sexta-feira, 30 de abril de 2021

Dvar Torá: A volta pra caverna e a busca por um judaísmo contemporâneo (CIP)


Sabe aquela história do “faço o que eu digo mas não faça o que eu faço”?! Quem nunca?! Quem nunca cometeu uma pequena hipocrisia dessas, de dar um conselho de acordo com o que acredita que seja a atitude correta mas se permitiu desviar deste caminho na sua conduta pessoal? Eu sei que eu faço isso com alguma frequência, mas desde que não venha de um lugar de julgamento e maldade, também não acho que seja a pior coisa do mundo…

Um destes meus pecados, de dizer uma coisa e fazer outra, é o jurar não gostar das mídias sociais e viver encontrando assuntos para as prédicas de postagens de facebook. Desta vez, foi em um grupo de educadores judaicos, em que um rabino ortodoxo postou o seguinte comentário na semana passada: 

Amigos - revirei os olhos enquanto ouvi um aluno [meu] descrever Ticún Olam como uma mitzvá. Revirei os olhos porque estou muito ciente e muito preocupado de que a educação judaica tenha sido, essencialmente, enrolada na vaga plataforma liberal americana sob a bandeira mitzvah de "Ticún olam". Preocupado porque, sério… É isso? Será que nossa tradição de 4.000 anos pode realmente ser tão vigorosamente resumida pelas nossas ações em defesa do meio ambiente, na resposta a George Floyd? Isso é tudo?
Então desvirei meus olhos e vi claramente que, para nossa juventude, a crise climática, o racismo (…) e as questões de justiça são 1000% mais reais e mais urgentes do que questões sobre se uma mulher deve contar no minián ou nas nuances da akedá, o episódio da Torá que descreve o quase-sacrifício de Itscahk . E é claro que as pessoas vão se importar com o que é real para elas. E todo esse aperto de pérolas sobre como todas as 613 [mitsvot] foram substituídos por Ticún Olam são, na verdade, apenas os gemidos de um representante de um sistema e abordagem que estão ameaçados de irrelevância ou extinção. "Seu velho mundo está envelhecendo rapidamente. Portanto, saia do novo se não puder dar uma mão."

E eu quero saber: as coisas antigas são realmente relevantes? Por quê? Exatamente por quê? Como? E como as escolas podem tirar a poeira de seu antigo judaísmo e realmente focalizá-lo nas coisas que realmente importam para os alunos reais? Ou pelo menos torná-lo relevante?

Como um pequeno exemplo disso, existe uma maneira de ensinar a tefilá, a reza, não como um momento incômodo e irritante [em que alguém tenha que se certificar os meninos estão de kipá] e que ninguém está usando o celular [escondido], mas na verdade como uma força poderosa para mudar o mundo que [vemos] caindo aos pedaços? Pelo menos mudando a nós mesmos? E se não, podemos parar de fazer nossos alunos rezarem para, [no lugar,] talvez ir recolher algum lixo? Ou a reza é importante no processo de ajudar as crianças a ver seu mundo e ver seu papel nele, ou ela é um dinossauro do velho mundo, reforçando continuamente a narrativa de que o judaísmo é irrelevante e que não [podemos] nos preocupar com o clima e a justiça porque temos assuntos mais importantes? Como o mundo vindouro?

Nossa, gente. Socorro!!!!
Este não é um novo desafio. O rabino Abraham Joshua Heschel escreveu algo semelhante há mais de 60 anos e que, desde que eu li pela primeira vez, tem me inspirado na busca por um judaísmo de significado:
“Quando a fé é completamente substituída pelo credo
a adoração pela doutrina, 
o amor pelo hábito; 
quando a crise de hoje é ignorada por causa do esplendor do passado; 
quando a fé se torna uma herança em vez de uma fonte viva; 
quando a religião fala apenas em nome da autoridade e não em nome da compaixão 
então, sua mensagem se torna sem sentido. ” [1]
Podemos voltar ainda mais no tempo e perceber que a busca por um judaísmo de significado nas nossas vidas, que possa de fato ser uma tradição viva, que dialogue com os dilemas que vivemos em 2021 e não negue o encontro com o desconforto da nossa realidade na busca de uma espiritualidade pura, aparece também em uma das histórias mais famosas de LaG baOmer.

Em LaG baOmer, acredita-se faleceu o rabino Shimon bar Yochai, uma figura especialmente iluminada que, de acordo com um mito, foi o redator do Zohar, uma das obras centrais da Kabalá, uma expressão mística judaica.

Diz a lenda no Talmud [2] que Shimon bar Yochai foi condenado à morte pelas autoridades romanas por tê-las criticado. Ele e seu filho, Elazar, após buscarem refúgio no Beit Midrash por algum tempo, foram se esconder em uma caverna. Por milagre, uma árvore de alfarroba nasceu sobre a caverna e lhes dava comida; e uma fonte de água apareceu e lhes dava água. Todo dia, eles tiravam sua roupa e se enterravam até o pescoço na areia e, assim, eles passavam todo o dia estudando. Quando chegava a hora, eles saíam da areia, se vestiam, e rezavam para, logo em seguida, voltar a se enterrar, nús, na areia. Assim, eles garantiam que suas roupas não se gastassem… Assim eles viveram por 12 anos. O profeta Eliahu se colocou na entrada da caverna e disse “que informará Shimon bar Iochai que o imperador morreu e seu decreto foi revogado?!”. Shimon e Elazar saíram da caverna e viram pessoas semeando e arando a terra. Shimon bar Iochai disse: “como estas pessoas podem abandonar uma vida de eterno estudo da Torá e desperdiçá-la com questões terrenas?!” Todo lugar para o qual Shimon bar Iochai direcionava sua vista queimava imediatamente. Uma voz Divina apareceu e lhe disse: “Você saiu da caverna para destruir o Meu mundo?! Volte para a caverna!”

Como disse Heschel, quando o Judaísmo fecha seus olhos para as dores do presente para se dedicar exclusivamente a guardar as jóias do passado, perdemos nossa função no mundo. Quando o desempenhar funções religiosas fala mais alto que a necessidade de preservação da vida, perdemos nossa mensagem e o sentido destas funções. Quando, em troca de manter vivo o judaísmo, estamos dispostos a abrir mão da nossa humanidade, não reconheço mais esse judaísmo.

A observância judaica e o comprometimento com o mundo não precisam ser mutuamente excludentes. A textura que o calendário judaico dá à nossa experiência do tempo, a forma como as práticas religiosas judaicas permitem que abramos nossos olhos para questões que nem sabíamos que existiam, a abordagem crítica que o estudo de textos judaicos desenvolve em cada de nós, a força que a comunidade judaica tem quando se une em torno de um objetivo comum — todos estes fatores devem nos levar a estarmos mais conectados com o mundo que nos cerca.

Deus mandou Shimon bar Iochai de volta para a caverna estudar um pouco mais porque, seu desdém pelo cuidado com o mundo e com a humanidade revelados nas ações do agricultor demonstravam que, apesar dos 12 anos que ele tinha passado estudando na caverna, ele não tinha aprendido os pilares centrais do judaísmo.

Que cada um de nós consiga encontrar seu próprio equilíbrio — valorizando a tradição judaica e lhe dando um papel de destaque nas suas práticas cotidianas e que, através delas, estejamos cada vez mais comprometidos com a construção de um mundo mais justo, mais igual, mais saudável para todos.

Shabat Shalom

[1] Abraham Joshua Heschel, God in Search of Man, p. 3.
[2] Talmud Bavli Shabat 33b


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