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quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Distantes no calendário, próximas nos valores

Muitas vezes, representamos o calendário judaico como um círculo, ao redor do qual escrevemos os meses, os feriados, as estações do ano e as espécies agrícolas cuja colheita na terra de Israel acontecem em cada época. Mais apropriado, me parece, seria representar o ano judaico como uma elipse, na qual existem dois pontos focais: os feriados da primavera, notadamente Pessach e Shavuot, e os feriados do outono, Rosh haShaná, Iom Kipur,  Sucot e Simchat Torá. Muitas são as semelhanças (e também as diferenças) entre as comemorações, apesar das diferentes narrativas e  de estarem diametralmente opostas quando vistas no ciclo anual.

Pessach é conhecida por comemorar a nossa libertação da servidão mas, nas páginas do Talmud, há uma disputa rabínica sobre qual é a servidão da qual fomos libertados. Shmuel acreditava que se tratava da escravidão física aos egípcios e que comemorar Pessach significava celebrar um processo de libertação política. Rav, por outro lado, acreditava que se tratava da escravidão espiritual à idolatria e ao paganismo. Para ele, comemorar Pessach implicava falar de um processo de libertação espiritual.

Rav provavelmente se sentiria validado pelos primeiros feriados de Tishrei, Rosh haShaná e Iom Kipur, que focam no nosso processo de crescimento espiritual, na introspecção e na avaliação das nossas condutas. Shmuel, por outro lado, gostaria de Sucot, na qual mudamos nossa orientação para o que é mais concreto, para a fragilidade dos lugares em que vivemos, em particular os segmentos mais vulneráveis das nossas sociedades.

Em determinado momento do seder de Pessach, abrimos as portas e cantamos Eliahu haNavi, lembrando-nos do profeta que, de acordo com a tradição, anunciará a chegada da Redenção. Sempre pensei que fazíamos este gesto com a esperança de que seria neste ano que chegaríamos à Era Messiânica. Há alguns anos, escutei do rabino Neil Gilman z”l outra interpretação para o gesto: de acordo com ele, depois de passarmos tantas horas cantando sobre a liberdade, poderíamos sair do seder com a ilusão de que o mundo já havia sido libertado. Assim, abrimos a porta para nos dar conta de que há muito trabalho ainda a ser feito para chegarmos a um mundo em que todos possam celebrar sua redenção pessoal e libertação nacional. Da mesma forma, há uma tradição de fincar a primeira estaca da sucá ao sairmos da sinagoga ao final de Iom Kipur. Depois de tantas horas focadas no nosso crescimento espiritual, buscamos equilíbrio trabalhando no mundo, martelo e estacas na mão.

O estudo e a prática da tradição judaica também fazem parte das mensagens destes dois pontos focais do calendário. No foco da primavera, comemoramos em Shavuot a entrega da Torá no Monte Sinai e celebramos passando a noite inteira em estudo; no foco do outono, celebramos a conclusão e o reinício do ciclo de leitura da Torá. Como uma criança que acaba de escutar uma história e, por ter gostado profundamente, pede para que a contem de novo, o povo judeu mal termina um ciclo de leitura da Torá e começa um novo, com muita dança e alegria.

Dois pontos focais na elipse do nosso calendário com mensagens muito semelhantes: a vida judaica deve buscar um equilíbrio entre o crescimento espiritual e o trabalho no mundo e a Torá, com suas setenta faces e inúmeras interpretações, é a ferramenta fundamental para atingir-se este equilíbrio.

Neste domingo à noite (dia 09/10), começamos as comemorações de Sucot e na próxima segunda-feira à noite (dia 17/10), começaremos a comemorar Simchat Torá. Cheque a programação e aproveite a chance de trazer mais significado e textura ao teu ano!

Shaná Tová e Chag Sameach!


sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Dvar Torá: Expandido nossa perspectiva da Torá (CIP)


Quando eu morava em Israel, e lá se vão mais de 20 anos, havia um jogo mental que os israelenses gostavam de jogar: dividir qualquer coisa em três partes. Esta cerimônia de Cabalat Shabat, por exemplo: tem as rezas que vem antes da prédica, a própria prédica e a conclusão do serviço após a prédica. A nossa sucá, onde em breve o Schinazi fará o kidush, pode ser dividida na base, o schach, sua cobertura, e a decoração. Uma bola de futebol pode ser dividida na superfície interna, a superfície externa e o ar interior. Esta ideia de dividir coisas em um número fixo de partes é tão divertida quando superficial em suas análises.

Mas vamos tentar mais uma vez: quando éramos colegas de classe no seminário rabínico, um amigo querido, o rabino Dan Mikelberg, dizia que havia dois tipos de judeus: o que comemoram Sucot e os que não comemoram Sucot. A ideia dele é que Sucot é das poucas festas judaicas que não falam de perseguição, em que os judeus não são vítimas. É uma festa na qual uma das obrigações religiosas é nos alegrarmos, é passarmos este tempo felizes, buscando formas divertidas de nos engajarmos com a tradição judaica. E, mesmo assim, a verdade é que muitos de nós estaríamos no grupo de judeus que não comemora Sucot.  Por que será?

Temos alguns bons motivos para dar como desculpa: a overdose de judaísmo em Rosh haShaná e Iom Kipur nos deixou sem forças para mais uma maratona de 9 dias de feriados judaicos, se incluirmos Shmini Atseret e Simchát Torá; não temos área em casa ou no prédio onde possamos construir uma sucá; faz frio, chove, quem de verdade é maluco de fazer suas refeições em uma cabana em que o telhado deixa passar água em pleno início de primavera em São Paulo?!?!

A verdade é que apesar de todas boas, estas são DESCULPAS que não explicam realmente porque Sucot não se tornou um campeão de audiências como Rosh haShaná, Iom Kipur, Pessach e até mesmo o serviço semanal de Cabalat Shabat.

Eu queria começar a pensar nesse assunto vindo da direção oposta: que papel você diria que o judaísmo tem na sua vida? Dito de outra forma: quando o serviço de Cabalat Shabat termina e você desliga a transmissão (ou vai pra casa se vc estiver aqui na sinagoga), o judaísmo continua atuando como uma fonte permanente de práticas, valores e abordagens ou fica adormecido até a 6a feira seguinte, quando volta a ser relevante na tua vida?

Eu costumo dizer que a educação judaica que eu recebi nos anos 70 e 80 me mostraram uma frestinha do judaísmo, uma pequena fração que me foi apresentada como se fosse o todo. Apresentado àquela versão limitada da cultura judaica, na qual eu não conseguia verdadeiramente me enxergar, minha resposta foi não dar papel algum ao judaísmo — não nos alimentos que eu comia, não nas roupas que eu vestia, não nos valores pelos quais eu vivia, não nos assuntos que eu decidia estudar ou nas causas para as quais eu me voluntariava.

Muitos anos depois, vivendo em Israel, eu descobri que a frestinha que tinham me apresentado não era o judaísmo inteiro!!! Havia um mar inteiro além daquela fresta, um universo no qual eu passei a me deliciar, a me enxergar e encontrar relevância nos mais amplos aspectos da minha vida. Foi neste segundo momento em que eu consegui enxergar em Sucot oportunidades de conexões — oportunidades de pensar nas formas em que  minha vida é cheia de vulnerabilidades (como a Sucá que é instável e vulnerável); na responsabilidade que eu tenho para com quem vive em situação de profunda vulnerabilidade o ano inteiro; no desafio de encontrarmos forças para nos alegrarmos vivendo em um mundo frágil e quebrado.

Muitos de nós, educados em um judaísmo limitado, adoramos falar em  uma vida guiada por “valores judaicos” sem sermos capazes de encher os dedos das duas mãos com quais seriam estes valores. Vivemos uma crise no relacionamento com o judaísmo, incapazes de darmos os passos necessários para superá-la.

Na parashá desta semana, temos algumas das cenas mais íntimas da Torá. Abalados pelo episódio do Bezerro de Ouro, Deus e Moshé buscam a reconciliação. Animado pela intimidade da conversa, Moshé pede a Deus que lhe mostre Sua face. Deus nega o pedido, mas diz a Moshé que passará na sua frente enquanto cobria os olhos de Moshé; depois de passar, Deus permitirá a Moshé enxergar novamente para que possa ver suas costas. [1]

Entenda esta passagem de forma literal ou de forma metafórica, mas a intimidade é incontestável. Deus ainda propõe a Moshé que esculpa duas novas Tábuas da Lei para o projeto conjunto humano-Divino de restituir as tábuas que Moshé havia quebrado.

Será que na nossa própria relação com Deus e com a tradição judaica é possível atingirmos um novo momento de intimidade e reconciliação como esta sobre a qual leremos amanhã?

Daqui a alguns dias, em Simchat Torá, terminaremos de ler a Torá com parashat veZot haBrachá. Nela, no começo de um poema-benção que Moshé dedica aos hebreus, ele afirma: “תורה ציוה לנו משה, מורשה קהילת יעקב”, “Moshé nos ordenou a Torá, uma herança para a comunidade de Iaacov”. [2].

Os comentaristas, ao longo do século discutiram qual o papel desta “Torá” que Moshé nos ordenou. O Baal Shem Tov, fundador do judaísmo chassídico, afirmou que “o objetivo de toda a Torá é que cada pessoa se transforme em uma Torá” — ou seja: que todas as nossas ações, das mais prosaicas às mais complexas; do amarrar o sapato ao desenvolver estratégias financeiras, deveriam ser exemplos do nosso comprometimento judaico. A benção que fazemos ao estudar a Torá: ברוך אתה ה׳ אלהינו מלך העולם אשר קדשנו בנמצוותיו וציוונו לעסוק בדברי תורה, Você é abençoado, ה׳, Soberano do Universo, que nos santificou com as Suas Mitsvot e nos instruiu a nos ocuparmos com as palavras da Torá, é evidência disso. A Torá não é algo sobre a qual filosofamos ou sobre a qual falamos apenas na teoria. A Torá, e aqui a intenção é toda a tradição judaica, tem a chance de ser a guia mestra pela qual vivemos todos os momentos.

Será que conseguimos renovar a relação de cada um de nós com a tradição judaica, desenvolvendo-a com criatividade, conhecimento, engajamento e paixão?

Este é meu desafio para cada um de nós neste 5782 e neste novo ciclo de leitura da Torá que se inicia no meio da semana!

Chag Sameach! Shabat Shalom!


[1]  Ex. 33:12-34:10
[2]  Deut 33:4

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Dvar Torá: o imperativo judaico da consciência ambiental

No dia 26 de novembro de 2017, o jovem Matheus Dutra Thomaz Aldeia, de 17 anos tomou seu café da manhã reforçado e, como tinha planejado, saiu da sua casa em Embu das Artes pra pegar o ônibus. O tempo passava e o ônibus não chegava e, quando veio, estava lotado. Quem anda de ônibus sabe que ônibus lotado sempre demora mais, para em todos os pontos, demora pras pessoas conseguirem entrar e sair. Quando, finalmente, Matheus conseguiu chegar ao seu destino, a Faculdade de Economia, Administração e Ciências Contábeis da USP, os portões tinham acabado de fechar — e ele viu frustrado seu sonho de tentar uma vaga para o curso de Publicidade e Propaganda na USP [1].

Todo ano, no final de Iom Kipur, a cerimônia de Neilá, eu fico pensando nessas cenas, que a gente vê todo ano de gente que chegou alguns minutos atrasado para uma prova importante e deu com o portão fechado. Neilá quer dizer “trancamento” e como eu disse no final da cerimônia deste ano, há muito debate sobre o que de fato está sendo trancado. Pessoalmente, eu não acredito que os portões da t’shuvá o processo de introspecção, auto-análise e transformação se tranquem de verdade. Eles estão nos esperando o ano inteiro, só esperando darmos o primeiro passo, prontos para que usemos a chave que sempre levamos no bolso, abramos a porta e, pé-ante-pé,  entremos nesse espaço.

Segundo algumas tradições místicas, é só em Hoshaná Rabá, o sétimo dia de Sucot que a gente acabou de terminar, que o processo de inscrição, confirmação e selamento dos nossos nomes no Livro da Vida é encerrado. Como eu disse, eu acredito que as portas da t’shuvá tão abertas o tempo todo, mas Hoshaná Rabá também é um dia no qual pedimos especialmente por água. Segundo a Mishná, o mundo todo é julgado em Sucot com respeito às chuvas [2] e as comemorações das noites de Sucot na época do Templo em Jerusalém faziam uso intenso de água, com muita música e dança — realmente validando a idéia de que Sucot é Zman Simchateinu, o tempo da nossa alegria. De acordo com a Mishná, “uma pessoa que não tenha visto Simchat Beit haShoevá [essas comemorações], nunca viu alegria na vida.” [3] Esse é um dos versos associados a estas comemorações:

וּשְׁאַבְתֶּם מַיִם בְּשָׂשׂוֹן מִמַּעַיְנֵי הַיְשׁוּעָה. 
Vocês devem retirar água com alegria das fontes da redenção [4]

Neste contexto de pedidos por chuva, Hoshaná Rabá, o sétimo dia de Sucot é, então, o último dia para implorarmos por água na medida certa — e, como é normal nas nossas últimas chances, os pedidos são reforçados nesta data.

Vivemos em sociedades urbanas, nas quais, na maioria das vezes, não pensamos em como a água e as chuvas são essenciais para a vida. Além disso, a ideia de rezarmos por chuva nos parece tão contrária à nossa mentalidade científica que aqueles entre nós que se dispõe a participar destes rituais, o faz por concessão ao folclore judaico, sem realmente acreditar que uma reza ou um jejum por chuva possa ter qualquer impacto. 

O rabino Yedidya Sinclair, que trabalha com Hazon, a principal entidade judaica trabalhando em questões ligadas ao meio-ambiente e à sustentabilidade nos Estados Unidos, diz que esta perspectiva teve início após o terremoto de Lisboa de 1755, que os especialistas imaginam ter atingido um valor entre 8,7 e 9 na escala Richter. Voltaire, o filósofo francês da época do Iluminismo, entende que não é possível atribuir qualquer impacto teológico ao evento, que teria acontecido pelas forças da natureza e da Física, não por desígnio de um Deus benevolente que tivesse querido punir algum grupo em Lisboa. O paradigma da dissociação entre os eventos naturais, como os terremotos ou o clima o comportamento humano se estabeleceu, quase que incontestável, desde então até o final do século XX. De acordo com o rabino Sinclair, o furacão Katrina, que causou estragos enormes em Nova Orleans em 2005, é o primeiro desastre natural no qual esta perspectiva foi questionada. De acordo com o consenso científico, a ação humana tem levado a fenômenos climáticos mais extremos: tempestades, furacões, secas e incêndios muito mais devastadores do que eles eram no passado.

Tendências históricas precisam ser analisadas em contextos mais amplos, mas São Paulo viveu nas últimas semanas alguns dos dias mais quentes desde que a temperatura é registrada por aqui [5] e ainda falta mais de dois meses para o início do verão; mais de um quarto do Pantanal já foi queimado este ano [6]; a Califórnia enfrenta incêndios terríveis que colocam em risco milhões de pessoas. Depois de Katrina, vários outros furacões igualmente destrutivos afetaram o Sul e o Meio-Oeste dos Estados Unidos. Este ano [7], a Europa sofreu inundações como não via há 500 anos, a África Oriental e a América do Sul sofreram com nuvens de gafanhotos devastadoras [8]. A ideia de que a ação humana tem, sim, impacto nos fenômenos naturais não parece tão absurda como achavam os filósofos iluministas.

O rabino Sinclair diz que o Tratado de Tannit do Talmud deveria se chamado Tratado Mudança Climática, tal é a relevância dos assuntos lá levantados para a discussão do impacto da ação humana sobre o clima e sobre nossa condição de vida neste planeta. Ele diz “As primeiras dez páginas do volume tratam muito pouco de reza e muito sobre o estado das coisas na sociedade que levam a mudanças nas condições do clima: as chuvas vão parar por causa de roubos, as chuvas vão parar por causa das trapaças das pessoas. Tratar do questão das chuvas leva rapidamente à conclusão de que a forma de resolver este problema não é através das rezas, mas através da regeneração social e espiritual.

Mary Evelyn Tucker e John Grim, que dirigem o Forum de Religião e Ecologia da Universidade de Yale nos Estados Unidos, escreveram: 

Uma crise ambiental dessa complexidade e abrangência não é resultado apenas de certos fatores econômicos, políticos e sociais. É também uma crise moral e espiritual que, para ser tratada, exigirá uma compreensão filosófica e religiosa mais ampla de nós mesmos como criaturas da natureza, inseridos em ciclos de vida e dependentes de ecossistemas. As religiões, portanto, precisam ser reexaminadas à luz da atual crise ambiental. [9]

A verdade é que a tradição judaica está muito bem equipada pra tratar desses assuntos. Eu quero convidar vocês a acompanharem nos seus sidurim a partir da página 16. Eu vou ler a tradução interpretativa do rabino Arthur Waskow para os 3 parágrafos do Sh’má, que eu considero uma excelente apresentação dos temas em termos relevantes para a nossa realidade:

Se você ouvir, realmente escutar o “Eu”, aquele “Eu” que fala por todo o Universo, esse “Eu” que fala do fundo de cada um de nós como o nosso ser mais pleno, mais completo.

Se você ouvir, realmente escutar, o que “Eu” ensino sobre as vínculos que te conectam com a Totalidade de toda a vida - para amar a Respiração da Vida e trabalhar pelo Poder Criativo do mundo com todo o teu coração e a cada respiração —  

então as chuvas cairão como deveriam, 
os rios vão correr, 
os céus vão sorrir 
e a boa terra te alimentará com abundância como os grãos, com alegria como o vinho, com suavidade como o azeite.
Mas se você dividir o mundo em partes e escolher um ou alguns para adorar — como deuses de riqueza e de poder, de ganância, da ambição, do vício em fazer e produzir sem interrupção para ser ou para praticar o Shabat, então a harmonia que você quebrou vai, com seus estilhaços, destruir a tua harmonia —

a chuva não vai cair [ou será ácida], 
os rios não correrão [ou irão transbordar porque você não deixou solo que a chuva possa encharcar], 
e os próprios céus se tornarão teus inimigos [a camada de ozônio deixará de te proteger, o dióxido de carbono que você despejar no ar queimará teu planeta], e você perecerá da boa terra que o Sopro da Vida exala por você.

Então, deixe essas verdades se estabelecerem no teu coração, Respire-as a cada sopro, encha cada ação das tuas mãos com elas e guie os teus olhos para enxergar profundamente ao observar a luz delas.

Ensine-as às crianças que viverão ou morrerão em um planeta que você transformou em ruínas ou que fez florescer. Compartilhe-as uns com os outros em suas casas, ao escolher como comer e como se aquecer; Compartilhe-as em suas estradas quando decidir como viajar e quais combustíveis usar;

Compartilhe-as conforme você cruzar cada limiar de vez em quando, de um lugar para outro.

Então, os teus dias e os dias dos teus filhos serão maduros e completos e muitos,

O que as árvores expirarem, você inspirará; o que você expirar, as árvores vão inspirar;

Como o Sopro da Vida jurou para aqueles que vieram antes de você, assim será também para você e para aqueles que te seguirem, a Terra será tão harmoniosa quanto o céu.

Aquele que é ilimitado disse a Moshé: Fale com Filhos de Israel. Diga-lhes para fazerem tsitsit nas pontas das suas roupas, ao longo de suas gerações. Peça-lhes que coloquem no canto tsitsit um fio azul roial. Este é o seu tsitsit. Olhe para isso e lembre-se de todas as mitsvot de ה׳. E cumpra-as, para que não vá atrás dos desejos do seu coração ou do que chamar a sua atenção, para que se lembre de cumprir todas as minhas mitsvot e ser santo para o seu Deus.

Se escutarmos, realmente escutarmos, o que a nossa tradição está nos dizendo — ela está afirmando que as nossas ações importam e têm impacto e é nossa responsabilidade cuidar pelo impacto das nossas ações. Quem assistiu a conversa ontem sobre Kohelet com os três rabinos da CIP e a rabina Nelly Altenburger [10] viu a relação que a rabina Nelly estabeleceu entre a destruição do Templo em Tishá b’Av e a construção da Sucá nesta época do ano. Com o Templo e sua estabilidade permanente, foram embora nossas certezas, nossa crença em um mundo no qual os sacrifícios seriam suficientes para sustentar nossa relação com o mundo. Uma sucá, com toda a sua fragilidade, é a resposta humana a um mundo que percebemos como vulnerável e em constante transformação. 

Eu ainda me lembro de quando levávamos de volta as garrafas de refrigerante de vidro pro supermercado e quando esta prática teve fim pela introdução das embalagens PET. Contrariando as palavras do Sh’má, nos deixamos sermos seduzidos pelos nossos olhos e principalmente pela conveniência. 

Pela conveniência de não ter que lavar, 
pela conveniência de não ter que guardar, 
pela conveniência de não ter que devolver,
pela conveniência de podermos agir sem considerarmos as implicações dos nossos atos para o futuro do planeta que deixaremos para nossos filhos.

Quem sabe, na sequência deste Hoshaná Rabá de 5781, escutemos nossas próprias súplicas, escutemos nossas próprias rezas, escutemos o que diz o Sh’má, e deixemos de idolatrar a conveniência.

Sucot chegou ao fim, o Livro da Vida, pelo que dizem por aí, está fechado. Mas os portões da tshuvá estão escancarados nos esperando. O mundo está gritando que espera nosso retorno e é só por teimosia que ainda não lhe demos ouvido.

Shabat Shalom e Chag Sameach

[1] https://g1.globo.com/educacao/noticia/fuvest-2018-candidato-chega-atrasado-perde-prova-e-culpa-problema-no-transporte-publico.ghtml
[2] Mishná Rosh haShaná 1:2
[3] Mishná Sucá 5:1
[4]  Isaías 12:3
[5]  https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/10/02/sao-paulo-tem-novo-recorde-de-calor-em-2020-e-segunda-marca-mais-quente-da-historia-da-cidade.ghtml
https://agora.folha.uol.com.br/sao-paulo/2020/10/estado-de-sao-paulo-registra-maior-temperatura-da-historia.shtml
[6]  https://gazetaweb.globo.com/portal/noticia/2020/10/area-devastada-no-pantanal-e-maior-que-o-estado-de-alagoas-diz-inpe_116733.php
[7]  https://edition.cnn.com/2020/08/28/weather/rapid-fire-disasters-in-coronavirus-pandemic-weir-wxc/index.html
[8] https://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2020/08/21/argentina-monitora-10-nuvens-de-gafanhotos-risco-de-entrada-no-brasil-e-baixo.ghtml
[9] https://fore.yale.edu/Publications/Books/Religions-World-and-Ecology-Book-Series/Challenge-Environmental-Crisis
[10] https://youtu.be/wIY-BWFRMWk



sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Uma sinfonia para o ano novo!

Em uma conversa recente com o intelectual carioca Paulo Geiger que virou o terceiro episódio do podcast 5.8 [1], ele citou a frase “chadesh iameinu kekedem”, “renove os nossos dias como os outrora” [2] como evidência da constante e paradoxal busca judaica de transformação por meio  da tradição. Para ele (e eu concordo), o judaísmo conseguiu manter a si mesmo e seus valores relevantes ao longo dos séculos por ter tido a flexibilidade de se transformar continuamente.

Neste shabat temos uma leitura da Torá especial, por ser o primeiro dia de Sucot. Nela, Deus define alguns dos parâmetros básicos do calendário judaico: o shabat, Pessach, Shavuot, Rosh haShaná, Iom Kipur e Sucot [3]. Lendo esse texto em 5781, talvez não reconhecêssemos, pelas suas descrições, algumas das datas mencionadas: não se fala em entrega da Torá em Shavuot, da peregrinação pelo deserto em Sucot ou do começo do ano em Rosh haShaná. Todas essas, são interpretações rabínicas sobre o texto da Torá, evidência do processo que Paulo Geiger descreveu, de como mantivemos a relevância da tradição adaptando-a e atribuindo novos significados.

Como uma sinfonia bem composta, as festas judaicas dialogam entre si buscando harmonia e equilíbrio e suas mensagens têm se mantido incrivelmente atuais. O foco universal na liberdade do Pessach, por exemplo, é balanceado pela perspectiva particularmente judaica do pacto de Deus com nosso povo, simbolizado pela entrega da Torá que celebramos em Shavuot.

Nesta época do ano em que estamos, o foco na reflexão, na introspecção e na espiritualidade de Rosh haShaná e Iom Kipur levam a nosso crescimento pessoal mas poderiam nos cegar para a realidade do que acontece ao nosso redor, especialmente para os mais vulneráveis. Há um risco de, ao repetirmos o Unetanê Tokef e nos darmos conta da nossa própria fragilidade, desenvolvermos condutas que buscassem apenas à nossa própria salvação. Sucot dá resposta a esse risco e nos expõe às nossas fragilidades coletivas e do planeta, com foco em quem vive permanentemente em cabanas ou nas ruas.

Também as novas datas que os Rabinos incorporaram ao calendário judaico como parte de seu projeto de inovação por meio da tradição mantiveram sua relevância ao longo do tempo. Em Purim, entre outros assuntos, falamos de riscos da vida judaica na diáspora que tem sido especialmente verdadeiros nos últimos anos em várias partes do mundo: o risco de nos vermos sem poder algum e vulneráveis às autoridades do momento ou, de forma paradoxal e paralela, de sermos seduzidos pelo poder e abrirmos mão dos nossos valores. Em Chanucá, a festa em que buscamos trazer luz a um mundo cada vez mais tomado pela escuridão, questões parecidas se apresentam, dessa vez na terra de Israel: a possibilidade de respeitarmos as diferenças (e sermos respeitados) ao mesmo tempo em que dialogamos com outras culturas. A leitura rabínica de Tishá b’Av nos leva a considerar qual nosso papel para dar fim a uma cultura do ódio, no qual sermos indiferentes é sinônimo de conivência.

Dando ritmo a essa sinfonia, o Shabat marca, a cada semana, a possibilidade de apenas sermos. Com um longo respiro, buscamos nos centrar novamente, recarregando as baterias do corpo e as energias da alma. E cada maestro, cada solista, dão seus toques especiais à música, adequando-a aos tempos e à pluralidade da vida judaica.

Nesse ritmo, o calendário judaico tem o potencial de dar textura e significado ao nosso tempo -- mas depende de cada um de nós permitirmos que essa sinfonia faça parte da trilha sonora das nossas vidas. Quem sabe, 5781 é o ano em que você vai tentar fazer isso?

Shabat Shalom e Chag Sameach!


[1] https://5ponto8.fireside.fm/3
[2] Lamentações 5:21
[3] Lev. 23