sexta-feira, 28 de junho de 2019

Dvar Torá: Abrace a mudança! (CIP)

Sabe aquele final de viagem, em que você não vê a hora de voltar pra casa e  dormir na sua cama? Pois quando eu era pequeno, o que eu mais gostava no final de longas viagens era ver as novidades, o que tinha mudado. Eu adorava ficar prestando atenção aos novos outdoors no caminho do aeroporto e, chegando em casa, pegar as edições acumuladas de Veja e olhar as notícias às quais não tínhamos prestado atenção.

Pequenas mudanças, com certeza, mas que sempre me deixavam animado, ansioso por estar de volta. Quando será que a gente perde esta excitação infantil com a novidade e começa a temer tudo o que seja novo?

Na parashá desta semana, Moshé é instruído por Deus a enviar 12 pessoas, um líder de uma das 12 tribos, para ver a situação da Terra de Israel, na qual o povo, tendo cruzado o Deserto, esperava entrar dali a pouco. Moshé instrui estes enviados, dizendo: “subam pelo Neguev e subam pela montanha e vejam a terra, como ela é: Como é o povo que vive nela, se são fortes ou fracos, se são muitos ou poucos? Como é a terra na qual eles vivem, ela é boa ou ruim, como são suas cidades, são como acampamentos ou são fortificadas? Como é a terra, ela é farta ou escassa, há nela árvores ou não? Usem um pouco de força e tragam alguns frutos da terra.” [1]

E, assim, estas 12 pessoas foram e passaram 40 dias em visita de reconhecimento à terra de Israel. Após este período, eles voltaram e deram um relatório de suas impressões, assim como Moshé tinha pedido. Falaram de uma terra linda, de onde flui o leite e mel, onde as frutas eram gigantes e eles trouxeram cachos gigantes de uva para provar. Falaram de cidades fortificadas, de gigantes que moravam naquela terra e aos olhos de quem os hebreus se pareciam com pequenos grilos. Das doze pessoas que tinham sido enviadas, dez diziam que os hebreus não tinham nenhuma chance contra os poderosos habitantes da terra de Israel; só dois dos enviados, Iehoshua ben Nun e Caleb ben Iefunê, discordaram da conclusão, dizendo que os hebreus - com o apoio de Deus - tinham condições de conquistar a terra. O povo, em desespero, começa a se perguntar porque Deus não os tinha deixado morrer no Egito ou no deserto, e a planejar como eles podiam voltar para o Egito. 

Deus, muito irritado, conta a Moshé seus planos de dar cabo ao povo e começar tudo de novo, um novo povo a partir só de Moshé. Moshé argumenta contra a ideia, e Deus lhe diz: “סָלַחְתִּי כִּדְבָרֶךָ”, “eu os perdoo, conforme você me pediu” [2], mas também declara que nenhum deles poderá entrar na terra de Israel, eles passarão 40 anos vagando pelo deserto (um ano para cada dia da excursão de reconhecimento dos líderes em Israel), até que toda a geração que tinha sido libertada do Egito falecesse no deserto. No Talmud[3], este episódio é mencionado como tendo acontecido em Tishá b’Av, a origem das séries de tragédias comunais judaicas associadas a esta data.

Ao longo dos séculos, muitos comentaristas se perguntaram se a punição era apropriada ao pecado. Afinal de contas, Moshé tinha sido instruído por Deus a enviar a excursão de reconhecimento e eles tinham reportado de acordo com a sua impressão. Parece mais um caso de culpar a imprensa por notícias ruins… 

O Lubavitcher Rebbe, o rabino Menachem Mendel Schneerson, deu uma explicação bastante interessante para a motivação do relato negativo:

No deserto, cada uma das necessidades dos israelitas era satisfeita por um presente direto de D'us. Eles não trabalhavam para ter comida. Seu pão era o maná que caía dos céus; a água deles vinha do poço de Miriam; suas roupas não precisavam de conserto. A posse da terra de Israel significava um novo tipo de responsabilidade. O maná cessaria. Pão viria apenas através da labuta. Os milagres providenciais seriam substituídos pelo trabalho; e com o trabalho viria o perigo de uma nova preocupação. (…) Seu temor era que a preocupação de trabalhar a terra e ganhar a vida pudesse, no final das contas, deixar os israelitas com cada vez menos tempo e energia para o serviço de D'us. Eles disseram: “É uma terra que consome seus habitantes”, significando que a terra e seu trabalho, e a preocupação com o mundo materialista, “engoliriam” e consumiriam todas as suas energias. Sua opinião era de que a espiritualidade floresce melhor na reclusão e na retirada, na paz protegida do deserto, onde até mesmo a comida era “dos céus”. [4]

Os dez líderes que deram o relato negativo estavam acostumados com a vida no deserto, podia não ser ideal, mas era conhecida. Em sua leitura do comentário do Lubavitcher Rebbe, o rabino Jonathan Sacks, diz que os enviados “não estavam com medo do fracasso; eles estavam com medo do sucesso”[5]. Além disso, eles estavam receosos da transição de uma vida na qual suas necessidades físicas eram supridas por Deus para uma na qual eles tivessem que trabalhar a terra para ter seu sustento e na qual eles não poderiam mais dedicar toda sua energia ao trabalho espiritual. A este respeito, o Lubavitcher Rebbe diz: “os espiões estavam errados. O propósito de uma vida vivida na Torá não é a elevação da alma: é a santificação do mundo.”

Há nesses poucos parágrafos de comentário, material para conversarmos por horas, mas eu tenho mais alguns poucos minutos – e eu quero gastá-los pensando na santificação do nosso cotidiano, das nossas vidas dentro e fora dos limites deste prédio.

Quando a animação pelo novo que toda criança tem vira o medo da ruptura e da quebra das rotinas?
Vivemos em um mundo de transições aceleradas. Há poucas décadas, a homoafetividade era um tabu sobre o qual ninguém falava; o assédio a mulheres nos ambientes de trabalho eram percebidos como preço que mulheres precisavam pagar para terem uma vida profissional; mesmo meu pai ficava muito incomodado porque eu gostava de brincar com bonecas. Quando minha filha nasceu, ela faz 11 anos no mês que vem, não existia a possibilidade de que ela pudesse receber uma aliá na Torá nesta sinagoga, nem ao menos sentar ao meu lado. 

Hoje, somos orgulhosos dos passos que demos na direção de um judaísmo mais inclusivo e igualitário, que reconhece nossas diferenças mas esperqa que possamos tratar a todos com a mesma dignidade e respeito. Na semana passada, o prédio da prefeitura de São Paulo foi iluminado com as cores do arco-íris em homenagem à Parada do Orgulho Gay, que aconteceu neste último domingo. Durante o Ticún da Virada, tivemos uma judia trans apresentando uma sessão sobre questões de gênero no judaísmo, juntamente com um dos líderes do grupo LGBTQ no facebook. 

Para muitos de nós, estas mudanças são bem vindas e ansiadas por muito tempo. Para outros, elas são uma ruptura com práticas sociais conhecidas e que, ainda que elas não fossem perfeitas, havia um conforto na estabilidade. Jason Clarke, em uma palestra TED sobre o medo do novo[6], diz que o status quo, a forma como as coisas eram feitas antes, é conhecido, estruturado, provado, certo e reconfortante. O novo, por outro lado, é desconhecido, desestruturado, ainda precisa ser provado, é incerto e esquisito.
Na parashá Lech Lechá, quando Deus pede que Avraham deixe tudo para trás e comece uma nova vida no lugar que Deus indicaria, eu tenho certeza que Avraham também ficou assustado e amedrontado. Lech Lechá: vá para você mesmo. Na nossa parashá, Shlach Lechá: envie para você mesmo, o medo toma conta da reação do povo.

A escritora Karen Thompson Walker, também em uma palestra TED [7], comparou o medo com a contação de histórias. Segundo ela, criamos narrativas nas nossas mentes de que há um monstro embaixo da cama, de que há um risco do piloto errar algo durante o voo e o avião cair, de que as mudanças no Judaísmo como o conhecíamos levarão à total destruição da nossa tradição, de que não há estabilidade possível nas novas formas como a sociedade está se estruturando. Ela cita o escritor Vladimir Nebukov, que argumentava que há duas modalidades muito distintas para lermos uma história: a artística e a científica. Na modalidade artística, adoramos os cenários mais vívidos, gráficos, até sensacionalistas. Gostamos de filmes em que o inconcebível acontece pelas lindas cenas de explosão que propicia. Na modalidade científica, por outro lado, nos perguntamos qual a real probabilidade de que estes cenários aconteçam de fato: é o chato que reclama de um filme de ficção científica, dizendo que no espaço não há propagação do som. Para Walker, não precisamos negar o medo, mas precisamos lê-lo com o temperamento científico e nos perguntarmos se os cenários que está arrepiando nossos fios de cabelo é realmente o resultado esperado das condições que observamos.

Os dez enviados que voltaram com a percepção pessimista leram a realidade que encontraram apenas de forma artística. Um cenário em que a terra tinha gigantes e  que devorava os que nela viviam tomou conta de seu imaginário. Apenas Iehoshua e Caleb usaram leram suas impressões de forma científica, acreditando que o Deus que os havia tirado do Egito com mão forte e braço estendido ajudaria também na conquista da terra.

O mundo está mudando e rápido. Para alguns, é excitante e para outros é desesperador. O rabino Jonathan Sacks, citando o Salmo 23, disse: “ ‘Apesar de andar no vale da sombra da morte, eu não temo pois Você está comigo’ – nós podemos enfrentar qualquer futuro sem medo desde que saibamos que não o enfrentaremos sozinhos.” [8]

Que as palavras do rabino Sacks nos inspirem a continuarmos sonhando e mudando, reconhecendo os desafios representados por estas dinâmicas e nos apoiando mutuamente para superá-los.

Shabat Shalom!


 [1] Num 13:17b-20a
 [2] Num 14:20
 [3] Talmud Bavli Sotá 35a
 [4] Schneerson, Menachem M., Torah studies. Brooklyn, N.Y: Kehot Publication Society, 1996. Minha própria tradução.
 [5] Sacks, Jonathan. Covenant & conversation, a weekly reading of the Jewish Bible : Numbers, the wilderness years. New Milford, CT: Maggid Books & The Orthodox Union, 2017. p. 149. Minha própria tradução.
[6] https://www.youtube.com/watch?v=vPhM8lxibSU
[7] https://www.ted.com/talks/karen_thompson_walker_what_fear_can_teach_us?language=pt
[8] https://www.ted.com/talks/rabbi_lord_jonathan_sacks_how_we_can_face_the_future_without_fear_together