sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Dvar Torá: Que bom que não pensamos todos o mesmo (CIP)


Há alguns dias, antes do anúncio público que veio só hoje, minha filha veio toda animada me contar que a Gisele Bundchen e o Tom Brady estavam se separando. Aos 14 anos, ela adora ficar a par de tudo o que acontece no mundo das celebridades, sabe a data de lançamentos de todos os álbuns da música pop e conhece no detalhe a lista de filmes e séries que seus atores favoritos fizeram.

Apesar de achar a Gisele Bundchen linda e de ter torcido muito pelos arremessos certeiros do Tom Brady quando ele jogava no New England Patriots, não me interesso nada pela vida conjugal dos dois. Isso dito, preciso reconhecer que tem um tipo de stalking que eu, sim, pratico: gosto de visitar os sites de sinagogas em outros lugares e investigar quem são seus rabinos. Em uma destas empreitadas, descobri uma colega que tinha escrito um artigo para um livro editado pela Central Conference of American Rabbis, o sindicato rabínico reformista, que trata de um tema que muito me interessa: a conexão do judaísmo com a justiça social. Não foram nem cinco minutos entre descobrir o livro e tê-lo disponível no meu Kindle. O nome do livro, traduzido para o português: Resistência Moral e Autoridade Espiritual: Nossa Obrigação Judaica com a Justiça Social [1].

Logo no primeiro artigo do livro, o rabino Seth Linner, um dos seus editores,  escreve sobre “Judaísmo e o Mundo Político”. Ele abre o artigo dizendo que inúmeras vezes lhe perguntaram por que o judaísmo se importa tanto com a política e o estrutura como uma longa resposta a este questionamento.

A pergunta faz sentido e parece especialmente apropriada tendo em vista o clima político que temos vivido no Brasil nos últimos anos. Com alguma frequência, escutamos na imprensa comentários de que as religiões deveriam se ocupar da fé, da vida espiritual de suas comunidades, e deixar o debate sobre a vida cotidiana para líderes políticos ou outros analistas. Do ponto de vista cristão pode ser que esta conduta faça sentido, mas a tradição judaica, que vai muito além da religião no que foi definido por Mordecai Kaplan como uma Civilização Judaica, sempre se preocupou com formas de santificar a o comum, o cotidiano, de lhe atribuir intencionalidade, de empregá-la com os valores que nossa tradição transmite.

Nas páginas do Tanach e do Talmud, a vida espiritual ocupa um pequena minoria dos textos. A ênfase está na discussão da forma como tratamos uns aos outros, como protegemos os segmentos mais vulneráveis de nossas sociedades, como combatemos nas guerras, como estruturamos sistemas judiciais imparciais, como pagamos nossos funcionários de forma justa, como cuidamos dos recursos naturais e até quais estruturas de segurança precisam existir em nossas construções. Esses são apenas alguns exemplos de como a tradição judaica se preocupa com o concreto, com a vida que levamos além dos momentos que poderiam ser rotulados como “rituais” ou “religiosos”.

O parágrafo final do artigo do rabino Limmer resume bem esta posição:
Por que o judaísmo se preocupa com a política? Porque a Torá nos ensina que a santidade deve entrar no mundo através de nossas interações com os outros. Porque os profetas protestaram contra a injustiça, sejam pecados no santuário ou abuso de poder no reino político. Porque o Talmud estabelece um sistema intrincado de leis que nos liga aos nossos vizinhos, quer busquemos essa conexão social ou não. Porque, por mais de três mil anos, nossa tradição nos ensinou que todo ser humano é pessoalmente responsável pela posição moral do mundo inteiro.
Tudo isso dito, é claro que não estamos defendendo que um líder religioso defenda do púlpito o voto em um candidato ou em outro — isso seria claramente abuso do seu poder religioso.

O fato de que o judaísmo encare o universo da política como uma área natural para o seu exercício torna ainda mais preocupante do ponto de vista judaico a situação que vivemos hoje. Ao longo da última semana, podcasts da Folha de S. Paulo [2], e do O Globo [3] trataram da polarização afetiva, dos conflitos entre amigos e dentro de famílias que têm levado a rupturas sociais antes inimagináveis. Parte do caldo de cultura que tem permitido que essa polarização aconteça é uma radicalização das narrativas, com a efetiva negação da legitimidade de posições políticas destoantes, além da perda de referências que faz com que já não saibamos o que é verdadeiro e o que não é. 

Dentro da extensa lista de temas sobre os quais o judaísmo se interessa, a possibilidade da divergência ocupa lugar central. Uma das passagens talmúdicas mais famosas a este respeito conta que as escolas de Hilel e de Shamai debateram por três anos um assunto sem conseguir chegar a um consenso. Após este tempo, uma voz divina anunciou: “אלו ואלו דברי אלוהים חיים”, elu veelu divrei Elohim chayim, “tanto umas quanto as outras são as palavras vivas de Deus.” [4] Apesar de opostas, as posições dos dois lados carregavam verdades. Hoje, numa eleição que já foi caracterizada inúmeras vezes como uma guerra entre o bem e o mal, me parece absolutamente improvável que alguém conseguisse enxergar verdades na posição de seu opositor político. Mais do que isso, passamos da disputa eleitoral à guerra eleitoral, um fenômeno que não tem acontecido só no Brasil. 

Na campanha presidencial norte-americana de 2008, em um evento com seus eleitores, John McCain, um eleitor se levantou e lhe disse que tinha medo porque Barack Obama, contra quem McCain concorria, estava aliado aos terroristas. A resposta de McCain foi: “eu preciso te dizer que ele é uma pessoa decente e uma pessoa de quem você não precisa ter medo como presidente dos Estados Unidos”. O público passou a vaiar seu próprio candidato. Na sequência ele disse a outra eleitora, ainda sobre Barack Obama: “ele é um homem de família decente e um cidadão, com quem eu tenho discordâncias em questões fundamentais e é sobre isso de que se trata esta eleição.” [5] Talvez tenha sido pela sua decência em defender  a verdade e seu opositor que McCain perdeu aquela eleição — como outros ciclos eleitorais demonstraram, mentiras têm um poder imenso para criar fanatismo, medo e entusiasmo na eleição. McCain perdeu a eleição de 2008, mas continua sendo apontado como um exemplo de político que não estava disposto a corromper seus valores para vencer a qualquer custo.

A possibilidade de encontrar decência na pessoa de quem se diverge, tratá-la com respeito, é vista cada vez mais como uma esperança ingênua, a descrição de um mundo ao qual nunca mais voltaremos. Quem sabe, o judaísmo e sua visão da política pode ter algo a contribuir para alimentarmos este sonho, mesmo que ele seja fruto da nossa ingenuidade.

Na parashá desta semana lemos a história da Torre de Babel [6]. O texto conta que “toda a terra tinha o mesmo idioma e usava as mesmas palavras”, “דברים אחדים”, dvarim echadim. “Palavras”,  “דברים”, dvarim — a mesma expressão usada para o que a voz Divina, reconheceu como vindas de Deus no caso de Hilel e Shamai, ainda que refletindo posições opostas, é aqui usada para fazer referência às palavras únicas da geração de Babel. As pessoas, então, decidem construir uma torre que chegasse ao céu. Incomodado com o plano, Deus destrói a torre, os dispersa por toda a terra e estabelece múltiplos idiomas. 

O filósofo israelense Ieshaiahu Leibowitz, tem uma leitura bastante inusitada desta passagem e que me parece apropriada para o momento que vivemos. Ele escreveu:
Parece-me que este decreto não foi um castigo mas, pelo contrário, uma medida tomada para o benefício da humanidade. A grande importância do episódio da Torre de Babel não é, de forma alguma, a tentativa de construir uma torre, mas remete para o que foi dito anteriormente, que "a terra – a humanidade renovada após o dilúvio – tinha uma língua e as mesmas palavras”. Após o fracasso da construção, diversos idiomas foram criados, o que levou a diversos discursos. Parece-me que a raiz do erro (ou pecado) da “geração da separação” não foi a construção de uma cidade e uma torre, mas o objetivo de usar esses meios artificiais para garantir uma situação de "uma linguagem e um discurso" – de centralização, o que, em linguagem moderna é conhecido como “totalitarismo". Uma linguagem e um discurso é, de acordo com muitas pessoas ingênuas em nossos dias, a descrição de uma situação ideal: toda a humanidade em um único bloco sem diferenciação e, como resultado, sem conflitos. Mas quem realmente entende saberá que não há nada mais ameaçador do que este conformismo artificial: uma cidade e uma torre como o símbolo da concentração de toda a humanidade em um único tópico – onde não haverá diferenças de opinião e onde não haverá mais conflito sobre diferentes pontos de vista e valores. Não se pode imaginar maior tirania do que esta, não se pode imaginar maior infertilidade mental e moral do que esta – que não deve haver exceções e que não deve haver desvios do que é aceito e acordado, situação mantida pelos meios artificiais de uma cidade e uma torre. [7]
Para Leibowitz, ingênua é a crença de que estaríamos em uma situação ideal caso todos concordássemos sobre o melhor destino para nossas sociedades. A diversidade de opiniões, por outro lado, é o que possibilita o aparecimento de novas opinões, de oxigenação de modelos, de ideias, de perspectivas. 

Parafraseando John McCain, a maioria das pessoas de quem discordamos politicamente é formada por pessoas decentes, dignas, inteligentes e bem informadas. Elas têm o direito de ter uma opinião diferente da tua sem que isso negue sua humanidade, sua dignidade ou sua honestidade. É graças à diversidade política que podemos contemplar com que modelo de sociedade sonhamos e qual o projeto político que terá maior sucesso em nos levar lá. A alternativa é adotar um modelo de “דברים אחדים", dvarim echadim, de "palavras únicas” e abrir mão da possibilidade de crescer a partir do encontro de pontos de vista que reflitam simultaneamente as palavras vivas de Deus.

Neste domingo, com toda responsabilidade, pense na sociedade com que você sonha e escolha quem te parece ter mais chances de te aproximar dela — sem ódio, sem ressentimentos, sem cancelamentos e sem rompimentos de pessoas que você sempre considerou dignas; não será o voto delas nem o teu que deve te fazer mudar essa opinião. 

Shabat Shalom e bom voto!

[1] Seth M. Limmer e Jonah Dov Pesner, “Moral Resistance and Spiritual Authority: Our Jewish Obligation to Social Justice”, CCAR Press, 2019.
[2] https://open.spotify.com/episode/1awSmQ40tNt6xUaxFtCQMU?si=a12575c5b69f4100
[3] https://open.spotify.com/episode/6hk4S3p63agYyy58EFdvwV?si=ccb1baba71354c3b
[4] Talmud da Babilônia, Eruvin 13b
[5] https://www.youtube.com/watch?v=M0u3QJrtgEM 
[6] Gen. 11:1-9
[7] Yeshayahu Leibowitz, “Earot leParshiot haShavua”, Ch. 2: Bereshit - Noach 


quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Distantes no calendário, próximas nos valores

Muitas vezes, representamos o calendário judaico como um círculo, ao redor do qual escrevemos os meses, os feriados, as estações do ano e as espécies agrícolas cuja colheita na terra de Israel acontecem em cada época. Mais apropriado, me parece, seria representar o ano judaico como uma elipse, na qual existem dois pontos focais: os feriados da primavera, notadamente Pessach e Shavuot, e os feriados do outono, Rosh haShaná, Iom Kipur,  Sucot e Simchat Torá. Muitas são as semelhanças (e também as diferenças) entre as comemorações, apesar das diferentes narrativas e  de estarem diametralmente opostas quando vistas no ciclo anual.

Pessach é conhecida por comemorar a nossa libertação da servidão mas, nas páginas do Talmud, há uma disputa rabínica sobre qual é a servidão da qual fomos libertados. Shmuel acreditava que se tratava da escravidão física aos egípcios e que comemorar Pessach significava celebrar um processo de libertação política. Rav, por outro lado, acreditava que se tratava da escravidão espiritual à idolatria e ao paganismo. Para ele, comemorar Pessach implicava falar de um processo de libertação espiritual.

Rav provavelmente se sentiria validado pelos primeiros feriados de Tishrei, Rosh haShaná e Iom Kipur, que focam no nosso processo de crescimento espiritual, na introspecção e na avaliação das nossas condutas. Shmuel, por outro lado, gostaria de Sucot, na qual mudamos nossa orientação para o que é mais concreto, para a fragilidade dos lugares em que vivemos, em particular os segmentos mais vulneráveis das nossas sociedades.

Em determinado momento do seder de Pessach, abrimos as portas e cantamos Eliahu haNavi, lembrando-nos do profeta que, de acordo com a tradição, anunciará a chegada da Redenção. Sempre pensei que fazíamos este gesto com a esperança de que seria neste ano que chegaríamos à Era Messiânica. Há alguns anos, escutei do rabino Neil Gilman z”l outra interpretação para o gesto: de acordo com ele, depois de passarmos tantas horas cantando sobre a liberdade, poderíamos sair do seder com a ilusão de que o mundo já havia sido libertado. Assim, abrimos a porta para nos dar conta de que há muito trabalho ainda a ser feito para chegarmos a um mundo em que todos possam celebrar sua redenção pessoal e libertação nacional. Da mesma forma, há uma tradição de fincar a primeira estaca da sucá ao sairmos da sinagoga ao final de Iom Kipur. Depois de tantas horas focadas no nosso crescimento espiritual, buscamos equilíbrio trabalhando no mundo, martelo e estacas na mão.

O estudo e a prática da tradição judaica também fazem parte das mensagens destes dois pontos focais do calendário. No foco da primavera, comemoramos em Shavuot a entrega da Torá no Monte Sinai e celebramos passando a noite inteira em estudo; no foco do outono, celebramos a conclusão e o reinício do ciclo de leitura da Torá. Como uma criança que acaba de escutar uma história e, por ter gostado profundamente, pede para que a contem de novo, o povo judeu mal termina um ciclo de leitura da Torá e começa um novo, com muita dança e alegria.

Dois pontos focais na elipse do nosso calendário com mensagens muito semelhantes: a vida judaica deve buscar um equilíbrio entre o crescimento espiritual e o trabalho no mundo e a Torá, com suas setenta faces e inúmeras interpretações, é a ferramenta fundamental para atingir-se este equilíbrio.

Neste domingo à noite (dia 09/10), começamos as comemorações de Sucot e na próxima segunda-feira à noite (dia 17/10), começaremos a comemorar Simchat Torá. Cheque a programação e aproveite a chance de trazer mais significado e textura ao teu ano!

Shaná Tová e Chag Sameach!


terça-feira, 4 de outubro de 2022

Dvar Torá: Resgatando a tradição do questionar. Iom Kipur 5783 (CIP)


Daqui a pouco nós vamos a primeira sequência do Vidui, as listas de transgressões que confessamos, sempre no plural, porque é capaz que, individualmente, não tenhamos cometido todas elas, mas no coletivo, certamente a lista é inclusiva e correta. Pensando nela, eu me dei conta de que falta uma transgressão importante na lista, pelo menos no meu caso: a procrastinação, a compulsão de deixar para amanhã aquilo que não é absolutamente necessário, mas seria bem melhor se fosse feito hoje. Quem procrastina, como eu, sempre encontra alguma coisa urgente que precisa ser feita no lugar da tarefa que nos chama — até coisas que, em outras situações estaríamos evitando a qualquer custo. No caso das prédicas das Grandes Festas, meu armário nunca esteve tão arrumado, minhas louças tão limpas, minha leitura dos jornais tão em dia. Até as redes sociais eu chequei, coisa que não me dá prazer algum. E foi em uma rede social que eu encontrei uma postagem de um ex-chefe meu falando de uma antiga propaganda da Apple, ainda antes da revolução dos iPods, iPhones e iPads que a transformaram na empresa de maior valor de mercado no mundo. Naquela propaganda, víamos imagens em preto e branco de grandes líderes como Albert Einstein, Bob Dylan, Martin Luther King, Jr., Richard Branson, John Lennon e Yoko Ono, Buckminster Fuller, Thomas Edison, Muhammad Ali, Ted Turner, Maria Callas, Mahatma Gandhi, Amelia Earhart, Alfred Hitchcock, Martha Graham, Jim Henson, Frank Lloyd Wright e Pablo Picasso. Enquanto estas imagens passavam na tela, o narrador lia um texto:
Isto é para os loucos, para os desajustados, os rebeldes, aqueles que criam problemas. As peças redondas nos buracos quadrados. Os que vêem as coisas de forma diferente — eles não gostam de regras e eles não têm nenhum respeito pelo status quo. Você pode citá-los, discordar deles, glorificá-los ou difamá-los, mas a única coisa que você não pode fazer é ignorá-los — porque eles mudam as coisas, eles empurram a humanidade para frente. Enquanto alguns os vêem como loucos, nós vemos gênios. Porque as pessoas que são loucas o suficiente para achar que podem mudar o mundo, são as que de fato, o mudam. [1]
O comercial terminava com a expressão “Think Different”, “Pense Diferente”, que se tornou o slogan da Apple dali pra frente.

Eu assisti este vídeo e fiquei um bom tempo refletindo. Nós precisamos deste loucos gênios para pensarmos diferente e sairmos do buraco em que estamos. Mais do que isso, precisamos nós sermos estes loucos gênios, irreverentes, que ousaram ver as coisas de forma diferente, desafiar e transformar a sociedade ao seu redor. Curiosamente, as imagens que apareciam na tela tinham poucos judeus, mas eu imediatamente pensei em Avraham, nosso primeiro patriarca e iconoclasta arquetípico da narrativa judaica.
 A tradição judaica considera Avraham como a pessoa que rompeu com a visão religiosa pagã que o cercava e desenvolveu o conceito de monoteísmo. A Torá nunca explica como isso aconteceu e, por isso, diversos midrashim procuraram preencher esta lacuna. 

O mais famoso deles, provavelmente o midrash mais famoso de toda a tradição rabínica, diz que Terach, o pai de Avraham, era um vendedor de ídolos. Um dia, quando Terach sai da loja e deixa Avraham tomando conta, o filho destrói todos os ídolos e deixa o bastão na mão do maior ídolo. Quando o pai volta, Avraham lhe diz que houve uma briga entre os ídolos e que o mais forte deles tinha quebrado os demais. “Do que você está falando?!” lhe responde o pai, “são objetos feito de madeira e argila”. “Por que seus ouvidos não escutam o que a sua boca diz?”, foi a forma como Avraham desafiou os conceitos religiosos de seu pai.

Claro que há uma agressividade desnecessária nesta história, mas ela dá origem a uma visão judaica de mundo no qual não há ídolos sagrados que não possam ser questionados. Na inauguração do Primeiro Templo de Jerusalém, uma obra imensa que tinha consumido recursos muito vultosos para o reino todo, o Rei Shlomô teve a coragem de perguntar: “Mas Deus realmente habitará na terra? Mesmo os céus até os seus confins não podem conter Você, quanto menos esta Casa que eu construí!” [2] Se o Templo não podia servir de morada para o Divino, por que gastar tantos recursos em sua construção?! Quem, hoje em dia, teria a coragem de fazer uma pergunta dessas na inauguração de uma obra cara?!

Na haftará de Iom Kipur, a leitura dos profetas que faremos amanhã de manhã, no dia em que uma grande parte do povo judeu passa jejuando, os rabinos tiveram a coragem de questionar o próprio conceito do jejum e trazer uma leitura em que o profeta Isaías desafia a ideia de que Deus se satisfaz com a forma como jejuamos. Nas palavras que serão lidas amanhã:
Acontece que, mesmo quando estão jejuando, vocês só cuidam dos próprios interesses e continuam explorando quem trabalha para vocês. Vocês jejuam entre rixas e discussões, dando socos sem piedade. Não é jejuando dessa forma que farão chegar lá em cima a voz de vocês. (….) O jejum que Eu quero é este: acabar com as prisões injustas, desfazer as correntes do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e despedaçar qualquer opressão; repartir a comida com quem passa fome, hospedar em sua casa os pobres sem abrigo, vestir aquele que se encontra nu, e não se fechar à sua própria gente. [3]
De acordo com o rabino Abraham Joshua Heschel, este papel questionador faz parte do job description: “o profeta é um iconoclasta, desafiando aquilo que aparentemente é sagrado, reverenciado e impressionante. Crenças valorizadas como certezas, instituições dotadas com santidade suprema, ele as expõe como pretensões escandalosas.” [4] O rabino Jeffrey Salkin vai além e atribui este job description, não apenas aos profetas, mas a todo o povo judeu: 
A luta judaica milenar tem sido a luta contra os muitos “ismos” da história. Quando necessário, o judeu normalmente se rebelou contra os valores do mundo e procurou mudá-los. O segredo do judaísmo sempre foi ser a materialização de um desajuste criativo. Essa é a descrição do trabalho judaico: ensinar, encorajar, desencorajar, persuadir e influenciar. O judaísmo representa aquilo que é mais do que simplesmente fácil e conveniente. [5]
Novamente, esta conduta nos remete a Avraham. Um dos midrashim que eu mais gosto pergunta porque ele era chamado de Avraham haIvri, “o hebreu”. A resposta que, me parece, mais se relaciona à sua alma e a forma como ele influenciou a conduta judaica no mundo diz que “כל העולם מעבר אחד והוא מעבר אחד”, “o mundo inteiro está de um lado do rio e ele está do outro”. [6]

Para quem acha que é um exagero atribuir estes atributos a todo o povo judeu, talvez seja mesmo — mas ele não é restrito a uns poucos profetas e rabinos. De acordo com o rabino Salkin:
Pode-se facilmente argumentar que a própria modernidade é filha de três judeus que viviam em diferentes graus de intimidade e alienação do judaísmo, e cujo trabalho de vida constituiu uma crítica ao mundo e uma quebra dos ídolos da sociedade: Karl Marx, Sigmund Freud e Albert Einstein. (…)

A esmagação de ídolos reverbera como um tema na cultura judaica moderna. Na música, Arnold Schoenberg criou a escala de doze tons e, assim, quebrou o “ídolo” da tonalidade tradicional. Na literatura, Philip Roth quebrou os ídolos das sensibilidades da classe média judaica. A comédia judaica sempre foi iconoclasta - desde o falecido Lenny Bruce até Sascha Baron Cohen - e Sarah Silverman, que invocou a lenda de Avraham quando brincou: “Lembra do cara que quebrou todos os ídolos na loja de ídolos? A mãe dele teve um ataque cardíaco quando viu a bagunça, mas tenho certeza de que ela se gabou disso mais tarde. Isso somos nós. Essa sou eu. Eu sou judia.” [7]
Mas a verdade é que, apesar de nos enchermos de orgulho quando ouvimos os nomes destes judeus famosos, estamos perdendo a capacidade de sermos iconoclastas, de fazermos perguntas mesmos que elas nos levem a respostas incômodas, de valorizarmos a rebeldia intelectual, mesmo que ela questione as nossas opiniões e nossos privilégios. Nos tornamos conservadores em nossas ideias — mesmo quando parecemos questionadores, dotados de curiosidade intelectual, ela é muitas vezes aparente, desconstruindo argumentos de terceiros mas mantendo seus próprios pontos de vista protegidos de análise. 

Para ser justo, esse não é um fenômeno exclusivamente judaico — temos visto uma radicalização de posições na sociedade como um tudo, a rejeição de opiniões sem considerá-las verdadeiramente. Uma frase famosa de Aristóteles que Maimônides citou na Introdução ao seu Tratado de Oito Capítulos diz “aceite a verdade, quem quer que a diga”. Hoje, pelo contrário, definimos o que é verdade e o que não é baseado em que foi que disse o quê. Quando o meu aliado diz algo é, por definição, verdadeiro. Quando é meu oponente quem o diz é, obviamente, falso.

Idolatramos conceitos, palavras cujo significado nem sempre conseguimos definir com precisão, mas que não podem ser questionadas de forma alguma. Idolatramos referências intelectuais e políticas, instituições e até países cujas opiniões e ações não podem ser escrutinadas sob ameaça de acusações de traição. Apontamos para as contradições nas condutas de outras pessoas, mas perdemos a capacidade de sermos críticos com relação à nossa própria conduta.

Eu comecei brincando que, no meu caso, “procrastinar” deveria estar na lista de transgressões que confessamos neste Iom Kipur — mas a verdade é que deveríamos adicionar “tivemos certezas demais”. Com relação à política, com relação à cultura, com relação ao nosso julgamento das pessoas com quem interagimos, com relação ao judaísmo — tivemos certezas demais e demos espaço de menos para a dúvida, para o questionamento sincero e verdadeiro.

É sempre difícil dizer que estamos no fundo do poço, porque com frequência descobrimos que dava pra descer ainda mais, mas é inegável que vamos mal. Nossas sociedades têm se tornado cada vez mais violentas, intransigentes e pouco acolhedoras às diferenças. O planeta clama para que prestemos atenção à crise ambiental que se torna a cada ano mais intensa e urgente. As redes sociais acirraram discursos extremistas e a pandemia corroeu nossa competência para o contato social com outras pessoas.

Mais do que nunca, precisamos ser capazes de abrir mão das nossas certezas e de fazermos mais perguntas. Perguntas tolas, perguntas difíceis, perguntas para as quais não sabemos se há resposta. O mundo precisa desesperadamente da criatividade que vem quando pensamos diferente, quando temos a coragem de quebrar os velhos ídolos e construir novos caminhos no desconfortável desequilíbrio de não saber.

Voltando ao comercial da Apple, o mundo precisa que sejamos um pouco loucos, desajustados, rebeldes, que criemos problemas. O mundo precisa que tenhamos um pouco mais da chutspá de Avraham. 

Shaná Tová e G’mar Chatimá Tová!

[2] 1 Reis 8:27
[3] Isa. 58:3b-4,6-7
[4] Abraham Joshua Heschel, The Prophets, p. 12.
[5] Jeffrey K. Salkin. The Gods are Broken . Pgs. xv-xvi
[6] Bereshit Rabá 42:8
[7] op. cit. p. xvi-xvii