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sexta-feira, 14 de abril de 2023

Dvar Torá: Silêncios que enaltecem e silêncios que destroem (CIP)


Faz uns anos, eu fui convidado a participar da cerimônia de 70 anos da Fundação Dorina Nowill para Cegos. Em meio a várias outras autoridades religiosas citando passagens de suas escrituras sagradas, eu me aproximei do púlpito com minha cópia do Pequeno Príncipe para ler a passagem em que a raposa ensina ao príncipe que “o essencial é invisível para os olhos.” [1]

Eu conto essa história porque hoje eu vou citar nossa grande filósofa Rita Lee, que em “Jardins da Babilônia” cantou: “Pra pedir silêncio eu berro, pra fazer barulho, eu mesma faço.” [2] No tema do oxímoro, hoje eu vou gastar os próximos 15 minutos sem parar de falar sobre o silêncio.

Não sei se vocês já se deram conta, mas há vários tipos de silêncio — ou pelo menos há várias formas de interpretar o silêncio. Se durante a prédica, a comunidade inteira está em silêncio pode ser um sinal de atenção e engajamento ou o oposto deles, e a única forma de descobrir qual tipo de silêncio é, é olhando nos olhinhos de vocês e tentando “ler” as mensagens não verbais que vocês emitem. Há o silêncio que indica aceitação e o que expressa a mais profunda oposição. Quando as pessoas ficam profundamente magoadas, muitas vezes é através do silêncio que elas respondem, mas o silêncio também pode indicar parceria e cumplicidade, como eu testemunhei recentemente em um casamento, no qual os olhares que os noivos trocavam em silêncio sob a chupá falavam muito mais do que um milhão de palavras poderiam.

Na tradição judaica fala-se muito em defesa do silêncio — o que, pelo menos,  cria precedente histórico para a minha prática de falar sem parar sobre o silêncio. No livro de Provérbios, tradicionalmente atribuído ao rei Shlomô, diz-se em uma passagem que “mesmo uma pessoa tola será considerada sábia se se mantiver calada” [3]; em outra passagem do mesmo livro, é dito que “a pessoa tola não almeja a compreensão, apenas revelar seus pensamentos.” [4] Em Pirkei Avot, Rabi Akiva diz que “uma cerca protetora ao redor da sabedoria é o silêncio” e vários comentaristas explicam que a construção estranha da frase é para deixar claro que o silêncio é a única proteção possível para a sabedoria. [5] Outros comentaristas indicam que, além de proteger a sabedoria, o silêncio também permite que escutemos uns aos outros com maior atenção. No Talmud, os Rabinos afirmam que “o silêncio é apropriado para uma pessoa sábia, ainda mais para um tolo.” [6] Para quem já viu uma coleção do Talmud e seus 63 tratados, que nas minhas estantes equivalem a uma enciclopédia com 44 volumes, é no mínimo curioso que o silêncio fosse tão valorizado.

Na parashá desta semana, há uma situação de silêncio que vem sendo debatida pelos nossos sábios sem que seja estabelecido um consenso sobre  de qual tipo de silêncio se tratava. De forma pouco explicada e muito debatida, Nadav e Avihu, dois cohanim filhos de Aharón são tragados pelo fogo Divino em resposta a um “fogo estranho” que eles tinham ofertado [7]. Na sequência, o texto afirma apenas que “וַיִּדֹּם אַהֲרֹן”, “Aharón silenciou”. [8]

A reação de Aharón, o pai que perdeu seus filhos, choca pela passividade. Quando Sará soube da quase morte de seu filho Itschak, diz o midrash que sua alma fugiu do seu corpo. Quando Iaacóv ouviu que seu filho Iossêf tinha sido devorado por um animal selvagem, rasgou suas roupas, pôs pano de saco nas suas costas e guardou luto por seu filho por muitos dias. Mas Aharón ficou em silêncio.

Os comentaristas procuraram compreender o silêncio de Aharón. Há quem diga que seu coração se tornou pedra e que ele não tinha mais a capacidade de dizer nada, sua alma havia partido. [9] Por outro lado. há outros comentaristas que dizem que sua espiritualidade elevada permitiu que ele estivesse na mais completa calma, justificando a decisão Divina de levar seus filhos. [10]

E o nosso silêncio hoje, também pode ser interpretado de múltiplas formas? Dentro do mundo judaico, Ellie Wiesel foi um dos intelectuais que se dedicou a estudar o silêncio. De um lado, ele não permitiu que Orson Welles, o celebrado diretor de “Cidadão Kane” transformasse seu livro “A Noite” em um filme, argumentando que ele tinha escrito silêncios entre suas palavras e o cinema não deixava espaço para esses silêncios.” [11] O livro é um relato autobiográfico da experiência de Wiesel nos campos de extermínio nazistas, no qual ele afirma: 

“Nunca esquecerei aquela noite, a primeira noite no campo, que converteu minha vida numa noite longa e trancada a sete chaves. Nunca esquecerei aquela fumaça. Nunca esquecerei os rostinhos das crianças cujos corpos vi se transformarem em espirais sob um firmamento calado. Nunca esquecerei aquelas chamas que consumiram minha fé para todo o sempre. Nunca esquecerei o silêncio noturno que me tirou por toda a eternidade o desejo de viver. Nunca esquecerei aqueles momentos que assassinaram meu Deus e minha alma, em que meus sonhos assumiram a face do deserto. Nunca esquecerei, ainda que fosse condenado a viver por tanto tempo quanto o próprio Deus. Nunca.” [12]

O mesmo homem que impediu que seu livro virasse filme para proteger o silêncio que o texto continha dedicou sua vida à militância contra o silêncio que permitiu aquela atrocidade, mesmo na presença de pessoas poderosas. Em uma cerimônia na Casa Branca na época em que Ronald Reagan era presidente, ele protestou contra sua intenção de visitar um cemitério na Alemanha onde vários soldados SS estavam enterrados. “Seu lugar é com as vítimas dos SS”, ele disse ao presidente. Quando Clinton era presidente, ele o alertou que, como judeu, não podia aceitar o genocídio acontecendo na Iugoslávia naquela época. 

Wiesel jurou “nunca ficar calado onde quer que os seres humanos sofram sofrimento e humilhação” e talvez essa seja a linha que diferencia o silêncio produtivo, que favorece a escuta, daquele que permite que atrocidades sejam cometidas com o consentimento tácito implícito na nossa inação. 

“Devemos tomar partido”, ele disse. "Neutralidade ajuda o opressor, nunca a vítima. O silêncio encoraja o torturador, não o atormentado. Às vezes devemos interferir. Quando vidas humanas estão em perigo, quando a dignidade humana está em risco, as fronteiras nacionais e as sensibilidades tornam-se irrelevantes. Onde quer que homens e mulheres sejam perseguidos por causa de sua raça, religião ou opiniões políticas, esse lugar deve – naquele momento – tornar-se o centro do universo”. [13]

Na segunda-feira à noite, marcaremos o início de Iom haShoá, a data no calendário judaico em memória às vítimas da atrocidade nazista. A data escolhida no calendário faz referência ao Levante do Gueto de Varsóvia que, em 1943, desafiou os nazistas que esvaziavam o gueto de seus moradores e os enviavam para os campos de extermínio, um ato de coragem que neste ano comemora 80 anos e que homenagearemos na CIP no Cabalat Shabat do dia 28 de abril, com a presença do Coral Tradição, da Casa do Povo.

Vivemos tempos difíceis. Uma matéria no Estadão de hoje fala que, de acordo com um levantamento da Universidade de Tel Aviv, houve em 2021 um aumento dramático de ataques antissemitas em todo o mundo. Nos Estados Unidos, onde há estatísticas disponíveis também para 2022, o aumento foi de 36% com relação a 2021, que já tinha sido o ano do tal “aumento dramático”. [14] O mundo, em grande parte, tem se calado frente a este aumento de crimes de ódio contra judeus.

Aqui no Brasil, os ianomamis foram as vítimas de um projeto premeditado de eliminação aos qual assistimos ao vivo e a cores pela TV, na grande maioria, em silêncio.

Todos os dias, nas ruas das nossas grandes cidades, pessoas pretas são mortas em números assustadores. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de pessoas pretas mortas por policiais aumentou 5,8% de 2020 para a 2021, enquanto para pessoas brancas o número caiu 30,9%. Dessa forma, 84,1% das vítimas fatais de intervenções policiais eram pretos ou pardos, porcentagem significativamente superior ao seu número na população. [15] Nossa reação, de forma geral, foi o silêncio.

Como disse Elie Wiesel, “o silêncio encoraja o torturador, não o atormentado”. Mesmo que nossos corações, assim como o de Aharón, tenham se tornado pedras calejadas com tanta violência, é hora de sairmos de nossa dormência. Falecido em 2016, Wiesel precisa da nossa ajuda para continuar cumprindo sua promessa: “nunca ficar calado onde quer que os seres humanos sofram sofrimento e humilhação.”

Shabat Shalom!



 

[1] https://www.sesirs.org.br/sites/default/files/paragraph--files/o_pequeno_principe_-_antoine_de_saint-exupery.pdf, p. 56

[2] https://www.letras.mus.br/rita-lee/48512/

[3] Prov. 17:28

[4] Prov. 18:2

[5] Pirkei Avot 3:13. Para os comentários, vejam Bartenura e Ikar Tossafot Iom Tov.

[6] Talmud Bavli Pessachim 99a

[7] Lev. 10:1-2

[8] Lev. 10: 3

[9] Abarbanel comentando sobre Lev. 10:1

[10] R. Eliezer Lipman Lichtenstein - Shem Olam (1848-1896, Polônia), conforme citado por Nechama Leibowitz, http://www.jewishagency.org/he/leviticus/content/22409

[11] https://slate.com/human-interest/2016/07/elie-wiesel-s-profound-and-paradoxical-language-of-silence.html

[12] Elie Wiesel, “A noite: Um dos mais importantes testemunhos sobre a vida nos campos de concentração.”. Pag. 70/182 (ebook)

[13] https://www.thejc.com/lets-talk/all/elie-wiesel-understood-the-power-of-silence-6MIYglTlvuDwVhFe6pDINW

[14] https://www.estadao.com.br/alias/entenda-como-o-antissemitismo-em-alta-reune-radicais-de-todas-as-direcoes-politicas/

[15]  https://pt.org.br/negros-sao-84-das-pessoas-mortas-em-acoes-policiais-no-brasil/


sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Dvar Torá: O incômodo e a necessidade de falarmos sobre o antissemitismo (CIP)


A gente pode identificar o aburguesamento de um rabino pela forma como ele começa as prédicas… logo que eu comecei a trabalhar na CIP, fiz uma prédica[1] na qual eu abria falando de como eu tinha aproveitado o feriado de primeiro de maio para organizar os livros. Desta vez, eu aproveitei o dia de ontem, quando eu estava de férias, e fui comprar roupa! Como já faz tempo que os quilinhos a mais que eu ganhei durante a pandemia — e não foram tão  poucos quilinhos assim — vêm cobrando a conta na cintura das minhas calças, queria fazer uma renovação completa do guarda-roupa e fui arriscar a sorte no Outlet, que alguns dizem que valem a pena e outros falam que é pura enganação.

Entrei na primeira loja e me assustei com os preços. Entrei na segunda, pedi para ver calças, mas não cheguei a provar, de tão caras que eram. Na terceira loja que eu entrei, tinha uma promoção, supreendentemente não anunciada na vitrine, que dava 50% de desconto para quem levasse 4 peças ou mais. Incrédulo, eu perguntei várias vezes se era isso mesmo antes de começar a experimentar váaarias calças. No, final peguei minhas NOVE peças de roupa e fui para o caixa, ainda com medo de que, no final das contas, teria alguma pegadinha e o desconto seria menor que o prometido. Lá, eu brinquei com a vendedora: “nove peças deveriam me dar noventa porcento de desconto, você não acha?!”

A vendedora, que até aquele momento tinha sido SUPER simpática me olhou super séria e perguntou: “de onde você é?!”. “Eu sou brasileiro”, eu respondi, sabendo que minha quipá era o real motivo da pergunta dela. “Eu sou brasileiro, nasci aqui”, eu insisti. E ela comentou “pechinchando assim, acho que você é de um daqueles países em que as pessoas sabem negociar.” E, pronto, com a quipá na cabeça e as brincadeiras com a vendedora, eu tinha reforçado os estereótipos que ela tinha com relação aos judeus.

Eu ando sempre de quipá e raras são as situações em que sinto algum tipo de incômodo por causa disso. Todos nós navegamos em um universo de pertencimentos múltiplos — pensa só no número de grupos que você tem no WhatsApp ou no facebook. Somos simultaneamente condôminos no edifício em que moramos, torcedores de um time de futebol, simpatizantes de causas políticas, cidadãos de um país, detentores de uma identidade nacional religiosa.

Talvez o dilema de como navegamos entre múltiplas identidades tenha começado, na perspectiva judaica, com Iossêf, o jovem hebreu que cresceu na hierarquia egípcia graças à sua capacidade de decifrar os sonhos do faraó. Ele tinha se tornado tão semelhante aos egípcios com quem vivia há tanto tempo que seus irmãos não conseguiram reconhecê-lo — eles falavam em hebraico na sua frente, sem se darem conta de que ele conseguia entendê-los. Na parashá desta semana, finalmente, Iossêf revela aos seus irmãos quem realmente é e reconhece que navega entre duas identidades: o poderoso vice-rei, parte da cultura egípcia; o irmão vendido como escravo, parte dos filhos de Israel.

O desafio não é quando reconhecemos que temos todos diversas e distintas identidades, que se complementam e vivem em tensão umas com as outras, mas quando uma parte da nossa identidade é usada como evidência de que não podemos ser autênticos em outra parte. Quando a vendedora, tendo identificado a quipá como símbolo de alguma religião que ela talvez não soubesse nomear, assumiu que eu não podia ser brasileiro, ela — de forma inocente — usou uma parte de quem eu sou, judeu, para negar a viabilidade da outra parte, brasileiro.

Começamos a semana com um episódio parecido, ainda que bem mais sério. Um economista, que verdade seja dita, foi o melhor professor que eu tive na faculdade, buscou desqualificar outro economista, Ilan Goldfejn, que acaba de ser eleito para a presidência do BID, o Banco Interamericano de Desenvolvimento[2]. Seu sobrenome, claramente judaico, foi qualificado de “impronunciável”;  sua longa carreira, foi desconsiderada porque ele seria “ligado (…) à comunidade judaica”.  Nas palavras cheias de preconceito de seus acusados: “Ele, na verdade, é judeu… brasileiro, nasceu em Haifa, em Israel e a comunidade judaica tem muita presença no Tesouro Americano, no Fundo Monetário, nos organismos internacionais, não só nos bancos privados. Então, ele de brasileiro, só tem o passaporte.” 

A fala não é só cheia de preconceitos e ecoa as piores acusações antissemitas de manipulação e de conspiração judaica como também lhe falta lógica. De que forma a vinculação de alguém com a comunidade judaica caracterizaria falta de vínculo com o Brasil? Parece a mesma lógica aplicada pela vendedora que perguntou de onde eu era.

Luiz Nassif, o jornalista que o entrevistava, em artigo escrito após a polêmica resultante da entrevista, reforçou a perspectiva reducionista e preconceituosa e reconheceu que elas circulam livremente nos bastidores: “Em uma conversa fechada, entre economistas e jornalistas, a referência à comunidade financeira judia seria normal, e não seria interpretada como anti-semitismo (sic).”[3]Nassif ainda atacou o Instituto Brasil-Israel e o grupo Judeus pela Democracia por terem condenado, em suas mídias sociais, um economista de esquerda, dando argumentos para críticas bolsonaristas.

Eu confesso que eu me sinto frequentemente desconfortável para falar sobre antissemitismo. Neste desconforto, busco a companhia do rabino Donniel Hartman, presidente do Instituto Hartman, fundado por seu pai e que se tornou, ao longo das últimas décadas, na principal referência em educação rabínica continuada, um centro de produção de conhecimento judaico e de reflexão sobre suas conexões com a realidade em que vivemos. Em um artigo publicado há quase exatamente dois anos, ele explicou de onde vem sua resistência a falar sobre antissemitismo[4]. Suas razões são múltiplas, mas elas podem ser reunidas em dois grupos: (1) a conversa sobre antissemitismo deslegitima a viabilidade da vida judaica na Diáspora, como  se Aushwitz se tornasse o único fim possível para toda e qualquer comunidade judaica fora de Israel; e (2) ao focar na pura e simples sobrevivência judaica, perdemos o foco da criatividade, do comprometimento, dos valores que uma vivência judaica intensa pode trazer às sociedades em que vivemos. Ecoando palavras que tinham sido formuladas por seu pai, o rabino David Hartman[5], é como se tivéssemos que escolher entre a destruição de Aushwitz e mandato que recebemos no monte Sinai. 

Depois de listar os motivos pelos quais ele odeia falar sobre antissemitismo, Donniel Hartman acrescenta, “mas eu odeio o antissemitismo ainda mais.” Se torna, portanto, importante que falemos desse assunto, apesar das nossas resistências, e de como podemos combatê-lo. Para isso, ele elenca três recomendações:

1.      Não usar incidentes antissemitas para fortalecer nossas próprias perspectivas ideológicas. Há antissemitismo na esquerda, na direita e também no centro. Enfrentamos antissemitismo na Diáspora e em Israel. Quando incidentes antissemitas ocorrem, devemos prestar nossas solidariedade e apoio a quem foi atacado e condenar o ataque, independentemente de pertencermos ou não ao mesmo bloco ideológico. Hartman escreveu: “Quando politizamos o antissemitismo, minamos a condenação universal que os ataques antissemitas merecem e exigem. Mais significativamente, criamos divisões profundas dentro de nossa própria comunidade e impedimos de nos unirmos para combater as ameaças que enfrentamos. É fundamental que nosso discurso adote uma política de tolerância zero – não apenas contra o próprio antissemitismo, mas contra os judeus e as instituições judaicas que permitem que ele seja politizado.”

2.      Precisamos reconhecer que o antissemitismo é um problema sério, que cresce no mundo e que, ainda assim, não é comparável ao que aconteceu na Alemanha Nazista. À exceção de alguns poucos países, o antissemitismo não é política de estado. Mesmo com o aumento das células neonazistas no Brasil, as autoridades continuam, na sua imensa maioria, parceiras na luta contra o ódio.

3.      É importante destacar que o antissemitismo não é o único, nem o maior problema de intolerância ou de ódio que enfrentamos hoje em dia. Precisamos atuar em parcerias com a sociedade mais ampla, reconhecendo que o ódio e o preconceito são nosso inimigo comum. Se nos calamos quando indígenas, negros, mulheres, membros da comunidade LGBTQIA+ ou de outros grupos religiosos são atacados, não temos o direito de nos indignarmos quando estas comunidades se silenciam frente a ataques antissemitas. Mais do que nunca, o famoso poema do pastor luterano Martin Niemöller[6] é relevante hoje:

Quando os nazistas pegaram os comunistas,
eu fiquei em silêncio;
eu não era comunista.

Quando eles prenderam os social-democratas,
eu fiquei em silêncio;
eu não era um social-democrata.

Quando eles pegaram os sindicalistas,
eu não protestei;
eu não era um sindicalista.

Quando eles levaram os judeus,
eu fiquei em silêncio;
eu não era um judeu.

Quando eles vieram me buscar,
não havia mais ninguém para protestar.

Membro do povo de Israel e do Egito, comprometido com o destino da nação egípcia e da sua família, colaborando para seu sucesso em um cenário de crise regional. Esse é Iossêf, que nesta semana reconhece aos seus irmãos quem ele realmente é. 

Que possamos, também nós, termos orgulho da nossa identidade judaica e brasileira, e nunca precisemos esconder parte de quem somos, ao mesmo tempo em que combatemos toda forma de ódio, discriminação, preconceito e intolerância, com especial atenção ao antissemitismo, que nos atinge de forma direta. Que sempre possamos condená-lo, independentemente de outros interesses e que nunca o manipulemos para avançar nossas próprias agendas.

Que em 2023 possamos avançar na direção de um mundo mais inclusivo, mais acolhedor, mais aberto, mais humano.

Shabat Shalom!

 

 



[4] . https://blogs.timesofisrael.com/i-hate-talking-about-anti-semitism/

[5] . https://www.hartman.org.il/auschwitz-or-sinai/

[6] . https://en.wikipedia.org/wiki/First_they_came_…






sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Dvar Torá: Nossas respostas ao antissemitismo (CIP)

כל העולם כולו גשר צר מאוד והעיקר לא לפחד כלל.
Kol ha-olam kulô, guesher tsar meod ve-ha-ikár ló lefarred klal.
O mundo inteiro é uma ponte muito estreita, e o principal é não termos medo.

Pra quem esteve na CIP no serviço do segundo dia de Rosh haShaná e ainda se lembra, eu falei sobre o medo e sobre como, às vezes, ele pode nos congelar, nos impedir de caminhar para onde realmente precisamos ir, nos fechar nos nossos cantos sem a possibilidade de vislumbrar saída. Eu falei disso tudo inspirado por um podcast do New York Times que tinha retratado como a Ella, uma menina que tinha acabado de completar 9 anos, tinha lidado com os seus medos, enfrentando-os e colocando-os nas suas devidas proporções. Eu contei como, quando o repórter pergunta a Ella se ela ainda tem medo, ela responde que sim. “O que mudou, então?”, ele pergunta. “Eles não são mais tão aterrorizantes.” Aprender a viver com o medo sem deixar que eles nos paralise, que nos convença a abrir mão de quem somos ou que nos transforme em pessoas desconfiadas e amarguradas é uma das competências mais importantes que podemos desenvolver e ensinar neste começo de século 21.

No final de 2019 e começo de 2020, o New York Times revisitou os melhores episódios do seu podcast e lá estava a história da Ella e de como ela tinha enfrentado o seu medo. No final, apareceu uma novidade: Barbara Greenman, uma senhora de 70 anos que tinha se sentido inspirada pelo exemplo da Ella a confrontar os medos dela. “Quem sabe dos seus medos?”, perguntou a senhora à menina. “Quase todo mundo à minha volta”, foi a resposta. “Mesmo os teus colegas de classe?!” a pergunta voltou, com um certo ar de surpresa. “Sim, todo mundo sabe dos meus medos”, Ella respondeu. Nós adultos, em geral, temos vergonha dos nossos medos e, por isso, os escondemos. Para usar uma analogia comum nos nossos dias, é como se entrássemos no armário e guardássemos lá parte importante de quem somos; e, como não reconhecemos a verdade do medo, acabamos escondendo, junto com o medo dentro do armário, outras partes importantes das nossas identidades, justamente aquelas que poderiam, em algum momento, ser o gatilho disparador do medo.

Eu falo tudo isso, é claro, em um período de aumento assustador do antissemitismo a nível global. O ataque à família chassídica em Nova York na penúltima noite de Chanucá foi só a gota d’água que libertou, para alguns de nós, fantasmas que tentávamos manter controlados e trouxe à tona os nossos piores medos.

Será que o mundo não aprendeu nada da experiência terrível da Segunda Guerra?, nos perguntamos a nós mesmos? Em um mundo no qual cresce a intolerância às minorias e que marcha rapidamente para a escuridão do abismo, nosso esforço de acender velas de Chanucá parecia não ter tido sucesso em trazer de volta a luz, o respeito mútuo, a valorização da diversidade.

Quando eu tinha 15 anos, fui pela primeira vez a Israel em um programa organizado pela Agência Judaica. Veio um sujeito da segurança do Consulado falar com a gente sobre segurança no voo e ele nos disse: “se seu avião for sequestrado, não pense duas vezes antes de jogar fora qualquer elemento que te identifique como judeu. Tire o chai, a estrela de David, a chamsa, jogue tudo para longe. Neste momento, é melhor garantir que você fique vivo do que morrer como herói.” Para alguns de nós, o mundo inteiro, a ponte estreita sobre a qual todos nós caminhamos, foi tomada por fanáticos e o melhor que podemos fazer é garantir que fiquemos vivos — e nesse processo, jogam fora qualquer identificação judaica, qualquer sinal que os defina como potenciais alvos.

Yehuda Kurtzer, um dos acadêmicos do mundo judaico que eu mais respeito, escreveu o seguinte: 
Na frase do Rav Nachman, ‘não temer’ é o princípio essencial, mesmo ao longo das pontes mais estreitas. Não devemos pensar, especialmente nós que temos medo de alturas, que a ponte não seja aterrorizante. Mas não ousamos transformar certos sentimentos – aqueles que refletem nossas experiências do mundo, aqueles que não podemos controlar completamente – em crenças que definem como interpretamos o mundo e o que podemos fazer sobre isso. O grande paradoxo do anti-semitismo é que, em última análise, ele pode ser um ódio que desafia de tal forma uma explicação fácil, que ele nunca pode ser totalmente derrotado mas, ao mesmo tempo, não podemos nos permitir sucumbir à sua definição de quem somos. É por isso que me recuso a ter medo. Há muito o que fazer. [1]
Na parashá desta semana, lemos sobre o desfecho do encontro de Iossef com seus irmãos. Sem saber que fala com seu irmão, Iehudá explica para o vice-rei que manter seu irmão Biniamin preso no Egito seria o mesmo que matar seu pai, Iaacov. É só nesse momento que Iossef se dá conta de que sua estratégia de esconder sua verdadeira identidade dos seus irmão não daria nenhum resultado. Por outro lado, quando ele revela a verdade, tem a oportunidade de reconciliação com quem lhe tinha causado tanto sofrimento e a possibilidade de salvar toda a família de seu pai, que se muda para o Egito, fugindo da seca. Muitos são os comentaristas que mostram os paralelos entre a história de Iossef e a de Ester, aquela que lemos em Purim [2]. Ambas histórias acontecem fora da terra de Israel, tem como protagonistas israelitas que chegaram próximo ao poder, em parte auxiliados por sua beleza física, e que usam esta proximidade para salvar seu povo. Tanto no começo história de Iossef como na de Ester, a vida do rei é salva, mas algum tempo se passa antes que o ato seja reconhecido e recompensado. A lista de paralelos é longa, já foi apontada há bastante tempo e continua sendo objeto de estudo e pesquisa.

Assim como Iossef, Ester escondeu sua identidade durante boa parte da história – uma história que tem como uma das questões centrais a manutenção da identidade judaica na Diáspora. Em algum momento, sabendo que seu povo estava em perigo, Ester lamenta, mas indica que não está disposta a correr riscos para salvar os judeus da Pérsia. A resposta do seu tio, Mordechai, é direta e incisiva: “Não imagine que você, dentre todos os judeus, escapará com vida por estar no palácio do rei. Pelo contrário, se você ficar calada nesta crise, alívio e libertação chegarão aos judeus de outra parte, enquanto você e a casa de seu pai perecerão. E quem sabe, talvez você tenha alcançado a posição real apenas para uma crise dessas.” [3]

Uma resposta possível para o medo que estamos sentindo é nos fecharmos em nós mesmos, tentar escapar do ódio e da intolerância fingindo que não é com a gente. Há aqueles que arrancarão qualquer sinal de os identifique como judeus e, assim, se sentirão seguros. Uma segunda resposta, ainda dentro deste paradigma, é construir muros mais altos, contratar mais seguranças, se fechar dentro das bolhas e, assim, se sentir seguro.

Eric Ward, um americano ativista pelos direitos humanos, diz que “a forma como tratamos um ao outro de forma corajosa tem um impacto duradouro. Na sua essência, ser humano significa ver a humanidade do outro. Estamos em uma época em que esta habilidade está sendo desafiada.”  [4]

Quando, em resposta ao medo e a termos nossa humanidade negada, nos fechamos em nós mesmos e fingimos que não é com a gente, não estamos vendo a humanidade do outro — e, na minha opinião, deixamos de ser judeus. Há muitas opiniões sobre qual o ensinamento central da Torá: há quem diga que é “Ama a teu próximo como a ti mesmo” ou o conceito de termos sido criados à imagem de Deus [5] ou “não faça para o outro o que é odioso para você” [6]. Eu colocaria entre estes conceitos aquele de que devemos proteger a viúva, o órfão e o estrangeiro, “כִּי גֵרִים הֱיִיתֶם בְּאֶרֶץ מִצְרָיִם”, “por que vocês foram estrangeiros na terra de Mitsrayim”. A tradição judaica é que nossa experiência histórica sob opressão nos ensina a nos solidarizarmos com as vítimas de opressão em toda parte. Ser judeu, para mim, é ter esta empatia para com o outro, é entender que antissemitismo, racismo, misoginia, islamofobia, GLBTQ-fobia são faces distintas do mesmo preconceito. A cada hora ele se manifesta contra um grupo, mas o problema é o mesmo. 

Não existe solução para o antissemitismo que não passe por resolver a questão mais ampla do preconceito e, por isso, não existe solução para o antissemitismo que não passe por estabelecermos parcerias com outros grupos e, juntos, procurarmos criar uma cultura de valorização apaixonada da diversidade. 

É urgente nos darmos conta de que é lindo que sejamos todos diferentes, com aparências diferentes, idéias diferentes, gostos diferentes, concepções diferentes de Deus. É lindo na comunidade judaica e fora dela; é lindo para aqueles com quem concordamos e, principalmente, para aqueles de quem discordamos. 

Parcerias não exigem que sejamos idênticos nem que concordemos em tudo, só exige que compartilhemos alguns valores centrais e que tenhamos um objetivo comum.

Por outro lado, não existe solução para o problema do antissemitismo enquanto acharmos que podemos jogar nossa identidade no canto como se fosse uma corrente com um chai, enquanto não desenvolvermos um orgulho profundo da nossa própria identidade judaica, cada um nos seus termos, não como se ela fosse superiora a qualquer outra, mas porque ela é nossa e ajuda a definir quem somos. É inconcebível permitir que antissemitas definam nossa identidade judaica: quem é judeu e quem não é; o que quer dizer ser judeu e o que não; que cara tem um judeu e que cara não tem; quais são nossos valores e quais não são. 

Uma das coisas das quais eu mais me orgulho no Judaísmo é a nossa tradição do debate e, por isso, “ser judeu” pode significar coisas radicalmente diferente para cada um de nós.

O American Jewish Committee lançou uma campanha para ilustrar este orgulho judaico, que ganhou a adesão da Fisesp e da CIP. O pedido é que você poste uma foto na 2a feira, dia 6 de janeiro, com algum símbolo judaico — as instruções exatas podem ser encontradas nas mídias sociais da CIP e da Fisesp. [7] 


Eu sugiro que sejamos criativos nas nossas escolha de “símbolos judaicos”: vamos usar esta campanha para sair dos estereótipos e mostrar a diversidade da nossa comunidade! Quem sabe um símbolo judaico é se engajar em uma campanha de Ticún Olam? Quem sabe é o maiô com que você treina natação na Hebraica todo dia? Ou é a árvore florida na frente da tua casa, que te lembra do processo constante de criação do mundo? Quem sabe é o teu amigo cristão, que te liga pra saber como você está quando ouve de algum ataque antissemita do outro lado do mundo? O Judaísmo é TEU, o símbolo judaico também! Não deixa os outros te imporem o que quer dizer ser judeu, nem os de dentro nem os de fora da comunidade judaica.


כל העולם כולו גשר צר מאוד  והעיקר לא לפחד כלל
Kol ha-olam kulô, guesher tsar meod ve-ha-ikár ló lefarred klal.
O mundo inteiro é uma ponte muito estreita, e o principal é não termos medo.

O paradoxo desta ponte estreita é que é muito mais fácil passar por ela de mãos dadas, com mais gente ao nosso lado. Assim, também, é muito mais fácil não ter medo.

Shabat Shalom!

[3] Ester 4:13-14.
[5] Talmud de Jerusalém, Nedarim 30b
[6] Talmud Bavli, Shabat 31a
[7] https://www.facebook.com/cipsp/photos/a.296046297191552/2482717198524440/?type=3&theater