confluência de fatores que falavam e de amor e de restauração, não podia ter mensagem mais apropriada para me trazer a este shabat!