quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Conta-me com quem casas?!?!

Daniel Boyarin, professor de Cultura Tamúdica na Universidade de Berkeley, fala bastante da intertextualidade dentro do Tanach, termo através do qual aponta para três características do texto bíblico: (1) há citações frequentes, explícitas ou não, de passagens escritas em períodos anteriores, (2) existe a possibilidade de enxergarmos o texto em si como uma situação em que acontece o diálogo entre passagens distintas, e (3) códigos culturais (conscientes ou não) podem encorajar ou reprimir a produção de novos textos. [1]

Em palavras mais simples, passagens do Tanach podem ser vistas em diálogo com outras passagens e devemos ter isso em consideração quando as consideramos. Nas parashiot das últimas semanas, vimos uma ênfase na rejeição de casamentos entre homens hebreus e mulheres canaanitas. Foi assim que Avraham pediu a seu servo que fosse buscar uma esposa para Itschác na terra de seus antepassados e que Rivcá e Itschác pediram a Iaacóv que fosse à casa de seu tio buscar uma esposa. 

Na parashá desta semana, por outro lado, temos o primeiro caso de um hebreu se casando com uma mulher de família local: Iehudá se casa com a filha de Shuá, sem que o nome dela seja mencionado na Torá. Por um caminho tortuoso (que vale muito a leitura, mas que não acrescentaria nada aqui), Iehudá acaba também tendo filhos gêmeos com Tamar: Peretz e Zarach. Além de ter dado nome ao povo judeu, Iehudá, através de Peretz, se tornou ancestral do Rei David, o rei paradigmático das histórias do Tanach.

Seguindo as orientações do professor Boyarin, podemos ler estas passagens em diálogo umas com as outras -- algumas argumentando fortemente que o casamento com não judeus levaria à extinção do judaísmo e outros dizendo que, pelo contrário, é até bom incorporar pessoas e ideias novas à nossa tradição. Há algumas décadas, em muitas famílias quando um filho ou uma filha tinham um relacionamento amoroso fora da comunidade judaica, era motivo de grande consternação (como foi para Rivcá a mera possibilidade de que Iaacóv se casasse com uma mulher de Cnaán [2]), com medo de que aquele ramo familiar se afastasse permanentemente da tradição e da cultura judaicas. Hoje, no entanto, a realidade é, em muitos casos, bastante diferente. Encontro muitas famílias nas quais a parte não judia é até mais interessada na educação judaica dos filhos do que os parceiros judeus; em outros casos, mesmo que o pai e a mãe sejam os dois judeus, não expressam nenhuma intenção de ir além do mero superficial na vivência judaica da família. A vitalidade da vida judaica das famílias não é necessariamente determinada pela porcentagem judaica de cada casal - mas pela relevância que cada um encontra no judaísmo que conhece.

Será que conseguiríamos conceber uma conversa imaginária entre Rivcá e seu neto, Iehudá sobre estes temas? Ela falaria de suas angústias e medos, ele falaria da necessidade de ter liberdade para encontrar quem realmente ama. Ambos teriam razão, ambos falariam das suas verdades e, quem sabe, depois de chorarem um pouco, conseguiriam vislumbrar um futuro de criatividade judaica, em diálogo com a realidade onde viviam, no qual famílias se constituem por vários motivos e escolhem rumos que não são predestinados. Esta conversa pode nos ajudar também a pensar como nos relacionamos com as sociedade primordialmente não-judaicas nas quais vivemos.

Neste domingo acenderemos a primeira vela de Chanucá, uma festa que, desde a sua narrativa de origem, está associada ao diálogo com outras culturas (ou à falta dele): que costumes incorporamos, que roupagem judaica lhes damos, que histórias contamos a seu respeito. Que na sociedade multicultural em que vivemos, consigamos encontrar caminhos para nos relacionarmos com gente de todas as culturas e construir cada vez mais pontes, ao mesmo tempo em que nos preparamos para um futuro judaico intenso, vibrante, criativo e relevante.

Shabat Shalom!


[1] https://doi.org/10.2307/1455327 

[2] Gen. 27:46



sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Dvar Torá: Desnaturalizando a violência (CIP)


Ontem no almoço, eu estava conversando com meu filho de 10 anos sobre a escola quando eu decidi dar um passo arriscado e perguntar se ele tinha alguma ideia de que profissão ele gostaria de ter. “Como assim, pai?” Ele me perguntou. “Há alguns anos, você queria ser jogador profissional de futebol”, eu respondi. “Esse ainda é o teu sonho? Quem sabe, você queira ser engenheiro, arquiteto, talvez até rabino.” “Rabino, não, né pai?!” ele disparou de cara e continuou “mas você não vai gostar se eu te contar o que eu quero ser quando eu crescer.” Nem precisava… eu já tinha entendido que meu filho quer ser gamer, um jogador profissional de video-games, uma das inúmeras profissões que não só não faziam parte dos meus sonhos, mas nem existiam quando eu tinha a idade dele.

Outra dessas profissões é youtuber, aquela pessoa que ganha dinheiro fazendo vídeos pro YouTube sobre os mais variados assuntos. Pois foi assistindo uma youtuber bem famosa, a JoutJout  do canal JoutJout Prazer, que eu aprendi um pouco mais sobre um livro no qual estava interessado [1]. Casa das Estrelas [2] foi compilado pelo educador colombiano Javier Naranjo a partir de definições que crianças davam para as palavras — definições que, algumas vezes eram fofas ou engraçadas, mas que muitas vezes nos faziam pensar sobre o real significado de palavras e de situações para as quais tínhamos parado de dar atenção. Andrés, um menino de 8 anos, por exemplo, definiu “adulto” como “uma pessoa que, em tudo daquilo que fale, primeiro vem ela.” 

Quando a JoutJout estava fazendo sua resenha do livro, contou que primeiro ficou pensando em como podia ser que uma criança tão nova tivesse escrito aquilo. Em seguida, ela teria pensado “por que uma pessoa de 4 anos não pode pensar em uma coisa interessante? Porque a gente pensa que as pessoas interessantes, que pensam coisas interessantes são adultos já.” Ela contou de uma conversa na qual sua interlocutora dizia que há um ponto de vista que trata “crianças como mini-pessoas, tipo pessoas que ainda não são pessoas, pessoas ainda em formação mas que ainda não chegaram lá no status de pessoas. Uma pessoinha, uma pessoa que ainda não se formou completamente. Mas uma pessoa de 4 anos já é uma pessoa… de 4 anos. E ela tem opiniões… maravilhosas.”

Esta tem sido a perspectiva de Ktanim, o programa de educação judaica desenvolvido pela área de educação infantil da Escola Lafer. Hoje celebramos com seis famílias por alunos que completam neste final de ano um ciclo e se preparam para novos passos no seu contato com o judaísmo. Em Ktanim, as crianças sempre são vistas como pessoas integrais, cujas opiniões e pontos de vista precisam ser escutados e respeitados e com quem aprendemos continuamente. Nossa abordagem é profundamente influenciada pela pedagogia de Janusz Korczak, o pediatra e pedagogo judeu que determinou alguns dos pilares da educação democrática, como a ideia de que crianças não são adultos em miniatura, mas seres-humanos integrais, que assim devem ser reconhecidos e tratados.

Mas a verdade é que muitas vezes conseguimos manter acesa a chama da inocência, da curiosidade e da descoberta que muitas vezes caracterizam a conduta das crianças e abandonamos para sermos reconhecidos como adultos responsáveis, que não fazem perguntas inapropriadas e sabem se comportar como a situação exige. Em Pirkei Avot, um dos primeiros documentos escritos do Judaísmo Rabínico, do começo do 3º século da Era Comum, por exemplo, os rabinos se permitiram fazer um exercício parecido com o do professor Naranjo e redefiniram 4 termos que todo mundo sabe o que quer dizer. Será?!

Para os Rabinos de 1800 anos atrás, “rico” não é quem tem muito, mas quem está feliz com o que tem; “sábio” não é quem tem muito a ensinar, mas quem consegue aprender com todo mundo; “respeitado” não é quem quem recebe honrarias, mas quem respeita a todos; e “herói” não é quem consegue conquistar os outros, mas quem conquista a si mesmo.

Quero parar um pouco na definição de “herói” e pensar com vocês como isso dialoga com os modelos de heróis com os quais vivemos hoje em dia. Por algum tempo, eu não deixei que meu filho, aquele que quer ser gamer quando crescer, assistisse filmes de super-heróis. Apesar de muitas vezes defenderem valores positivos, parece que o recurso a que os super-heróis mais recorrem é a própria violência que eles alegam combater. Eu queria que meu filho entendesse que esse não era o caminho no qual acreditamos, que a violência, quase nunca, leva a uma solução sustentável de qualquer problema. Eu deixei de achar que, sozinho, pudesse ter todo este papel na educação dos meus filhos quando fui buscá-lo na escola e o encontrei brincando de espada usando um balão. Entendi que, em uma cultura na qual a violência é glamourizada e cultuada, o impacto que um pai sozinho poderia ter é bastante limitado.

O que não falta na parashá desta semana é violência. A história começa com Iaacov voltando à terra de seus pais, de onde tinha saído 20 anos antes, morrendo de medo de com qual violência seu irmão, Essav, o receberia. Mas o primeiro embate verdadeiro é entre Iaacóv e o “ish”, a figura que não sabemos bem se é homem ou anjo, com que ele trava um duelo por toda a noite, até o raiar do Sol e da qual sai com a perna machucada. É por essa história que Iaacov e nosso povo receberam o nome de Israel, “aquele que duela com Deus.” Na sequência da parashá, temos a violência sexual contra Diná, a filha de Iaacov e Leá, e a resposta igualmente violenta de Shim’on e Levi, seus irmãos, que mataram todos os homens da cidade.

Lemos estas histórias todos os anos, as contamos sem nos darmos conta da violência que elas contêm e da forma como, ao naturalizá-la, acabamos naturalizando comportamentos violentos em nossas próprias vidas.

Ao comemorarmos cerimônias de bar-mitsvá aqui na sinagoga, não é incomum que os jovens tenham como o principal objetivo de sua presença a oportunidade de arremessar balas com a maior violência possível contra o jovem que comemora sua chegada à maioridade, muitas vezes sob encorajamento dos pais. Antes da pandemia, fui a uma festa com alguns amigos de infância, todos como eu na faixa dos 50 anos, na qual a violência física entre eles era uma forma de expressar camaradagem entre velhos amigos. Chegamos ao caso em que até o carinho expressamos com violência.

Além da violência física, vivenciamos cotidianamente episódios de violência verbal, moral, emocional, seja como perpetrador, como vítima ou como testemunha. Relações de trabalho que se convertem em tóxicas, relações na escola que geram bullying, exclusão, a perpetuação modos tóxicos de relacionamento. Como saímos deste ciclo?

Em Casa das Estrelas, o livro de Javier Naranjo, uma criança de 11 anos define a palavra “criança” como “danificado pela violência” mas outra, de 10 anos, define “amor” como aquilo que “cada coração reúne para dar a alguém.”

Quem sabe, precisemos escutar mais as nossas crianças, entender melhor como nossos atos cotidianos, os filmes que assistimos, as músicas que ouvimos e até as histórias da Torá que contamos sem crítica, ajudam a manter em vigor uma lógica que nos machuca e que machuca a quem mais amamos e que juramos proteger. Que aprendamos com elas como reunir e dar amor em todos os momentos das nossas vidas.
Que este seja um shabat cheio de carinho, de escuta, de atenção e de amor!

Shabat Shalom!


[2] Javier Naranjo, "Casa das estrelas: O universo pelo olhar das crianças", editora Planeta, 2019.


quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Percebendo as bençãos ao nosso redor

Quando eu ainda era aluno de rabinato, fiz um estágio como capelão hospitalar. O programa era bastante intensivo e passávamos os dias visitando pacientes e discutindo com nossos colegas e supervisores como cada visita tinha sido. A cada duas semanas, um de nós ficava de plantão e passava a noite no hospital, dando apoio espiritual a qualquer emergência que pudesse ocorrer. 

Em um dos meus plantões, fui acordado no meio da noite. Um sujeito esperava há algum tempo por um transplante de pulmão e, finalmente, tinham encontrado um doador! Cercado de amigos e parentes, ele me pedia uma benção antes da operação. Antes de lhe dar a benção, eu lhe pedi que reconhecesse as bençãos que literalmente flutuavam ao seu redor… ele tinha recebido uma segunda chance na vida e, cercado das pessoas que mais o amavam no mundo, se preparava para este recomeço. “Lindo, rabino”, ele me respondeu, “agora, por favor, você pode dar a minha benção?!”

Nossa relação com as bençãos varia muito — para alguns de nós, o que realmente vale é o que acontece no mundo físico, no qual as bençãos talvez não impactem muito. Para outros, no entanto, as bençãos representam pontes entre o espiritual e o material e, ainda que seus efeitos não sejam imediatos, abrem nossos olhos e corações para as bençãos reais que nos cercam.

Na parashá desta semana Iaacov e Rivcá tramam para enganar Itschác, para que ele dê a Iaacov a benção da primogenitura que planejava dar a Essáv. O rabino Gunther Plaut pergunta a respeito desta história: “mas como uma benção dada à pessoa errada pode ter qualquer efeito?” E ele adicionou à pergunta: “para começar, uma benção não é um contrato legal mas uma reza. Ainda assim, quando emitida por um pai, acredita-se que ela tenha um poder especial pois Deus está envolvido quando um pai dá sua benção a seu filho. Uma benção não é como uma mercadoria que pode ser tomada de volta quando se percebe que ela é falha. Uma vez dada, está nas mãos de Deus.” [1]

Ao final da enganação de Iaacov e Rivcá, Essáv procura seu pai, esperando receber a benção prometida, trazendo o cozido que Itschác havia pedido. Quando ele escuta que a benção já havia sido dada a Iaacóv, sua decepção é evidente. “Você não guardou uma benção para mim?!”, ele pergunta ao pai. “Abençoe-me também, pai”, ele pede aos prantos. Há momentos nos quais nos sentimos como Essáv, como se todas as bençãos tivessem sido dadas e nenhuma sobrado para nós… E ainda assim, durante toda a nossa vida, recebemos bençãos sem nos darmos conta. Infelizmente, muitas vezes prestamos mais atenção aos tropeços que damos na vida do que às coisas maravilhosas que nos acontecem diariamente. 

As bençãos da tradição judaica, assim como aquelas que formulamos em momentos especiais, se não têm a capacidade de transformar a realidade objetiva, pelo menos conseguem transformar como enxergamos a vida e perceber as maravilhas das quais desfrutamos. Ao abrirem os nossos olhos, acabam de fato impactando a realidade de forma direta.

Que este seja um shabat especialmente abençoado, cheio de paz, de encontros e de olhos abertos para as bençãos que nos rodeiam.

Shabat shalom,


[1] W. Gunther Plaut, “What did Isaac Know?”, Learn Torah With…. 5755: a Collection of the Year’s Best Torah, Alef Design Group, 1996, p. 43.