sexta-feira, 18 de março de 2022

Dvar Torá: Sacrifícios e sacerdotes continuam relevantes? (CIP)


Na semana passada, trazendo meu filho da escola para casa, eu comecei a puxar conversa no carro sobre a prova que ele teria no dia seguinte. “Qual a matéria da prova?”, eu perguntei. “Pois é…” começou a resposta. “A prova é de português e tem uma parte da matéria que eu não entendi ainda”, e ele continuou: “Eu não consegui entender qual a diferença entre fonemas e dígrafos.”

Confesso que eu não me lembro de ter estudado fonemas e dígrafos quando tinha a idade dele mas, de qualquer forma, eu tampouco sabia o que estes conceitos eram. Nada como uma busca no Google para elucidá-los e poder explicar para a pobre criança desesperada.

Mas logo na sequência veio a pergunta que todo pai de filhos em idade escolar escuta, no mínimo, um milhão de vezes: “pai, pra que eu preciso aprender isso?!?! Que diferença isso vai fazer na minha vida?!?!”
Implícito nesta pergunta está a crença de que os conceitos que aprendemos na escola precisam ter utilidade neles mesmos, alguma aplicação prática que justifique gastarmos horas de aula, noites de sono e litros de café tentando entendê-los.

Um dia, eu também pensei assim, talvez fosse até um ativista por uma reforma curricular ampla que eliminasse os conceitos inúteis e focasse mais naquilo que realmente precisávamos saber. Na época, eu era representante dos alunos no Conselho do Departamento de Ciência da Computação da USP e protestava pela substituição de várias disciplinas teóricas por outras mais práticas e aplicáveis ao mercado de trabalho. Quem me mostrou como eu estava errado foi o professor Valdemar Setzer, que argumentava que a função da universidade era abrir nossas mentes, nos ajudar a pensar de distintas maneiras, conceber abordagens inusitadas para problemas que nem tinham sido formulados ainda. Esta era a verdadeira função das disciplinas teóricas que precisávamos cursar: desenvolver nosso raciocínio para que pudéssemos resolver novos problemas quando chegasse a hora. Para nos ensinar uma nova linguagem de programação, nossos futuros empregadores seriam bem melhores do que a universidade.

A parashá desta semana é uma daquelas sobre as quais meu filho perguntaria: “pai, por que precisamos aprender isso?!” A maior parte da parashá trata da oferta de sacrifícios animais, uma prática que o judaísmo rabínico abandonou há quase dois mil anos, especialmente pela classe dos kohanim, os sacerdotes no Templo, uma espécie de casta hereditária judaica que o mundo judaico liberal também, em grande parte, rejeitou.

E, mesmo assim, como eu aprendi com o professor Valdemar Setzer, é nessas passagens sem aplicação prática direta que, muitas vezes, encontramos os significados mais relevantes para nossa situação.

A ideia de sacrifício se, por um lado parece anacrônica, de outro, nunca foi tão relevante. Vivemos na época das liberdades, tema sobre o qual vamos conversar, por sinal, com o Dan Stuhlbach e o Eduardo Gianneti. Em particular, vivemos na época das liberdades individuais. Outro dia, o debate era se tínhamos liberdade para expressar ideais antissemitas ou preconceituosos contra outro grupos. Há o debate sobre o direito de portar armas em qualquer espaço. Há o debate sobre a liberdade de quem adota comportamentos arriscados, mesmo que isso coloque outros em risco ou que imponha ao coletivo arcar com as consequências destes comportamentos. Em tempos de direitos individuais, quais seriam os direitos do coletivo? Quem sacrifícios — este conceito tão presente no livro de Vaicrá e tão estranho aos nossos ouvidos contemporâneos — que sacrifícios estaríamos dispostos a fazer para o bem comum? De que forma, precisamos equilibrar  o conceito de liberdade com a noção de responsabilidade?!

Na Torá, oferecer um sacrifício não era algo fácil. Eram escolhidos os melhores animais, produtos agrícolas e alimentos. Em uma época em que a escassez era a norma, levar estes melhores produtos para que fossem oferecidos em sacrifício, implicava abrir mão de produtos valiosos, que fariam falta — mas a recompensa comunitária justificava estes atos. E, hoje, de que parte cara das nossas liberdades estaríamos dispostos a sacrificar por um benefício maior do coletivo?

Um outro aspecto que dá relevância aos sacrifícios dos cohanim, dos sacerdotes, é a própria ideia do sacerdócio. Em tempos bíblicos, eles eram — juntos com os levitas — os exemplos paradigmáticos de pessoas que dedicavam a vida a servir a comunidade e parte das ofertas em sacrifício eram destinadas ao usufruto deles. A discussão sobre o comportamento ético de nossos líderes em cargo de liderança também se aplica a realidade contemporânea. De acordo com Avraham Burg:
Qualquer um que não fizesse parte do establishment do Templo em Jerusalém compreendia que os sacrifícios equivaliam a um imposto com comissões para os que faziam parte do esquema, os sacerdotes e os burocratas do santuário, que freqüentemente tinham muito pouco a ver com santidade. A crítica profética e a crítica posterior dos sábios, surgiram contra a tendência de fazer do sacrifício um fim em si mesmo, a uma tecnologia de fé que vem no lugar de um genuíno sentimento religioso de obrigação espiritual e ética. [1]
Vivemos tempos turbulentos com relação às lideranças da nossa sociedade. A busca do poder pelo poder, por motivos escusos e  para o engrandecimento do próprio nome caracteriza muito mais líderes do que conseguimos contar. Há uma guerra — talvez mais de uma, na verdade — em curso no qual o único objetivo parece ser estabelecer o nome do líder agressor no panteão de grandes líderes do seu país. Uma lista que inclui outros opressores cujos nomes ficaram marcados para sempre na infame lista dos piores ditadores da história. 

Por aqui, no Brasil de 2022, a discussão das necessidades públicas parece ser sempre suplantada pelos interesses políticos imediatistas e pela pergunta “o que eu ganho com isso?!” Desapontados, muitas vezes abandonamos nossos próprios ideais e partimos também para uma defesa dos nossos próprios interesses, sem generosidade pela necessidade dos outros e sem a disposição de fazer sacrifícios.

Os rabinos Dov Ber ben Avraham de Mezeritch e Menachem Nachum Twersky, dois dos primeiros mestres do movimento chassídico, escreveram a respeito do verso inicial da parashá, que diz: “Adonai falou a Moshé, dizendo: ordene isto a Aharón e a seus filhos, esta é a Torá da Elevação.” Em seus comentários, eles trouxeram passagens rabínicas que comparam o estudo da Torá à oferta de todos os sacrifícios [2]. Que neste shabat possamos nos encontrar verdadeiramente com nossos textos e buscar neles relevância para os dilemas que enfrentamos hoje e agora.

Shabat Shalom!


[1] Avraham Burg, “Very Near to You”, p. 221.
[2] B Menachot 110a


quinta-feira, 10 de março de 2022

O pequeno alef e os sacrifícios a que somos chamados

“Chamou a Moshé e Adonai lhe falou da Tenda do Encontro, dizendo…”. Com este verso começa a parashá desta semana e o livro de Vaicrá, Levítico, o terceiro dos cinco livros da Torá. Quem chamou a Moshé não fica claro e tem sido o objeto de grande debate e especulação entre os comentaristas ao longo dos séculos.

Como componente adicional do mistério, a última letra da primeira palavra deste verso é um alef, que neste caso é escrito em um tamanho menor que as demais letras da página. Quem poderia ter chamado a Moshé para que Deus o instruísse nas regras dos sacrifícios, tema de grande parte deste terceiro livro?

Há comentaristas para quem o alef em tamanho pequeno é sinal de que é o “eu” (“aní”, em hebraico) de Moshé quem o chama e interpretam que cada um deve escutar a sua voz mais profunda, a sua consciência mais verdadeira, para definir quais são nossos interesses que nos levariam a um envolvimento verdadeiro e que sacrifícios estamos dispostos a fazer, de que estamos dispostos a abrir mão.

Uma outra interpretação para o pequeno alef vai na direção contrária e o associa à Shechiná, ao aspecto do Divino que está mais próximo do mundo em que vivemos e presente em todas as coisas e em todas as pessoas. Nesta leitura, escutar o chamado do pequeno alef é prestar atenção ao mundo que nos rodeia para decidir os sacrifícios que precisamos fazer. Se na primeira interpretação, perguntávamos ao nosso eu mais profundo em que deveríamos nos envolver, desta vez, paramos para escutar o que o mundo grita que suas necessidades mais prementes são. Olhamos ao redor, enxergamos o Divino na face das pessoas que nos são próximas e também nas de quem nos é mais distante. Quais são as causas e projetos cuja urgência clama pelo nosso envolvimento, mesmo que não seja o assunto que mais nos interessa?

Em qualquer destas duas abordagens, a questão do sacrifício pessoal tem valor central. Vivemos em um tempo de fartura material como, provavelmente, a humanidade jamais tenha visto. Temos, em geral, muito mais “coisas” do que conseguiríamos aproveitar nas nossas vidas, geramos uma quantidade imensa de lixo a cada dia, e, mesmo assim, temos enorme dificuldade em desapegar, em abrir mão de coisas que nos são caras. Quando fazemos uma doação, é é dinheiro que não nos faltará ou um sapato que já não usamos mais; quando damos algo nosso de presente, é, via de regra, algo do qual enjoamos. 

Várias situações anedóticas, no entanto, relatam que pessoas que têm muito menos apresentam maior propensão a dividir o pouco que têm, mesmo que depois lhes falte, mesmo que o feijão fique aguado como consequência do convidado adicional à mesa. O Livro de Vaicrá aponta para este comportamento como desejável: Deus nos instrui a abrir mão das melhores frutas, dos melhores animais, de doarmos aquilo do qual, na verdade, sentiremos falta. E, então, o pequeno alef ao final da primeira palavra do livro nos convida a perguntarmos de que nossa verdade mais íntima nos instrui a abrirmos mão? Em quais causas acreditamos mais profundamente e com a qual queremos contribuir, que realidades gostaríamos de transformar, em que projetos sentimos que precisamos estar envolvidos, mesmo que tenhamos que abrir mão de outros interesses?

Um midrash famoso fala que Avraham chegou à percepção da existência de um Deus único ao perceber que, assim como um farol não se consumia pelo fogo porque havia um faroleiro que cuidava dele, que se o mundo não era consumido pelo caos, o Divino precisava existir para garantir a continuidade do mundo. Vários teólogos dizem que vivemos em uma época de Hester Panim, na qual Deus esconde Sua face. É nossa vez de escutarmos nossa voz interna e de enxergarmos a realidade externa e de fazermos os sacrifícios que conseguirmos para garantir que o caos não engula completamente o nosso mundo. 

Qual é a causa que verdadeiramente te interessa? Qual a necessidade sobre a qual você enxerga o mundo gritando e pedindo ajuda? O que você está disposto a sacrificar para garantir que vivamos todos em uma realidade mais justa, mais equilibrada, mais inclusiva e mais acolhedora?

Shabat Shalom!


quinta-feira, 3 de março de 2022

O que vem depois da saída de Mitsrayim?

Duas conversas que eu tive esta semana apontaram em direções opostas. Em uma delas, a pessoa me disse: “o que é, é; o que não é, não é”, com uma convicção evidente de quem acredita na clara distinção entre as categorias das quais falava. Na outra conversa, a pessoa mencionou a Caixa de Schrödinger, o experimento teórico da Física Quântica na qual um gato é mantido em uma caixa de metal fechada, com um dispositivo atômico e um vidro de veneno. Passada uma hora, sem sabermos se o dispositivo atômico havia sido ativado, o experimento considera que o gato está paradoxal e simultaneamente vivo e morto. A menção a este conceito abstrato foi para exemplificar que, às vezes, as categorias se misturam e as coisas estão em várias delas ao mesmo tempo.

Fiquei pensando nisso ao ler a passagem da Torá deste shabat. Nela, alguns conceitos centrais do comprometimento judaico com a Justiça Social, que já tinham sido mencionados em outras partes da Torá, são relembrados. Um trecho se destaca: “Não haverá necessitados em teu meio – pois Adonai te abençoará na terra que Adonai, teu Deus, te dá como posse hereditária na condição de que você escute a voz de Adonai, teu Deus, mantendo e cumprindo toda esta mitsvá que Eu te ordeno hoje. (...) Se, no entanto, houver uma pessoa necessitada em teu meio, um de teus parentes em qualquer um dos teus assentamentos na terra que Adonai, teu Deus, te dá, não endureça teu coração nem feche a tua mão para o teu necessitado.” [1]

Assim, Deus deixa claro que a garantia do bem estar do povo de Israel depende de que nós mesmos sigamos os valores judaicos de ajuda ao próximo. A tradição judaica já nos dá as ferramentas para garantir uma situação de bem estar social, sem a necessidade de milagres ou de intervenção Divina direta. De alguma forma, o sistema que estabelece estes valores e regras já é a intervenção Divina. E, considerando a forma integrada como a comunidade judaica vive em muitas partes (incluindo o Brasil), nosso comprometimento não deve ser apenas com outros judeus, mas com todos aqueles com quem compartilhamos esta terra, em suas maravilhas e em seus desafios.

Mas por que esta é a passagem escolhida pela tradição para ser lida em Pessach? Haverá, certamente, quem argumente que é pela menção ao sacrifício de Pessach, à contagem do Omer e à comemoração das três Festas de Peregrinação (Pessach, Shavuot e Sucot) no final da passagem [2] e eles estão, provavelmente, certos. Eu gostaria de propor um motivo adicional para que esta seja a leitura neste momento do ano. A saída de Mistrayim e a conquista da liberdade pelos hebreus são a narrativa fundacional mais importante da tradição judaica, cara em particular aos conceitos relacionados ao nosso compromisso com a Justiça Social. Em inúmeras passagens da Torá, a proteção aos vulneráveis é explicitamente vinculada ao conceito de que “vocês foram estrangeiros na terra de Mitrayim.” No seder de Pessach revivemos a dor da opressão e a alegria da redenção – por isso, renovamos nosso compromisso com a criação de um mundo no qual possamos viver todos em liberdade e com dignidade. O texto da Torá desta semana reafirma que este compromisso não pode existir apenas de forma abstrata - ele  tem implicações concretas sobre nossa conduta, determinando ações que devemos ter e outras nas quais não podemos nos engajar.

Da mesma forma que o Shabat nos permite viver um “gostinho do mundo vindouro” e renova nosso compromisso com construir esta realidade já a partir da Havdalá, Pessach deve renovar nosso comprometimento com um mundo mais justo, onde Liberdade não seja privilégio de alguns, mas possa ser a realidade de todos. Esse é o lembrete que a leitura da Torá deste 8º dia de Pessach nos deixa.

Shabat Shalom,


[1] Deut. 15:4-5,7. 

[2] Deut. 16:1-17.

[3] Veja, por exemplo, Ex. 22:20, Lev. 19:34, Deut. 10:19.