sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Dvar Torá: Alinhando o que dizemos e o que fazemos (CIP)

Meu pai era arquiteto e foi em um apartamento construído pela construtora na qual ele trabalhou por mais de três décadas que eu cresci. Como em casa de ferreiro, o espeto é de pau, às vezes, na mesa de jantar, meu pai assumia o papel de construtor e minha mãe, o papel de cliente, e as discussões sobre algum aspecto do apartamento iam esquentando até parecerem um tribunal de pequenas causas.
Uma coisa que meu pai nunca conseguiu entender era a insistência da minha mãe para que os armários da cozinha tivessem fundo. Do ponto de vista dele, não tinha problema nenhum se, ao abrir um armário vazio, enxergássemos os azulejos, que são duráveis, fáceis de limpar e tinham sido escolhidos por serem esteticamente atraentes. Minha mãe, por outro lado, nunca abriu mão do fundo do armário da cozinha — e, como cliente tem sempre razão, ela sempre levou a melhor nesta disputa.
A parashá desta semana foca em questões de construção. Nela, começamos a receber as detalhadas instruções para a construção do Mishkán, uma espécie de Templo móvel, através do qual os hebreus poderiam focar seus esforços religiosos enquanto estivessem vagando pelo deserto. Em um verso famoso e interessante logo no começo da parashá, Deus diz a Moshé: “וְעָשׂוּ לִי מִקְדָּשׁ וְשָׁכַנְתִּי בְּתוֹכָם”, “[que eles] construam para mim um Santuário, para que eu possa viver entre eles.”[1] O texto não diz que Deus passará a viver no Santuário, cujas instruções de construção estão sendo transmitidas — mas que o processo de construção do Santuário fará com que Deus resida dentro do povo. Guardem essa ideia, que já vamos revisitá-la…
Como primeiro passo para a construção do Mishkán, vêm as instruções para a montagem do Arón, a arca na qual ficariam guardadas as Tábuas da Lei. Pra desespero do meu pai, as instruções para a construção do Arón concordam com a visão de armário da minha mãe e determinam que ele precisa ser revestido de ouro puro por dentro e por fora! Os Rabinos ficaram muito incomodados com esta instrução… pensem em uma caixa de jóias que vocês tenham: elas são, normalmente, decoradas pelo lado de fora mas de veludo preto ou vermelho do lado dentro. Porque a arca que conteria as Tábuas da Lei precisava ser revestida de ouro por dentro e por fora?! A resposta é dada em um midrash [2]: esta instrução veio para ensinar a um talmid chacham, um discípulo de sábio que תּוֹכוֹ כְּבָרוֹ, "tochô ke'varô", o que ele projeta para o mundo exterior deve corresponder ao seu interior. Nas palavras do rabino Hillel Silverman, “este é o real significado de integridade. O exterior de uma pessoa — suas palavras e ações — devem refletir seu caráter e personalidade interior. Nós devemos acreditar no que dizemos e dizer aquilo em que acreditamos.” [3]
O significado transmitido pelas nossas ações contam tanto quanto o significado transmitido pelas nossas palavras. Depois de me formar rabino, eu trabalhei nos EUA por alguns anos e, em 2013, eu voltei para o Brasil para assumir a Diretoria da Área Judaica do Peretz. Naquela época, nós organizamos alguns encontros com famílias do Fundamental 1 para discutir qual era a formação judaica que elas esperavam que a escola oferecesse. Havia quem pedisse mais hebraico e quem quisesse menos hebraico; quem quisesse um ensino mais religioso e quem quisesse menos; quem quisesse mais sionismo e quem pedisse menos. Em um assunto, no entanto: havia consenso — todo mundo queria que o ensino judaico da escola fosse em valores judaicos!
O que são estes valores judaicos? Pela frequência com que este termo é repetido, deveria ser alguma coisa absolutamente clara para todos nós, conceitos sobre os quais estaríamos prontos para palestrar sem aviso prévio. Será que vocês conseguem pensar em uma lista de dez valores judaicos em alguns segundos?
Aqui vai uma lista dos dez primeiros que vieram à minha mente:
  1. Be’tselem Elohim: a ideia de que fomos todos criados à imagem Divina, que nos confere dignidade inalienável;
  2. Shabat: um dia diferente dos outros 6 dias da semana, para desconectarmos do mundo como ele é e nos inspirarmos com como o mundo poderia ser;
  3. Le’dor va’dor: o profundo respeito pela tradição conforme ela tem sido transmitida e transformada de geração em geração;
  4. Tshuvá: a possibilidade permanente de retornarmos à melhor versão de quem somos;
  5. Elu ve’elu: a valorização do pluralismo judaico, reconhecendo que perspectivas contraditórias podem ser simultaneamente verdadeiras e válidas;
  6. Zachor et Ietsiát Mitsrayim: a valorização da liberdade física e espiritual;
  7. Zachor et asher assá lechá Amalek: a obrigação de buscar extirpar o mal do mundo;
  8. Ki guerim heeitem: a lembrança dos momentos em que fomos oprimidos e da nossa obrigação em ajudar aqueles que vivem sob opressão hoje em dia;
  9. Hachnassat Orchim: a hospitalidade, fazendo com que todos se sintam acolhidos, ouvidos e enxergados;
  10. Tsedacá: a generosidade do nosso tempo e dos nossos recursos.
תּוֹכוֹ כְּבָרוֹ, tochô kevarô, a ideia de que o nosso interior deve corresponder à impressão que deixamos no mundo , implica buscarmos praticar estes valores nos quais dizemos acreditar. Implica pensar no impacto das nossas ações, mesmo das ações cotidianas, que todo mundo faz sem pensar. Esta ano, encorajados por uma das nossas morot, abandonamos o uso de glitter e de purpurina no programa de Bar e Bat-Mitsvá da CIP. Sim, é divertido; sim, todo mundo usa; mas os impactos ambientais são terríveis e nós consideramos que não fazia sentido ensinarmos aos nossos alunos sobre as formas como o Judaísmo valoriza o meio-ambiente quando nossas ações testemunhavam na direção contrária. 
Nossas ações dizem tanto quanto nossas palavras, talvez até mais. Se queremos criar espaço para o sagrado em nossas vida, um Templo que possamos carregar a todo lugar a que vamos, de tal forma a garantir que Deus se aloje entre nós, o primeiro passo precisa ser garantir que o nosso revestimento de ouro, nossa melhor aparência, não seja só pra inglês ver, que ela tenha tanto impacto do lado de dentro quanto tem do lado de fora.
Martin Buber conta que o mestre chassídico Mendel de Kotzk perguntou aos seus discípulos: “onde é a morada de Deus”, ao qual eles lhe responderam sem pensar duas vezes: “מְלֹא כָל הָאָרֶץ כְּבוֹדוֹ”, “todo o mundo está cheio da Glória de Deus”. O rabino, então, respondeu sua própria pergunta: “Deus mora em todo lugar em que deixamos Deus entrar.” [4]
וְעָשׂוּ לִי מִקְדָּשׁ וְשָׁכַנְתִּי בְּתוֹכָם”,  quando criarmos o alinhamento entre nossas declarações, nossas ações e nossos desejos, quando formos prova viva dos valores que dizemos querer preservar, tenho certeza de que Deus estará entre nós.

[1] Ex. 25:8
[2] Midrash Tanchuma Vayakhel 7:3.
[3] Harvey J. Fields, A Torah Commentary for Our Times: Volume Two, Exodus and Leviticus. UAHC Press: New York. 1991. p. 67
[4] Harvey J. Fields, A Torah Commentary for Our Times: Volume Two, Exodus and Leviticus. UAHC Press: New York. 1991. p. 64

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Líderes ou semi-deuses

Como escolhemos nossos líderes e o que esperamos deles depois que eles chegam a posições de poder? Quando julgamos seu comportamento ético, será que devemos ser mais tolerantes (reconhecendo as múltiplas e opostas demandas que lhes são apresentadas) ou mais exigentes (levando em consideração a forma como líderes servem de exemplo)? E com relação ao seu comportamento pessoal, devemos esperar mais dos líderes do que esperamos das outras pessoas?

A questão da liderança é um dos tópicos centrais da parashá desta semana. Logo em seu início, Itró, o sacerdote midianita que era sogro de Moshé, dá dicas de liderança a Moshé, indicando como delegar parte das suas responsabilidades judiciais e mantendo-se apenas nos casos mais complexos. “Você deve procurar dentre todo o povo, pessoas capazes que temem a Deus, pessoas confiáveis que desprezam ganhos ilícitos.” [1]  Segundo Itró, a concentração de todas as demandas judiciais nas mãos de um único líder acarretaria, inexoravelmente, em seu desgaste e no desgaste da confiança que a população depositava nas instituições. Ao seguir as orientações de seu sogro, Moshé foi capaz de instituir um sistema de justiça em várias instâncias, ao mesmo tempo em que desenvolvia novas lideranças.

Moshé foi um líder exemplar. A seu respeito, diz a tradição “não houve mais entre o povo de Israel [outro] como Moshé, que conheceu Adonai face-a-face” [2]. Mesmo assim, Moshé não foi considerado um líder infalível: foi punido por Deus e impedido de entrar na Terra de Israel. Temos um episódio na parashá desta semana que nas últimas décadas tem atraído bastante atenção e polêmica. Em preparação ao momento da Revelação no Monte Sinai, Deus pede a Moshé que instrua o povo a se manter puro, de roupas lavadas e afastado do monte; Moshé transmite a mensagem, adicionando “não se aproxime de uma mulher” [3]. Esta adição de Moshé ao que Deus havia instruído tem rendido críticas que apontam que esse discurso só se aplicaria se fosse dirigido apenas aos homens. A exclusão das mulheres como público de sua fala tem justificado críticas pesadas a Moshé por parte de judeus e judias feministas contemporâneos. 

Até a respeito de Moshé, o profeta como nenhum outro, levantamos críticas, que não o desqualificam como líder, mas humanizam sua figura. Por que, então, parece tão difícil hoje em dia aceitar críticas direcionadas ao líder preferido de cada um? O primeiro dos Dez Mandamentos (também parte da parashá desta semana) termina afirmando: “não tenha outros deuses além de mim” [4]. Na lealdade a alguns líderes, no entanto, acabamos esquecendo desse preceito judaico, tratando aqueles que admiramos como semi-deuses e recusando qualquer crítica, por mais legítima que seja.

Que ao escutar essa parashá possamos encarar nossos líderes como humanos, com acertos e defeitos, com relação a quem críticas são possíveis e até bem vindas!


[1] Ex. 18:21
[2] Deut. 34:10
[3] Ex. 19:15
[4] Ex. 20:4