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sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Dvar Torá: Que bom que não pensamos todos o mesmo (CIP)


Há alguns dias, antes do anúncio público que veio só hoje, minha filha veio toda animada me contar que a Gisele Bundchen e o Tom Brady estavam se separando. Aos 14 anos, ela adora ficar a par de tudo o que acontece no mundo das celebridades, sabe a data de lançamentos de todos os álbuns da música pop e conhece no detalhe a lista de filmes e séries que seus atores favoritos fizeram.

Apesar de achar a Gisele Bundchen linda e de ter torcido muito pelos arremessos certeiros do Tom Brady quando ele jogava no New England Patriots, não me interesso nada pela vida conjugal dos dois. Isso dito, preciso reconhecer que tem um tipo de stalking que eu, sim, pratico: gosto de visitar os sites de sinagogas em outros lugares e investigar quem são seus rabinos. Em uma destas empreitadas, descobri uma colega que tinha escrito um artigo para um livro editado pela Central Conference of American Rabbis, o sindicato rabínico reformista, que trata de um tema que muito me interessa: a conexão do judaísmo com a justiça social. Não foram nem cinco minutos entre descobrir o livro e tê-lo disponível no meu Kindle. O nome do livro, traduzido para o português: Resistência Moral e Autoridade Espiritual: Nossa Obrigação Judaica com a Justiça Social [1].

Logo no primeiro artigo do livro, o rabino Seth Linner, um dos seus editores,  escreve sobre “Judaísmo e o Mundo Político”. Ele abre o artigo dizendo que inúmeras vezes lhe perguntaram por que o judaísmo se importa tanto com a política e o estrutura como uma longa resposta a este questionamento.

A pergunta faz sentido e parece especialmente apropriada tendo em vista o clima político que temos vivido no Brasil nos últimos anos. Com alguma frequência, escutamos na imprensa comentários de que as religiões deveriam se ocupar da fé, da vida espiritual de suas comunidades, e deixar o debate sobre a vida cotidiana para líderes políticos ou outros analistas. Do ponto de vista cristão pode ser que esta conduta faça sentido, mas a tradição judaica, que vai muito além da religião no que foi definido por Mordecai Kaplan como uma Civilização Judaica, sempre se preocupou com formas de santificar a o comum, o cotidiano, de lhe atribuir intencionalidade, de empregá-la com os valores que nossa tradição transmite.

Nas páginas do Tanach e do Talmud, a vida espiritual ocupa um pequena minoria dos textos. A ênfase está na discussão da forma como tratamos uns aos outros, como protegemos os segmentos mais vulneráveis de nossas sociedades, como combatemos nas guerras, como estruturamos sistemas judiciais imparciais, como pagamos nossos funcionários de forma justa, como cuidamos dos recursos naturais e até quais estruturas de segurança precisam existir em nossas construções. Esses são apenas alguns exemplos de como a tradição judaica se preocupa com o concreto, com a vida que levamos além dos momentos que poderiam ser rotulados como “rituais” ou “religiosos”.

O parágrafo final do artigo do rabino Limmer resume bem esta posição:
Por que o judaísmo se preocupa com a política? Porque a Torá nos ensina que a santidade deve entrar no mundo através de nossas interações com os outros. Porque os profetas protestaram contra a injustiça, sejam pecados no santuário ou abuso de poder no reino político. Porque o Talmud estabelece um sistema intrincado de leis que nos liga aos nossos vizinhos, quer busquemos essa conexão social ou não. Porque, por mais de três mil anos, nossa tradição nos ensinou que todo ser humano é pessoalmente responsável pela posição moral do mundo inteiro.
Tudo isso dito, é claro que não estamos defendendo que um líder religioso defenda do púlpito o voto em um candidato ou em outro — isso seria claramente abuso do seu poder religioso.

O fato de que o judaísmo encare o universo da política como uma área natural para o seu exercício torna ainda mais preocupante do ponto de vista judaico a situação que vivemos hoje. Ao longo da última semana, podcasts da Folha de S. Paulo [2], e do O Globo [3] trataram da polarização afetiva, dos conflitos entre amigos e dentro de famílias que têm levado a rupturas sociais antes inimagináveis. Parte do caldo de cultura que tem permitido que essa polarização aconteça é uma radicalização das narrativas, com a efetiva negação da legitimidade de posições políticas destoantes, além da perda de referências que faz com que já não saibamos o que é verdadeiro e o que não é. 

Dentro da extensa lista de temas sobre os quais o judaísmo se interessa, a possibilidade da divergência ocupa lugar central. Uma das passagens talmúdicas mais famosas a este respeito conta que as escolas de Hilel e de Shamai debateram por três anos um assunto sem conseguir chegar a um consenso. Após este tempo, uma voz divina anunciou: “אלו ואלו דברי אלוהים חיים”, elu veelu divrei Elohim chayim, “tanto umas quanto as outras são as palavras vivas de Deus.” [4] Apesar de opostas, as posições dos dois lados carregavam verdades. Hoje, numa eleição que já foi caracterizada inúmeras vezes como uma guerra entre o bem e o mal, me parece absolutamente improvável que alguém conseguisse enxergar verdades na posição de seu opositor político. Mais do que isso, passamos da disputa eleitoral à guerra eleitoral, um fenômeno que não tem acontecido só no Brasil. 

Na campanha presidencial norte-americana de 2008, em um evento com seus eleitores, John McCain, um eleitor se levantou e lhe disse que tinha medo porque Barack Obama, contra quem McCain concorria, estava aliado aos terroristas. A resposta de McCain foi: “eu preciso te dizer que ele é uma pessoa decente e uma pessoa de quem você não precisa ter medo como presidente dos Estados Unidos”. O público passou a vaiar seu próprio candidato. Na sequência ele disse a outra eleitora, ainda sobre Barack Obama: “ele é um homem de família decente e um cidadão, com quem eu tenho discordâncias em questões fundamentais e é sobre isso de que se trata esta eleição.” [5] Talvez tenha sido pela sua decência em defender  a verdade e seu opositor que McCain perdeu aquela eleição — como outros ciclos eleitorais demonstraram, mentiras têm um poder imenso para criar fanatismo, medo e entusiasmo na eleição. McCain perdeu a eleição de 2008, mas continua sendo apontado como um exemplo de político que não estava disposto a corromper seus valores para vencer a qualquer custo.

A possibilidade de encontrar decência na pessoa de quem se diverge, tratá-la com respeito, é vista cada vez mais como uma esperança ingênua, a descrição de um mundo ao qual nunca mais voltaremos. Quem sabe, o judaísmo e sua visão da política pode ter algo a contribuir para alimentarmos este sonho, mesmo que ele seja fruto da nossa ingenuidade.

Na parashá desta semana lemos a história da Torre de Babel [6]. O texto conta que “toda a terra tinha o mesmo idioma e usava as mesmas palavras”, “דברים אחדים”, dvarim echadim. “Palavras”,  “דברים”, dvarim — a mesma expressão usada para o que a voz Divina, reconheceu como vindas de Deus no caso de Hilel e Shamai, ainda que refletindo posições opostas, é aqui usada para fazer referência às palavras únicas da geração de Babel. As pessoas, então, decidem construir uma torre que chegasse ao céu. Incomodado com o plano, Deus destrói a torre, os dispersa por toda a terra e estabelece múltiplos idiomas. 

O filósofo israelense Ieshaiahu Leibowitz, tem uma leitura bastante inusitada desta passagem e que me parece apropriada para o momento que vivemos. Ele escreveu:
Parece-me que este decreto não foi um castigo mas, pelo contrário, uma medida tomada para o benefício da humanidade. A grande importância do episódio da Torre de Babel não é, de forma alguma, a tentativa de construir uma torre, mas remete para o que foi dito anteriormente, que "a terra – a humanidade renovada após o dilúvio – tinha uma língua e as mesmas palavras”. Após o fracasso da construção, diversos idiomas foram criados, o que levou a diversos discursos. Parece-me que a raiz do erro (ou pecado) da “geração da separação” não foi a construção de uma cidade e uma torre, mas o objetivo de usar esses meios artificiais para garantir uma situação de "uma linguagem e um discurso" – de centralização, o que, em linguagem moderna é conhecido como “totalitarismo". Uma linguagem e um discurso é, de acordo com muitas pessoas ingênuas em nossos dias, a descrição de uma situação ideal: toda a humanidade em um único bloco sem diferenciação e, como resultado, sem conflitos. Mas quem realmente entende saberá que não há nada mais ameaçador do que este conformismo artificial: uma cidade e uma torre como o símbolo da concentração de toda a humanidade em um único tópico – onde não haverá diferenças de opinião e onde não haverá mais conflito sobre diferentes pontos de vista e valores. Não se pode imaginar maior tirania do que esta, não se pode imaginar maior infertilidade mental e moral do que esta – que não deve haver exceções e que não deve haver desvios do que é aceito e acordado, situação mantida pelos meios artificiais de uma cidade e uma torre. [7]
Para Leibowitz, ingênua é a crença de que estaríamos em uma situação ideal caso todos concordássemos sobre o melhor destino para nossas sociedades. A diversidade de opiniões, por outro lado, é o que possibilita o aparecimento de novas opinões, de oxigenação de modelos, de ideias, de perspectivas. 

Parafraseando John McCain, a maioria das pessoas de quem discordamos politicamente é formada por pessoas decentes, dignas, inteligentes e bem informadas. Elas têm o direito de ter uma opinião diferente da tua sem que isso negue sua humanidade, sua dignidade ou sua honestidade. É graças à diversidade política que podemos contemplar com que modelo de sociedade sonhamos e qual o projeto político que terá maior sucesso em nos levar lá. A alternativa é adotar um modelo de “דברים אחדים", dvarim echadim, de "palavras únicas” e abrir mão da possibilidade de crescer a partir do encontro de pontos de vista que reflitam simultaneamente as palavras vivas de Deus.

Neste domingo, com toda responsabilidade, pense na sociedade com que você sonha e escolha quem te parece ter mais chances de te aproximar dela — sem ódio, sem ressentimentos, sem cancelamentos e sem rompimentos de pessoas que você sempre considerou dignas; não será o voto delas nem o teu que deve te fazer mudar essa opinião. 

Shabat Shalom e bom voto!

[1] Seth M. Limmer e Jonah Dov Pesner, “Moral Resistance and Spiritual Authority: Our Jewish Obligation to Social Justice”, CCAR Press, 2019.
[2] https://open.spotify.com/episode/1awSmQ40tNt6xUaxFtCQMU?si=a12575c5b69f4100
[3] https://open.spotify.com/episode/6hk4S3p63agYyy58EFdvwV?si=ccb1baba71354c3b
[4] Talmud da Babilônia, Eruvin 13b
[5] https://www.youtube.com/watch?v=M0u3QJrtgEM 
[6] Gen. 11:1-9
[7] Yeshayahu Leibowitz, “Earot leParshiot haShavua”, Ch. 2: Bereshit - Noach 


sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Dvar Torá: Reafirmando nossa humanidade apesar da tecnologia (CIP)

Em seu livro sobre a revolução francesa “18 do Brumário de Napoleão Bonaparte”, impressionado com os papéis de Napoleão Bonaparte e seu sobrinho, Luís Napoleão, que foi o primeiro presidente eleito da França, mas deu um golpe e se tornou seu último monarca, Karl Marx cunhou uma de suas frases mais famosas: “a história se repete: primeiro como tragédia, depois como farsa”. [1]

Em 1918, quando a Primeira Guerra Mundial estava chegando ao seu fim, uma pandemia atacou uma população que já estava desgastada pelos quatro anos da guerra: com a população mal nutrida e em péssimas condições de higiene, a infecção atacou em cheio,  causando uma reação excessiva do sistema imunológico e milhões de vítimas [2]. Entre 50 e 100 milhões de pessoas morreram por esta doença, que na verdade não estava originalmente associada à Espanha. Os estudos mostram que a pandemia teve origem, provavelmente, em acampamentos militares norte-americanos, mas por causa do esforço de guerra, a censura militar impedia que notícias sobre a infecção de soldados americanos fossem divulgadas; sobrou para a Espanha, que não participava da guerra e onde a imprensa podia noticiar livremente as infecções. Estima-se que cerca de 500 milhões de pessoas se infectaram entre fevereiro de 1918  e abril de 1920. No Brasil, as estimativas são de que mais da metade da população da cidade de São Paulo se contaminou pelo vírus e na cidade do Rio de Janeiro, cerca de 12.700 pessoas morreram devido à pandemia [3]. Por todo o mundo, autoridades políticas negaram sua gravidade; quando a seriedade da doença foi compreendida, medidas de distanciamento social foram adotadas; cinemas, escolas e centros religiosos foram fechados e máscaras passaram a ser usadas em locais públicos [4].

 “A história se repete: primeiro como tragédia, depois como farsa.”

Um aspecto no entanto, faz com que a história da pandemia de 1918 e a que estamos vivendo hoje sejam radicalmente diferentes e basta um pouquinho de matemática para percebermos: 500 milhões de pessoas infectadas em 1918, entre 50 e 100 milhões de mortos. A taxa de letalidade era entre 10% e 20% daqueles que se infectavam. Hoje, com quase 42 milhões de infectados e 1.140.422 mortos [5], a taxa de letalidade está na casa de 2,7% — o que ainda é muito alto e justifica todas as medidas de proteção que estamos adotando, mas é muito menos que 20%!

O que explica essa diferença nos números? Em 1918, não existiam remédios anti-virais [6] ou antibióticos [7] que permitissem tratar as infecções secundárias. O primeiro respirador artificial foi desenvolvido apenas em 1928 [8] e a Internet, que tem permitido que médicos de todo o mundo compartilhem, em tempo real, suas experiências no tratamento da doença, não fazia parte nem do sonho das pessoas antes do anos 1960.

Em resumo, o desenvolvimento tecnológico tem salvado vidas todos os dias, tanto na prevenção de novas infecções quanto no tratamento daqueles que já se infectaram. Negar os benefícios que a tecnologia tem trazido às nossas vidas, quando eu falo com vocês através das telas, seria no mínimo tolice.

A parashá desta semana, no entanto, traz alguns alertas sobre os impactos negativos da tecnologia.[9]

Na época sobre a qual a Torá fala, a tecnologia mais recente era o desenvolvimento do tijolo queimado e da argamassa. Com eles, a humanidade acreditou que poderia se transformar em deuses se construíssem uma torre que chegasse até o céu. Deus percebeu que, no ritmo em que eles iam, nada estaria fora do seu alcance e agiu para que seus planos fossem frustrados.

“A história se repete: primeiro como tragédia, depois como farsa.”

Não são poucas as experiências contemporâneas nas quais o desenvolvimento tecnológico tem permitido que acreditemos na possibilidade de nos tornarmos deuses.

Quando eu leio a história da Torre de Babel, imediatamente eu penso na ovelhinha Dolly, o primeiro mamífero nascido por um processo de clonagem, em 1996 [10]. Graças ao desenvolvimento científico e tecnológico que ela desencadeou, especialmente na área de células tronco, temos hoje a possibilidade de curar doenças para as quais não havia qualquer tratamento.

O desenvolvimento de técnicas de clonagem, no entanto, também abriu a possibilidade de manipulação genética para fins de eugenia, um conceito ultrapassado de melhoria genética da espécie humana, popular no século 19 e que deu roupagem científica a preconceitos raciais.  Já imaginou se toda a população pudesse ter olhos azuis? Ou aquela covinha na bochecha quando sorri? Quando seres humanos acreditam que nosso desenvolvimento tecnológico nos permite decidir quais características genéticas a população terá no futuro, onde fica a ética? Onde fica a moral? A busca de bebês que sejam a materialização dos sonhos biológicos de seus pais dá expressão ao sonho maligno do Dr. Josef Mengele, o anjo da morte de Aushwitz, que usava os prisioneiros judeus para seus experimentos.
 
Mas não é só na medicina que a tecnologia tem nos confundido sobre o que ela nos possibilita fazer. Aplicativos inocentes nos nossos celulares permitem que as operadoras saibam todo lugar em que passamos, quem visitamos e quanto tempo ficamos em cada lugar. Tecnologias de reconhecimento facial permitem que padres e rabinos identifiquem quais comentários fazem mais sucesso pela forma como as feições dos fiéis respondem às suas prédicas e sermões. Deep fake, a irmã mais nova no parquinho das maldades, permite que recriemos o que de fato aconteceu, construindo aparições em vídeo onde a voz e a imagem dizem uma coisa, mas a realidade dos fatos diz exatamente o seu oposto.
Muitas vezes, o mesmo desenvolvimento tecnológico que salva vidas coloca na ponta dos nossos dedos capacidades que nos seduzem, que nos fazem sentir todo-poderosos e que traem nosso sonho de uma sociedade mais justa, mais aberta, mais inclusiva. 

Uma outra forma como a tecnologia tem permitido que nos sintamos deuses é o efeito da caixas de ressonância criadas pelas redes sociais. Em uma live no domingo passado [11], em que lançou a edição em português do seu livro “O Impasse de 1967”, o dr. Micah Goodman falou de como o negócio de empresas como facebook, YouTube e Twitter, é reter a nossa atenção e como, infelizmente, ideias extremas e que confirmem aquilo no que já acreditamos capturam nossa atenção com muito maior eficiência. Por isso, as redes sociais tendem a gerar uma radicalização do discurso, dando legitimidade a ideias que germinavam apenas nos segmentos mais extremos da população e a criar contextos uniformes, que dão a aparência de que todos concordam com a tua opinião.

Nessas caixas de ressonância, em que nossas opiniões reinam sem que sejam questionadas, nos sentimos deuses, senhores absolutos de toda a razão. Nesses cenários, não existe incentivo algum para escutar a perspectiva do outro; não existe nem mesmo o reconhecimento de que este outro, que pensa diferente, existe. Neste cenário polarizado, em que cada um se considera o único dono da verdade, o diálogo com quem pensa diferente é uma traição inaceitável. Basta ver a reação da massa quando um político eleito por uma plataforma ideológica é visto conversando com um político que representa outra ideologia. A política, a arte da produção de consensos, de busca de campos comuns, tem sido negada, não só pelos escândalos de corrupção, mas principalmente por uma pureza ideológica que não aceita nenhum tipo de concessão.

Yeshayahu Leibowitz, um filósofo ortodoxo israelense de ideias polêmicas e que incomodava todos os governos de Israel, afirmou que o conceito de Bavel, a cidade em que todos tinham a mesma linguagem e as mesmas palavras é um eufemismo para falar de totalitarismo, a situação em que todos são forçados a pensar o mesmo e no qual uma ideia diferente é percebida como uma traição.

Leibowitz escreveu: 
“Uma linguagem e um discurso é, de acordo com muitas pessoas ingênuas em nossos dias, a descrição de uma situação ideal: toda a humanidade em um único bloco sem diferenciação e, como resultado, sem conflitos. Mas quem realmente entende saberá que não há nada mais ameaçador do que este conformismo artificial: uma cidade e uma torre como o símbolo da concentração de toda a humanidade em um único tópico – onde não haverá diferenças de opinião e onde não haverá mais conflito sobre diferentes pontos de vista e valores. Não se pode imaginar maior tirania do que esta, não se pode imaginar maior infertilidade mental e moral do que esta – que não deve haver exceções e que não deve haver desvios do que é aceito e acordado, situação mantida pelos meios artificiais de uma cidade e uma torre.” [12]

O que o tijolo queimado e a argamassa produziram na geração da Torre de Babel, as redes sociais replicaram na nossa geração: a possibilidade de acharmos que somos quase-deuses e, assim,  que todos devem pensar o mesmo que nós e adotar o nosso discurso.

Para Leibowitz, a resposta de Deus, espalhando as pessoas pelos quatro cantos da terra e fazendo com que adotassem idiomas diferentes, não foi uma punição, mas um sinal da compaixão infinita de Deus pela humanidade. Para ele, foi só em um mundo em que não havia mais uma única língua e um único discurso que Avraham, o mais iconoclasta dos nossos patriarcas, pôde aparecer e questionar a tradição dos seus pais.

“A história se repete: primeiro como tragédia, depois como farsa.”

Não faz sentido desejarmos viver em um mundo sem tecnologia, da mesma forma que não faria sentido para Avraham rejeitar o uso do tijolo queimado e da argamassa. No entanto, é fundamental que reconheçamos também os efeitos nocivos que a tecnologia pode trazer consigo — a notícia boa é que nenhum deles é inevitável. Podemos assinar jornais nos quais posições plurais sejam expressas; podemos buscar diálogo com quem pensa radicalmente diferente da gente; podemos rejeitar ou limitar o uso de tecnologias que, apesar de oferecerem comodidades, invadem a nossa privacidade ou, ainda pior, nos permitem invadir a privacidade dos outros.

Que nesta distopia em que temos vivido, na qual nos tornamos cada vez mais dependentes da tecnologia, tenhamos a coragem de olhá-la nos olhos e re-afirmar a nossa humanidade.

Shabat Shalom

[1] https://en.wikipedia.org/wiki/The_Eighteenth_Brumaire_of_Louis_Bonaparte
[2] https://en.wikipedia.org/wiki/Spanish_flu
[3] https://brasilescola.uol.com.br/historiag/i-guerra-mundial-gripe-espanhola-inimigos-visiveis-invisiveis.htm
[4] https://en.wikipedia.org/wiki/Spanish_flu#Public_health_management
[5] https://en.wikipedia.org/wiki/Template:COVID-19_pandemic_data acessado em 23/10/2020.
[6] https://en.wikipedia.org/wiki/Antiviral_drug
[7] https://en.wikipedia.org/wiki/Antibiotic#History
[8] https://en.wikipedia.org/wiki/Ventilator#History
[9] Gen. 11:1-9
[10] https://en.wikipedia.org/wiki/Dolly_(sheep)
[11] https://youtu.be/dE9jvFAOd1c
[12] Yeshayahu Leibowitz, Earot leParshiot haShavua, Ch. 2: Bereshit - Noach




A esperança que supera o desespero

Há alguns anos, o rabino Ariel Kleiner e eu liderávamos juntos um grupo de estudos da parashá com midrash e arte na sala de estar da minha casa. Logo na segunda semana do projeto, nos deparamos com parashat Noach, que conta a história da Arca de Noé e que lemos esta semana novamente. O rabino Ariel e eu tínhamos entendimentos radicalmente diferentes de como o texto bíblico se relacionava com a realidade contemporânea. Para mim, focando na decisão Divina de destruir o mundo através de um dilúvio, este era um alerta para a nossa sociedade de como o comportamento irresponsável de uma geração tinha levado o planeta à sua quase-destruição; para ele, focando no final da história, quando as águas baixaram e Noé, sua família e os animais desceram da arca, esta era uma história sobre esperança, um exemplo de como, mesmo após as piores catástrofes, existe a possibilidade de reconstrução.

Bem no espírito dos debates rabínicos, a verdade é que nós dois tínhamos razão! Esta história da Torá é tanto sobre destruição quanto sobre reconstrução; é um alerta e também um sinal de esperança -- e nesses dois aspectos, profundamente necessária nos nossos dias. 

“A terra tinha se corrompido frente a Deus e tinha se enchido de violência” [1] parece uma descrição da realidade em que vivemos: a realidade em que vivemos nos leva perigosamente próximos a desastres, seja pelo esgotamento dos recursos naturais, pela acirramento dos conflitos sociais e internacionais, ou pela nossa incapacidade de demonstrarmos empatia pela situação do outro quando quadros de crise exigem ações coordenadas, seja pelo coronavírus ou por desastres naturais. Temos perdido nosso senso de responsabilidade para com o coletivo, do qual a recusa em usar máscaras em certos segmentos é apenas uma manifestação, como bem indicou Yehuda Kurtzer em um artigo recente [2]; a devastação ambiental bate recordes a cada ano, sem que consigamos diminuir a velocidade com que destruímos os recursos naturais; depois de seis décadas em que parecia que o mundo tinha aprendido uma lição das tragédias da primeira metade do século XX e buscava frear nacionalismos radicais, movimentos neonazistas e outras correntes baseadas no ódio ao diferente, incluindo muitos movimentos antissemitas, têm reaparecido em diversas partes do mundo; as democracias liberais, baseadas na sociedade civil e no respeito às instituições também parecem viver profunda crise; o sistema multilateral de relações internacionais que procurava evitar novos conflitos através da cooperação entre as nações está desmoronando e aumentam os conflitos entre as principais potências. Vista por esta perspectiva, nossa situação é desesperadora.

Na tradição judaica, no entanto, o desespero dá lugar à possibilidade de t’shuvá, a transformação das nossas condutas que possibilita nosso retorno à melhor versão de nós mesmos. Apesar de reconhecer nossa tendência a sermos seduzidos por nossos olhos e corações, há um otimismo inerente à visão judaica de mundo, de que reformaremos nossas condutas e, neste processo, ajudaremos a transformar o mundo. O rabino Ariel tinha razão: a história do Dilúvio não termina com a destruição do mundo, mas com a sua reconstrução e com a esperança, trazida pela pomba, de uma vida muito diferente. Assim,  a Torá não permite que o desânimo pelo estado atual das coisas nos leve a desistir: não permitiu na geração de Noach e continua não permitindo nos nossos dias.

O ciclo de leitura da Torá está apenas começando -- oferecendo a todos nós uma nova oportunidade de nos reencontrarmos com o texto central da nossa tradição e, através deste encontro, buscarmos transformar o mundo em um lugar justo para todos.

Shabat Shalom

[1] Gen. 6:11
[2] https://www.theatlantic.com/ideas/archive/2020/10/brooklyns-anti-masking-protests-betray-a-broken-culture/616694/