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quinta-feira, 19 de março de 2020

De Purim a Pessach: Proteção e Vingança em Diálogo no Calendário Judaico (ou os riscos do 'perseguido' se transformar em 'perseguidor')


Todo ano, no começo de fevereiro, o mesmo cenário: em esquinas-chave de São Paulo, encontramos grupos de jovens, suas caras pintadas com os nomes das faculdades em que foram aprovados, pedindo dinheiro aos motoristas para poderem ir beber cerveja com os novos colegas. Acompanhando a alguma distância, estão os recém-veteranos, alunos do segundo ano, comemorando o fato de já não serem mais eles quem precisa passar pelo vexame. Pedir dinheiro nas esquinas é, provavelmente, a prática mais visível e inocente do trote pelo qual passam os calouros que, em alguns casos, envolvem episódios sérios de violência física e moral. A cada tantos anos, voltam à imprensa casos menos visíveis e menos inocentes, que nunca deixam de causar polêmica.

Penso muito na transição de calouro para veterano e sobre como, nela, o oprimido de um ano passa facilmente para a condição de opressor, no ano seguinte; o pensamento corrente parece ser: “se alguém sofreu o trote no seu ano, por que abriria mão de dar o trote no ano seguinte? ” Todas as práticas que incomodavam e humilhavam, gerando alguma revolta, passam a ser justificadas, usando os mesmos argumentos que, no ano anterior, eram prontamente rebatidos. 

Escrevo este artigo próximo de Purim, a festa judaica que comemora a salvação dos judeus da Pérsia. Segundo a história do Livro de Ester, o pérfido primeiro-ministro Haman tinha planejado um genocídio contra os judeus, que só foram salvos porque Ester, a rainha que tinha sido escolhida em um concurso de beleza, era secretamente judia e intercedeu junto ao rei para evitar a tragédia. Há um lado da história desta festa, no entanto, também descrito no Livro de Ester, para o qual se dá, tradicionalmente muito menos atenção: no final da história, com um judeu tendo substituído Haman na posição de primeiro-ministro e com a autorização do rei de que utilizassem armas para se defender, os judeus da Pérsia cometeram um massacre e mataram mais de 75.000 pessoas. 

Oprimidos sob risco de genocídio, esses judeus conseguiram chegaram próximos do poder e, em sua sede de vingança, se tornaram aquilo que eles mesmos mais rejeitavam. No shabat que antecede Purim, chamado Shabat Zachor, uma leitura especial da Torá nos instrui a não nos esquecermos de apagar a memória de Amalek que, na tradição judaica, é associado à violência contra aqueles em situação de vulnerabilidade e tem, entre seus descendentes, Haman, o vilão da história de Purim. Uma leitura possível deste mandamento é que devemos erradicar fisicamente Amalek e seus descendentes; outra possibilidade é que a Torá está nos alertando para que não nos transformemos nós mesmos em Amalek, nos orientando para olharmos a história de Purim e vermos como os judeus se transformaram em Haman. 

Infelizmente, não é só no trote universitário ou na história de Purim que encontramos a transformação de oprimido em opressor. Não são raras as vezes em que escutamos histórias de como “meus avós não tinham nada e foram capazes de se estabelecer e prosperar. Quem não consegue progredir é por preguiça e falta de esforço. ” Em vez de gerar solidariedade e empatia, a experiência de ter vivido sob condições extremamente difíceis e conseguido escapar delas pode dar origem a um sentimento de superioridade que impede a conexão com quem vive às margens da sociedade, hoje.

A perspectiva oposta a esta tem centralidade na tradição judaica, por exemplo, em Pessach, a festa que celebramos depois de Purim e na qual nos lembramos da libertação dos hebreus do Egito, onde tinham sido mantidos como escravos. Nossa experiência vivendo sob opressão no Egito determina que devemos ser especialmente cuidadosos para proteger quem vive em condições similares hoje em dia. Segundo o Talmud, a obrigação de “proteger o estrangeiro porque fomos estrangeiros na terra do Egito” aparece pelos menos 36 vezes no texto da Torá. De acordo com muitos autores “guer” (a palavra bíblica para “estrangeiro”) é uma metáfora para a condição de opressão sob a qual os estrangeiros viviam. Portanto, a obrigação deve ser entendida como nos instruindo a “proteger o oprimido porque fomos oprimidos na terra do Egito”.

A centralidade de obrigação judaica para com os menos favorecidos na nossa sociedade é inquestionável, tanto pelo número de vezes em que é repetida no texto da Torá como pelo diálogo que estabelece com muitos outros textos judaicos, que caracterizam e implementam esta preocupação. Trata-se de mandamentos sobre a forma como devemos pagar salários em dia ou deixar áreas dos nossos campos para que quem precisa possa entrar e se alimentar, entre muitos outros. Pode-se argumentar que foi ao redor da ideia de proteger o vulnerável que toda a tradição judaica foi construída: nossa experiência como escravos determinou de tal forma a identidade judaica que a preocupação com justiça social passou a fazer parte de forma indissociável do judaísmo. Ao mesmo tempo, no entanto, precisamos reconhecer que uma leitura vitimizacionista e revanchista para Purim também faz parte da tradição judaica — ignorá-la seria um erro conceitual e, ainda pior, um erro estratégico para a promoção de um judaísmo que acredita na defesa permanente dos direitos humanos como um dos seus eixos fundamentais.