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sexta-feira, 24 de junho de 2022

Dvar Torá: Educar judaicamente para um mundo que não conhecemos (CIP)


Imagina por um minuto que a receita de omelete focasse na forma como ir ao galinheiro e pegar os ovos. Em um contexto urbano, no qual compramos nossos ovos no mercado, uma receita assim ficaria não apenas obsoleta, mas se tornaria irrelevante. Da mesmo forma, em um mundo em rápida transformação como nosso, se torna cada vez mais importante que a Educação Judaica foque no desenvolvimento de uma visão de mundo e de competências para que nossos alunos possam construir sua realidade judaica com certa autonomia na sua vida adulta.

Em todo o mundo da educação, esta é a questão central que se discute hoje: como podemos preparar nossos alunos para uma realidade que ainda não conhecemos. No contexto judaico, certamente esta pergunta não é menos necessária, mas ela talvez ela seja um pouco mais polêmica. De um lado, tem quem acredite que devíamos continuar fazendo tudo como estávamos fazendo antes. Funcionou até agora… por que mudar?! De outro, tem quem defenda que os valores e práticas da tradição judaica nos ajudaram muito até aqui mas perderam sua função na vida contemporânea — educação judaica, nesse sentido, seria um contrassenso.

O projeto de Educação Judaica da CIP se coloca como alternativa a estas duas visões. Acreditamos em um judaísmo comprometido com as nossas vidas, que pode adicionar textura à nossa experiência do tempo e significado às nossas práticas mais banais. 

Em uma das passagens de Pirkei Avot que eu mais gosto, o texto pergunta: “quem é sábio, quem é poderoso, quem é rico e quem é respeitado?”. A resposta vira nossas expectativas de ponta cabeça, afirmando que sábio, não é quem tem muito a ensinar mas quem aprende com todos; poderoso não é que controla os outros, mas a si mesmo; rico não é quem tem muito, mas quem é feliz com o que tem, e respeitado na verdade é quem respeita os outros [1]. De alguma forma, é para esta capacidade de pensar judaicamente fora da caixa que educamos nossos alunos — para que eles consigam enxergar além do óbvio e encontrar soluções judaicas para problemas que ainda nem conhecemos.

Na parashá desta semana, Moshé instrui 12 enviados que foram enviados para observar da terra de Cnaán. “Subam ali pelo Neguev e sigam pela região montanhosa e vejam que tipo de país é este. O povo que nele habita é forte ou fraco, poucos ou muitos? O país que habitam é bom ou ruim? As cidades onde vivem são abertas ou fortificadas? O solo é rico ou pobre? É arborizado ou não?” [2]

Vivendo ainda em seu paradigma anterior — no qual eram escravos e viviam sempre com medo de seus opressores — e sem se dar conta de que sua realidade havia se transformado radicalmente, 10 dos 12 enviados voltaram contando que “os povos que habitam o país são poderosos e as cidades são fortificadas e muito grandes.” [3] Aparentemente, faz sentido o relato que eles apresentaram. Um midrash [4] no entanto, oferece uma leitura diferente da relação entre poder e muralhas, mais em linha com as definições dadas pela passagem de Pirkei Avot. Nas palavras do midrash,  a forma como os enviados olharam a terra deveria ter sido: “Se eles moram em acampamentos, são poderosos e confiam na sua força; mas se estão em fortalezas, são fracos e têm o coração medroso.” Os enviados confundiram demonstração de poder com o próprio poder e, por isso, tiveram que passar 40 anos no deserto até que uma nova geração, que conseguisse enxergar a nova realidade sem os vícios da condição anterior e, assim, pudesse substituí-la.

Equipados com uma educação judaica alinhada com a nossa realidade e com a realidade que ainda está por vir, nossos jovens se apresentam à vida cor coragem e orgulho, sem muros e prontos para construirmos juntos sua realidade judaica. 

Que possamos aprender de seu exemplo de uma conduta judaica orgulhosa, corajosa e preparada!

Shabat Shalom!  

[1] Pirkei Avot 4:1
[2] Num. 13:17-20
[3] Num 13: 28
[4] baMidbar Rabá 16:12


quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Atenção: Comunidade em Construção

Confesso que nunca gostei muito de praticar esportes, tampouco de assisti-los pela TV. Hoje em dia, quando meu filho passa horas assistindo outras pessoas jogando seus videogames favoritos, eu lhe pergunto se jogar não é mais divertido que assistir, parece que ele não entende a pergunta, como se não existisse, de fato, diferença para ele. o único período em que eu acompanhei esportes pela TV foi na década de 80, quando o Brasil tinha grandes pilotos de corrida. Naquela época, seguíamos duas competições: a Fórmula-1, que era transmitida pela Globo, e a Fórmula Indy, que passava na Bandeirantes. Esta última mesclava circuitos tradicionais, com curvas para os dois lados com circuitos ovais, em geral com curvas apenas para a esquerda, como a famosa 500 Milhas de Indianápolis. Nos dois tipos de circuito, muitas aconteciam a cada volta mas, a menos que um carro se acidentasse ou desistisse no meio, todos retornavam ao mesmo ponto e iniciavam uma nova volta.

Fiquei pensando nas repetições, volta após volta, das corridas de carro ao considerar o que temos vivido nos últimos anos com a pandemia e como a parashá desta semana tem se relacionado com os ciclos (ou as voltas) que temos vivido. Foi nesta parashá, Vaiakhel, que tivemos em 2020 o primeiro Cabalat Shabat a portas fechadas, com medo do que estava por vir. Quando lemos esta parashá em março de 2021, estávamos no começo da segunda onda, assustados (com razão) com a piora do quadro de saúde pública. Neste ano, depois de termos atravessado mais uma piora na saúde pública, estamos com a impressão de que deixamos para trás o pior da crise trazida pela variante Ômicron, começamos a nos preparar para o retorno a atividades presenciais na CIP, tanto para a equipe profissional quanto para nossa comunidade.

A palavra “Vaiakhel”, o nome da parashá, vem da mesma raíz que “kehilá”, “comunidade” ou “congregação”, e se refere ao momento em que Moshé “congrega” todo o povo para transmitir as instruções de Deus com relação à construção do Mishcán. Ao longo dos últimos dois anos, fomos desafiados a repensar o que significa estar em comunidade. Não são raras as situações em que, ao encontrar alguém pela primeira vez, me dizem “eu já te conheço, mas você ainda não sabe quem eu sou.” Frente à minha cara de espanto (pelo menos nas primeiras vezes que me disseram isso), a pessoa continua: “acompanho os serviços da CIP online, então já acostumei a rezar com você na sala da minha casa, só você que não consegue ver que estamos lá, juntos.” Quem já participou destes serviços religiosos online sabe que há uma comunidade que “se encontra” no mundo virtual, manda saudações de Shabat Shalom, reage uns aos comentários dos outros. Será que é esse o novo formato de comunidade com o qual precisamos nos acostumar, em que não nos vemos mas reconhecemos que estamos participando da mesma experiência?

Uma outra vivência online é o minián diário da CIP. Nos encontramos por Zoom, o que permite que sejamos vistos e também vejamos os participantes. Pessoas de todo o país, que antes não tinham a oportunidade de rezar juntas, passaram a se encontrar diariamente. Ao longo dos últimos dois anos, tivemos vários casos de famílias enlutadas que, graças à tecnologia, puderam congregar membros que viviam em continentes distintos. Antes do serviço e ao seu final, conversam um pouco, conhecem mais da vida de cada um. Será esta a nova forma de interatividade das nossas comunidades, em que nos reunimos virtualmente para um propósito, cada no seu canto?

Nossas aulas passaram a ser online também. Aos alunos de São Paulo, passamos a reunir alunos de Brasília, de Manaus, de Recife, até de Portugal. Em pequenas salas virtuais, estes alunos discutiram textos judaicos antigos e o usaram de ponto de partida para falar de suas vidas. Se conheceram e se estabeleceram como grupo (contando também, é claro com o apoio de um grupo de whatsapp) e passaram a se encontrar também fora das telas (quem está na mesma cidade…). Será que na nossa nova comunidade a tecnologia servirá de catalisador para encontros presenciais?

O sentido, o formato, o significado das nossas comunidades nunca foi tão fluido. Ao planejarmos a volta ao mundo presencial, consideramos de que aspectos de vida comunitária sentimos falta e que gostaríamos de recuperar e o que ganhamos com a incorporação de novas estratégias de construção comunitária, que gostaríamos de manter. Na elaboração destes planos, a pergunta básica que fica é qual será a cara da comunidade no século XXI pós-Covid. Há quem fale em metaversos e outras modalidades de interação virtual para argumentar que precisamos nos acostumar a relacionamentos que se estabelecem principalmente através das telas, sem a necessidade de estarmos todos no mesmo espaço. Particularmente, apesar de reconhecer que a tecnologia veio para ficar e não faz sentido pensar em descartá-la, sinto falta do contato interpessoal, da conversa ao redor da mesa de kidush ou do cafezinho, do abraço e do aperto de mão na chegada e na despedida.

Nesta parashá, Moshé transmite ao povo de Israel, reunido em comunidade, o pedido de doações para a construção do Mishcán, o projeto comunitário da época. A resposta de todo o povo é tão intensa que os artesãos lhe pedem para orientar o povo a parar de trazer novos donativos. Qualquer que seja o formato da nova comunidade que estamos construindo, que possamos sempre estar dispostos a entregar um pouco de nós mesmos para este projeto coletivo e que a CIP continue sendo um ponto de encontro de pessoas, de ideias e de valores que mantém o judaísmo relevante para muito mais voltas no circuito da vida.

Shabat Shalom.


sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Dvar Torá: A invisibilidade de quem nos serve (CIP)


Esta semana, eu estava dando uma aula quando precisei parar e buscar uma analogia para algo que eu estava tentando explicar. Minha escolha, eu confesso, não foi das mais felizes e eu terminei comparando o acelerar quando vemos o sinal amarelo, um hábito que, pela sua frequência no Brasil, acabou se transformando quase na regra de trânsito, com o fato de que alguns costumes judaicos, quando praticados e repetidos por muitas gerações, ganham força quase de lei. מנהג אבותינו, minhag avotêinu, é o termo técnico para quando isso acontece.

Quem já esteve neste papel de explicar um conceito complexo sabe que, muitas vezes, estabelecer uma analogia com algo conhecido ajuda muito para que as pessoas consigam começar a compreender do que falamos. No entanto, a busca por analogias e metáforas faz parte, não apenas de como explicamos conceitos complexos mas também de como os entendemos. Na Introdução do seu livro “Metaphors we live by”, um clássico no assunto, George Lakoff e Mark Johnson afirmam que “o nosso sistema conceitual ordinário, em termos daquilo que pensamos e agimos, é fundamentalmente metafórico em essência. Os conceitos que governam nossos pensamentos não são apenas assunto do intelecto. Eles também governam o funcionamento da rotina, até os detalhes mais mundanos.” 

Quando pensamos em Deus, as metáforas são essenciais. A pastora Carolyn Jane Bohler afirma a este respeito: “Ainda que nossas metáforas de Deus não sejam descrições formais, não há forma de pensar em Deus sem metáforas. Nossas metáforas apontam para o Deus no qual acreditamos e o apontar é vivenciar. Se “apontamos”, emocional, mental e espiritualmente para Deus como Aquele que conforta, então é provável que vivenciemos conforto. Se apontamos para Deus como Capataz, podemos ter a experiência de exigências de Deus.”

Os Rabinos da antiguidade reconheciam o poder das metáforas (ou משל, mashal, em hebraico) e abusavam delas nos seus midrashim. Uma das metáforas mais recorrentes para falar de Deus nos textos rabínicos era falar de Deus como Rei, uma metáfora que, por sinal, se repete na fórmula clássica das bençãos: ברוך אתה ה׳, אלוהינו מלך העולם, Baruch Atá Adonai, Elohêinu Mélech haOlám, "Você é Abençoado, ה׳, nosso Deus, Rei do Universo". Nestes midrashim rabínicos pensar em Deus como Rei, lhes ajudava a pensar como se relacionar com o Divino, como honrar a Deus, mas também como entender as formas como Deus se relaciona com a humanidade. Será que somos o filho preferido de um Rei amoroso, que desculpa todos os erros sem punição? Ou será que somos o filho esforçado de um Rei distante que, apesar das nossas tentativas, nunca responde aos nossos pedidos? Quem mais vive no entorno do Rei? Algumas vezes, encontramos מלאכי השרת, malachei haSharêt, os anjos da Corte Celestial, que vivem ao redor de Deus e que, com frequência, por ciúmes tentam sabotar os esforços humanos. Outras vezes, encontramos o Rei na companhia do seu mordomo, um empregado especial que goza de toda a intimidade do Rei. O Rei se troca na sua frente, lhe faz os pedidos mais descabidos, pensa em voz alta sem se importar que o mordomo esteja ouvindo.

Um professor querido, o filósofo Moshe Halbertal, destaca que esta intimidade da qual desfruta o empregado não vem, necessariamente, de um lugar de dignidade, de “איש אל רעהו”, ish el re'êhu, "de uma pessoa com outra", e sim de um lugar de invisibilidade, como se o empregado fosse um móvel, uma “coisa” que está no quarto. De uma forma sutil, a mesma intimidade que eleva  a dignidade quando dirigida a uma pessoa querida pode ter efeito oposto e causar humilhação quando, na sua raiz, está a invisibilidade do outro.

Na parashá desta semana, talvez tenhamos uma destas situações em que a intimidade da qual desfruta o empregado pode ser entendida como evidência da sua dignidade ou da falta dela.

Após o falecimento de Sará, Avraham, com a idade já avançada, decide que é hora de buscar uma companheira para seu filho Itschak. Assim está escrito na Torá:
E Avraham disse ao servo sênior da sua casa, que tinha o comando de tudo o que ele possuía: “Ponha tua mão debaixo da minha coxa e te farei jurar por ה׳, o Deus do céu e o Deus da terra, que você não tomará uma esposa para meu filho das filhas dos cnaaneus, entre os quais eu habito, mas irá para a terra onde nasci e arranjará uma esposa para meu filho Itschak.”
Esta é claramente uma função importante — encontrar uma parceira para o filho através do qual, Deus garantiu a Avraham, se dará a continuidade de suas bençãos. E esta função, de imensa centralidade, Avraham confere ao seu servo mais experiente, aquele que liderava a equipe. Toda minha vida eu aprendi que este servo era Eliezer — mas o fato é que o texto mantem o “servo sênior de sua casa, que tinha o comando de tudo o que [Avraham] possuía” sem nome. O servo vai a Nahor, encontra Rivcá, negocia os termos do seu casamento com Itschak, a traz de volta. Em resumo: desempenha com excelência a função que Avraham havia lhe atribuído. E mesmo assim não sabemos o seu nome.

É a tradição rabínica, incomodada com a falta do nome do servo sênior, que  o identifica, em um midrash, como Eliezer. A única vez que o nome de Eliezer aparece na Torá é em uma reclamação de Avraham, pedindo a Deus um descendente para que suas posses não sejam todas entregues a Eliezer. 

Será que Eliezer era, para Avraham, como o móvel no quarto do Rei? Alguém com quem ele podia contar para desempenhar as tarefas mais sensíveis mas que não merecia o tratamento de dignidade com que ele recebeu, por exemplo, os três homens que vieram visitá-lo, a quem chamou de “meus senhores”, lhes lavou os pés e lhes serviu comida? Será que a intimidade com o mestre veio às custas de ser percebido como um igual, alguém que merece exatamente o mesmo tratamento digno?

Vivemos uma época da mecanização de todos os nossos relacionamentos. Achamos que somos amigos de pessoas com quem nunca trocamos uma palavra porque é isso que as plataformas das redes sociais nos dizem. Por isso, contamos nossos amigos aos milhares… Ao mesmo tempo, a tecnologia nos afastou das pessoas com quem nos relacionamos. Antes, encontrávamos o vendedor da loja cara-a-cara, quem sabe sentávamos ao seu lado na sinagoga. Tínhamos com ele uma relação respeitosa, sabíamos que o tom da conversa teria impacto em outras instâncias de relacionamento. Mesmo antes das redes sociais, isso mudou e passamos a ter relações profissionais e comerciais com pessoas completamente fora dos nossos círculos sociais, a nos relacionar com atendentes de call center com os quais não desenvolvíamos o mesmo tipo de relacionamento respeitoso. Nas redes sociais, a distância e a possibilidade do quase-anonimato permitiram que desenvolvêssemos condutas ácidas que acabaram corroendo também o tecido social fora do mundo virtual.

Quantas vezes não cometemos, também nós, o pecado do Rei e tratamos aqueles que nos servem de uma forma muito distinta daquela que reservamos para as pessoas que consideramos “iguais”? Quantos de nós sabem o nome dos porteiros do seu prédio, da equipe de limpeza da sua empresa? Quantos de nós tratam o direito da empregada doméstica ao descanso com o mesmo afinco com que tratam do seu direito às férias? Quantos de nós ficaremos irritados ao receber uma mensagem profissional  não urgente no celular no meio do feriado ou no meio da noite mas não pensamos duas vezes antes de enviar mensagens muito parecidas para nossas equipes?

Hoje nós homenageamos as quase 90 pessoas que compõem a equipe desta casa e eu preciso confessar que sou culpado de várias dos pecados aos quais fiz referência acima: por exemplo, não saber o nome de vários deles e mandar mensagens em horários inapropriados ao mesmo tempo que me irrito quando fazem isso comigo. Muito além dos rabinos, chazanim e músicos que vocês vêem sempre na tela, há uma grande equipe — grande em número, em competência e em dedicação — que constrói esta comunidade e que nem sempre recebe o merecido crédito. Em breve os nomes de cada um deles aparecerão na tela e eu peço para que vocês tomem o cuidado de lerem-no com atenção, com o carinho que cada um de nós merece. 

Hoje nós queremos dizer à nossa equipe: nós te enxergamos, nós te respeitamos e somos orgulhosos por poder contar com cada um de vocês no nosso time.
Pela imensa dedicação de cada um de vocês, nosso imenso תודה רבה, todá rabá, muito obrigado e um Shabat Shalom muito carinhoso.


[1] George Lakoff e Mark Johnson, Metaphors we live by (2003), p. 3
[2] Carolyn Jane Bohler, God the what? What our Metaphors for God Reveal about Our Beliefs in God (2008), p.xiii.
[3] Gen. 24:1-3
[4] Gen. 15:2



quinta-feira, 13 de maio de 2021

Emoções intensas e conflitantes

Al hadvash ve’al haokets, ‘al hamar vehamatoc; “sobre o mel e o ferrão, sobre o amargo e o doce” -- assim começa uma famosa música israelense, composta por Naomi Shemer na década de 1980. Assim como o poema de Iehudá Amichai escreveu sobre sua discordância com Kohelet [1], essas palavras refletem a realidade das nossas vidas: as alegrias e as dores normalmente vêm juntas e temos que equilibrar os sentimentos para nos mantermos sãos.

Este é um final de semana festivo na CIP. No Cabalat Shabat, teremos a alegria de dar as boas vindas à rabina Tati Schagas [2], que chega para somar e para transformar nossa comunidade. No sábado à noite, a 14ª edição do Ticún da Virada [3], a comemoração da CIP para Shavuot, tratará do tema “Eu e Nós” noite adentro, com a participação de mais de 50 intelectuais, ativistas, educadores, rabinos, chazanim, coreógrafos e artistas. Será um festival de Cultura Judaica, revivendo a experiência que nosso povo teve ao receber a Torá no Monte Sinai. Ao longo dos dias seguintes, serviços religiosos especiais de Shavuot. Tanto a chegada da rabina Tati como as comemorações de Shavuot são motivos excelentes para nos alegrarmos!

No entanto, como podemos estar completamente felizes quando Israel enfrenta um novo conflito armado, quando mísseis caem em Tel Aviv, Jerusalém e Ashquelon? Como nossa felicidade pode ser perfeita quando em nosso país, milhares de vidas ainda são perdidas para a pandemia? Com certeza, nossa alegria é temperada pela dor e pela tristeza.

A parashá desta semana, baMidbar, inicia o livro de mesmo nome. Em hebraico, baMidbar, significa “no deserto.” Foi no deserto que nos constituímos como povo, que recebemos a Torá, que nossos antepassados reclamaram incessantemente pela falta de comida e água e por nunca chegarem à Terra Prometida. Foi lá que Moshé encontrou Deus face-a-face e que o povo hebreu começou a desenvolver um relacionamento cotidiano com o “viver na presença de Deus”. Foi no deserto que uma nova geração, sem a lembrança da escravidão, nasceu e no mesmo deserto que a geração que havia sido libertada morreu sem chegar à Terra Prometida. O deserto, um lugar de amplidão e das possibilidades quase infinitas é um dos muitos lugares em que os opostos coexistem, as noites muito frias e os dias muito quentes, da calma absoluta a da tempestade insuportável, de perguntas sem fim que podem nos levar a um princípio de resposta… E foi nesse lugar de extremos e de contrastes que recebemos a Torá e que demos início à longa jornada chamada judaísmo.

A beleza da tradição judaica é que ela tem sido capaz de se transformar e continuar enchendo nossas vidas de significado no doce do mel e no amargor do ferrão, quando damos as boas vindas com esperança e quando nos despedimos com o coração pesado, em tempos de paz e durante as guerras. A grande maioria dos eventos do Ticún serão transmitidos ao vivo, mas alguns tiveram que ser pré-gravados por questões técnicas -- em um destes, a rabina Tati conversou com dois membros de kibutsim. Um deles era a rabina Lila Veissid que, comentando um verso da parashá da semana passada [4] que trata de comer os grãos armazenados para fazer espaço para a nova safra, estabeleceu uma analogia com o processo permanente de transformação dos kibutsim, no qual inovações convivem em harmonia com estruturas antigas. O mesmo, é óbvio, pode ser dito sobre o processo permanente de transformação do judaísmo como um todo, garantindo que nossa tradição continue relevante em todas as situações, não se mantendo congelada e presa a apenas um conjunto de circunstâncias. Como lembrou Iri Kassel, que também participou da conversa sobre kibutsim, em uma frase do Rav Kuk: “o velho deve se renovar e o novo deve se santificar”. Este é o processo que celebramos em Shavuot e ao qual a rabina Tati se soma.

Neste final de semana, nós comemoramos com alegria as transformações do judaísmo ao mesmo tempo em que buscamos na tradição judaica renovada ferramentas para lidar com as dores do momento. 

Shabat Shalom