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domingo, 17 de setembro de 2023

Dvar Torá: Confortando quem está perturbado; perturbando quem está confortável. Rosh haShaná 5784 (CIP)

 

Esses dias saiu na imprensa que a prefeitura quer desativar sua rede de trólebus, que custa demais para ser mantida, com uma frota bastante reduzida [1]. Eu ainda lembro de quando ia de Higienópolis para a Hebraica de trólebus, que eu pegava na rua Augusta, não muito longe daqui — e já naquele tempo a viagem, muito mais silenciosa que em um ônibus normal, era muitas vezes interrompida porque as hastes do veículo se soltavam dos cabos elétricos. Meus filhos adolescentes não têm ideia do que seja trólebus e a verdade é que mesmo de ônibus e de metrô eles andaram muito menos do que eu tinha na idade deles… mas essa é a dinâmica do progresso. O mundo vai mudando e nem sempre as novas gerações entendem como tudo funcionava em outros tempos. Quando eu comecei a andar de ônibus para voltar da escola, no começo da minha adolescência, já não circulavam mais os bondes, por exemplo. Hoje, talvez, os cariocas vivam o renascimento do bonde, rebatizado de VLT, Veículo Leve sobre Trilhos, mas eu prefiro chamá-lo pelo seu nome original. De onde veio a palavra “bonde”, que em nada se relaciona à forma como esse veículo é chamado em outras línguas? Diz a lenda [2] que na década de 1870, esse tipo de veículo era puxado por animais, levava 30 pessoas e era chamado de “Carril de Ferro”. A passagem custava um quinto do valor da menor moeda em circulação, então a empresa vendia 5 bilhetes por uma moeda. Esses bilhetes foram chamados de “bonds” e, no uso cotidiano, o veículo começou a ser chamado de “bonde”. 

Não são raras as situações em que traduções erradas acabam se estabelecendo em um idioma. Temos um exemplo desses na liturgia de Rosh haShaná. A Mishná, o primeiro documento escrito pelo movimento rabínico ao redor de 220 EC, estabelece que há 4 dias de julgamento no calendário: em três deles são definidas a fartura dos grãos, das frutas e da água para o ano seguinte. Sobre Rosh haShaná, a quarta data da lista, está escrito: 

Em Rosh haShaná, todos que vieram ao mundo passam na frente de Deus “ki-vnei Maron”, como está escrito: “Quem cria junto seus corações, quem considera todas as suas ações?”. [3]

Como vocês viram, eu escolhi não traduzir “ki-vnei Maron”. Em casa, eu tenho duas edições da Mishná comentadas — uma delas [4] explica a expressão seguindo a opinião do Talmud, de que em aramaico “maron” está associado à palavra para ovelhas e que, portanto, nos apresentamos a Deus como ovelhas passam em frente ao seu pastor. A segunda edição da Mishná [5] propõe uma tradução radicalmente diferente, segundo a qual “ki-vnei maron”, grafado como duas palavras distintas, é um erro de transcrição. A palavra correta deveria ser “ke-numeron”, em latim: como tropas de um exército se apresentam ao seu comandante. A diferença, ainda que sutil, tem impacto na forma como entendemos esse dia do Julgamento.

Eu percebo que há pelo menos duas maneiras através das quais as pessoas que prestam alguma atenção à liturgia encaram esse processo de t’shuvá, e nem sempre me parece que a maneira que cada um adota é a mais adequada para sua situação. Há um ditado chassídico, atribuído ao rabino Simcha Bonim de Pshischa, de acordo com o qual cada um de nós deveria andar com dois bilhetinhos, cada um colocado em um bolso. Em um bilhete está escrito “בִּשְׁבִילִי נִבְרָא הָעוֹלָם”, “o mundo foi criado por minha causa” [6] e no outro bilhete está escrito: “וְאָנֹכִי עָפָר וָאֵפֶר”, “eu sou apenas pó e cinzas” [7]. E o rabino advertia: “Muitos se enganam e usam o bolso invertido daquele que precisavam usar.” [8] Ou seja: quando seu ego está expandido, usam o bilhete que lhes atribui ainda mais importância e quando estão se sentindo para baixo, usam o bilhete que os deixam ainda mais deprimidos. Eu temo que, para muitos entre nós a ideia do julgamento em Rosh haShaná tenha um efeito parecido ao bilhete do bolso errado. Para alguns, já no fundo do poço, enxergar-se como ovelhas indefesas passando em frente ao seu pastor os deixa ainda mais desempoderados para serem agentes das mudanças que precisam fazer em suas vidas; para outros, se sentindo no topo do mundo, enxergar-se como poderosas tropas militares fortalece seu senso de arrogância e de que nada poderá detê-los

O Unetanê Tokef, que cantaremos daqui a pouco, tenta buscar uma conciliação entre as duas versões. De um lado, o texto toma “bnei maron” como querendo dizer “um rebanho de ovelhas”, seguindo a tradição do Talmud ao afirmar: “E todos os que peregrinam pelo mundo passam diante de Ti como ‘bnei maron’. Como o pastor vistoria-o, passa-o sob sua vara, assim Você também fará passar, contará e enumerará e considerará a alma de todo ser vivo, determinando o destino de cada criatura e escrevendo seu veredito.” De outro lado, o poema também faz alusão à formação militar quando diz “anjos se apressarão, temor e tremor os dominarão. E dirão: eis que chegou o Dia do Julgamento, quando até o exército celestial se apresenta em juízo.”

Para mim, a parte mais sombria do Unetanê Tokef, ainda mais difícil do que aquela que detalha os tipos de mortes que as pessoas podem sofrer, é quando o texto diz que Deus será Juiz, Procurador, Perito e Testemunha. É uma cena que me lembra profundamente o livro “O Processo” de Franz Kafka, no qual o personagem acorda um dia perseguido pela polícia e processado por um crime que ele não sabe qual é, em um sistema judiciário todo organizado contra ele. Ao ler esta passagem do Unetanê Tokef, sempre imagino Josef K., o personagem central do livro, perguntando por qual crime está sendo processado, e o Juiz, que também é procurador, perito e testemunha, lhe respondendo “Você sabe muito bem o que fez.”

A verdade é que sabemos muito bem o que fizemos neste ano que terminou, bem até demais. Eu sei que falo em nome de muitos quando digo que “não tá fácil”. As estatísticas dizem que mais de um quarto da população brasileira sofre de ansiedade e que um em cada oito já teve diagnóstico para depressão. De forma crescente, esse quadro de saúde mental, especialmente a depressão, pode levar a consequências trágicas: dados do SUS mostram que o número de mortes por lesões autoprovocadas dobrou nos últimos 20 anos. [9]

Vivemos em ambientes hiper-competitivos, tanto no âmbito pessoal quanto na esfera profissional — nada menos do que a excelência é aceitável. Uma falha gera uma cobrança, não uma reação empática — e assim aprendemos que não somos bons o suficientes, que nosso trabalho e nossa conduta não correspondem àquilo que é esperado de nós. Nos sentimos avaliados e julgados o tempo todo.

Nessas situações, não é produtiva a figura de um juiz-procurador-perito-testemunha que nos jogue ainda mais fundo no corredor kafkiano de um processo pré-definido contra nós. Aqui, precisamos de um pastor que nos pegue no colo, que reconheça que temos tentado, que nos ajude a encontrar o caminho novamente e a sair do buraco em que nos encontramos. 

Na minha prédica favorita, a rabina Margaret Moers Wenig apresenta Deus como uma mulher idosa esperando que seus filhos a venham visitar. [10] Evitamos essa visita por medo da decepção: da nossa decepção em entender que Deus não nos deu todo aquilo que esperávamos e achávamos que merecíamos e a decepção de Deus, ao perceber que não nos tornamos tudo aquilo que poderíamos. E, mesmo assim, Ela espera nossa visita e nos acolheria e enxugaria nossas lágrimas, não como juíza-procuradora-perita-testemunha, mas como mãe ou como pai que vê seu filho ou sua filha sofrendo.

Se você se vê hoje um pouco nesse lugar, adote então esse como o seu bilhetinho de Rosh haShaná: “בִּשְׁבִילִי נִבְרָא הָעוֹלָם”, “o mundo foi criado por minha causa”, e quando todas as cartas parecerem pré-definidas contra você, deixe de lado as imagens da corte e do julgamento e foque no carinho do pastor ou da mãe idosa sentada na cadeira da cozinha esperando por uma visita sua.

Do outro lado do espectro, há aqueles se veem, não apenas como réus neste processo, mas também se auto-atribuem os papéis de juiz, procurador, perito e testemunha e na fusão de todas essas funções, se auto-concedem um passe-livre para não avaliarem suas condutas, para continuarem agindo no mundo como se ele tivesse sido criado só por causa deles. São capazes de apontar para inúmeros problemas pelos quais passamos mas nunca de aceitar que tem alguma responsabilidade por eles. 

Um pequeno exemplo disso: em uma pesquisa publicada recentemente 81% dos entrevistados declararam que o Brasil é um país racista e, no entanto, 75% das pessoas discordaram completamente da frase “tenho algumas atitudes e práticas consideradas racistas”. [11] O problema são sempre os outros!

Nas palavras da poetisa Marcia Falk, t’shuvá é o processo “de nos voltarmos para dentro para encarar a nós mesmos.” [12] Em Rosh haShaná temos a oportunidade para olharmos com verdade e coragem para dentro de nós mesmos, mas quantos entre nós não evita essa possibilidade a todo custo, talvez com medo do que encontremos se realmente nos engajássemos neste processo.

Um midrash detalha, hora a hora, a criação do primeiro ser humano, no verdadeiro יום הרת עולם, no dia do nascimento do mundo:

“(…) na primeira hora, [a criação do ser humano] surgiu em pensamento; na segunda, [Deus] consultou os anjos; na terceira, [Deus] juntou sua terra; na quarta, [Deus] a amassou; na quinta, [Deus] o teceu; na sexta, [Deus] fez uma forma; na sétima, [Deus] soprou nela; na oitava, [Deus] o colocou no Jardim [do Éden]; na nona, ele foi ordenado [sobre o fruto proibido]; na décima, ele transgrediu; na décima primeira, ele foi julgado; na décima segunda, ele foi perdoado. [Deus] disse a Adam: “Este é um sinal para os seus filhos: da mesma forma que você esteve diante de Mim no julgamento neste dia e foi perdoado, também no futuro seus filhos se apresentarão diante de mim em julgamento neste dia e serão perdoados por Mim.” [13]

De acordo com esse midrash, o julgamento perante o qual nos apresentamos em Rosh haShaná é um jogo de cartas marcadas a nosso favor, tendo em vista que Deus já se comprometeu com Adám que seremos perdoados ao seu final.

Apresentados com essa possibilidade, há quem se declare inocente antes mesmo de avaliar as evidências e perdem a possibilidade de um encontro verdadeiro consigo mesmo.

Se esse é o seu caso, adote como o seu bilhetinho de Rosh haShaná: “וְאָנֹכִי עָפָר וָאֵפֶר”, “eu sou apenas pó e cinzas”, e leia-o quando tiver a sensação de que o mundo inteiro está ao seu dispor, que você não precisa lidar com as consequências das suas decisões e dos seus atos.

Um ditado atribuído ao mexicano Cesar Cruz diz que “a Arte deve trazer conforto àqueles que estão perturbados e perturbar aqueles que estão confortáveis” e líderes religiosos já disseram antes de mim que este deve ser também o papel da religião. Infelizmente, como os bilhetinhos trocados a que se referiu o rabino Simcha Bonim de Pshischa, muitas vezes nosso impacto é exatamente o contrário, fortalecendo os poderosos e afligindo os oprimidos. Que nesse ano, o nosso processo de t’shuvá seja verdadeiro para cada um de nós e que nos permita encontrar equilíbrio, acolhimento e verdade.


Shaná Tová!

 

[1] https://www.estadao.com.br/sustentabilidade/prefeito-quer-acabar-com-trolebus-em-sp-vale-a-pena-colocar-fim-nos-onibus-ligados-a-rede-eletrica/

[2] https://www.dicionarioetimologico.com.br/bonde/ e https://bafafa.com.br/turismo/historias-do-rio/a-origem-curiosa-das-palavras-bonde 

[3] Mishná Rosh haShaná 1:2

[4] Kehati

[5] Albeck

[6] Mishná Sanhedrin 4:5

[7] Gen. 18:27

[8] https://zusha.org.il/story/שני-כיסים/

[9] https://web.archive.org/web/20221015013650/http://www.cofen.gov.br/brasil-enfrenta-uma-segunda-pandemia-agora-na-saude-mental_103538.html

[10] Margaret Moers Wenig, “Deus é uma mulher e Ela está ficando velha”, in Sonsino, Rifat, The Many Faces of God: A Reader of Modern Jewish Theologies, URJ Press: New York, 2004. pgs. 241-248.

[11] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/07/brasileiros-dizem-viver-em-pais-racista-mas-negam-praticar-discriminacao.shtml

[12] Marcia Falk, The Days Between, p. 31.

[13] Vaicrá Rabá 29:1