sábado, 16 de fevereiro de 2019

Dvar Torá: Parashat Tetsavê (CIP)

Shabat Shalom,
Talvez seja por causa deste shabat de boas vindas, talvez seja pelo fato de que ontem, 14 de fevereiro, foi aniversário da minha mãe ou que ontem também marcou o primeiro aniversário do massacre em uma escola em Parkland, na Flórida. Mas o fato é que, nestes últimos dias, tenho pensado bastante sobre datas e como as datas que vamos adicionando ao nosso calendário contam parte da nossa história, troféus e cicatrizes que acumulamos ao longo dos anos. A data em que nos formamos na faculdade. Quando descobrimos uma doença séria ou quando recebemos do médico a notícia de que estávamos curados. A data do casamento ou a do divórcio. As datas em que nasceram nossos filhos ou aquelas em que perdemos entes queridos. Estas datas vão se acumulando e vão contando, pouco a pouco, as histórias das nossas vidas.
No mundo judaico, também temos adicionado datas ao calendário, datas que contam muito da experiência judaica no século 20: Iom haShoá, Iom haAtzmaut, Iom haZicaron, Iom Ierushalayim. A desgraça da Shoá e os sucessos de Israel deram a tônica das datas que juntamos ao calendário nas primeiras décadas da existência do Estado de Israel. Nas últimas décadas, no entanto, o foco tem mudado um pouco: depois do assassinato de Yitzhak Rabin, o 12 de Cheshvan passou a ser a data em que conversamos sobre a necessidade de prevenir que nossas discordâncias políticas se tornem violentas e comprometam o sistema democrático.
A data em memória a Itzhak Rabin se junta a outras duas datas que tratam de questões semelhantes, ligadas à perda da nossa capacidade de lidar com divergências, um problema que parece estar se tornando cada vez mais crônico. Tishá beAv, o 9º dia do mês judaico de Av, marca a destruição dos dois Templos em Jerusalém e outras tragédias que se abateram sobre o povo judeu ao longo da história. O Talmud, ao falar da destruição do segundo Templo, atribui sua destruição a שנאת חינם, o ódio gratuito que reinava na comunidade judaica da época.
E há outra data que trata do rompimento do diálogo, uma da qual muito pouca gente ouviu falar. Ontem, além de ter sido 14 de fevereiro e aniversário da minha mãe, também foi 9 de Adar. Segundo o Shulchan Aruch, obra central para a lei judaica, o 9 de Adar deveria ser uma data de jejum pelas desavenças entre as escolas de Hillel e de Shamai.
“Desavenças entre Hillel e Shamai?!” Nós, rabinos, sempre falamos das discussões entre as escolas de Hillel e de Shamai como exemplos de מחלוקות לשם שמיים, discussões produtivas e respeitosas; como pode haver um dia de jejum pelas desavenças entre eles?
Num dia 9 de Adar, a turma de Shamai se viu em maioria na academia rabínica – um evento raríssimo! – e aproveitou a oportunidade para aprovar todas as decisões que pudessem. Membros da escola de Shamai se colocaram de guarda na porta da academia para garantir que sua vantagem numérica não fosse alterada. Naquele dia, 18 decisões foram tomadas de acordo com a opinião da Escola de Shamai. Uma fonte rabínica fala de 3.000 mortos como resultado deste conflito; outra compara este dia como o evento do bezerro de ouro. Provavelmente, o motivo para a comparação é o fato de que Beit Shamai tenha permitido que sua certeza transformasse ideias em ídolos, virassem absolutas, incontestáveis, inquestionáveis; semi-deuses pelos quais toda e qualquer atitude é justificável.
Vivemos em uma época em que parecemos ter perdido a capacidade de debater de forma respeitosa e produtiva. Alimentados pelas caixas de ressonância das redes sociais, temos adotado discursos cada vez mais radicais e vilificado as pessoas cujas opiniões divergem das nossas. Perdemos a curiosidade genuína pela opinião do outro e entramos em discussões com o único objetivo de vencê-las. Não deixamos nenhuma fresta em nossas certezas absolutas, também incorrendo no erro da idolatria de ideias. Em confrontos apresentados como decisões entre o bem e o mal absolutos, qualquer estratégia passou a ser válida para vencer o debate. Assim como foi o caso com os membros de Beit Shamai, nos esforçamos para obter o máximo resultado de qualquer vantagem numérica temporária. Foi-se a época em que a busca pelo consenso e pela paz era um valor que perseguíamos…
Todos concordam sobre a quebra das normas de convívio e debate, mas cada um de nós aponta para o grupo oponente como responsável por esta situação. Por outro lado, quando os rabinos do Talmud falam do ódio gratuito em Tishá beAv, apontam o dedo para a culpa dos próprios rabinos e os responsabilizam por terem permitido que a situação chegasse àquele ponto. Quando falam do 9 de Adar, é uma crise no próprio modelo rabínico de debate que causa o rompimento. A tradição nos ensina, desta forma, a não buscar subterfúgios ou bodes expiatórios e instrui a cada um a buscar sua própria responsabilidade por termos chegado até aqui antes de indicar a culpa do outro.
Na parashá desta semana, Aharon - o irmão de Moshé - e seus filhos Nadav, Avihu, Eliazar e Itamar, recebem as instruções para servirem como cohanim, sacerdotes responsáveis pela condução dos serviços religiosos da época. Que coincidência linda que seja justamente esta a parashá do shabat em que eu me somo ao grupo de rabinos da CIP!
Sobre Aharon, Pirkei Avot diz que ele era  אוֹהֵב שָׁלוֹם וְרוֹדֵף שָׁלוֹם, אוֹהֵב אֶת הַבְּרִיּוֹת וּמְקָרְבָן לַתּוֹרָה, “alguém que amava a paz e a buscava, que amava as pessoas e as aproximava da Torá.” Uma ótima fonte de inspiração nestes dias difíceis em que vivemos! Espero que junto com meus colegas na equipe profissional e com o apoio de toda a comunidade, possamos realmente ajudar na construção da paz e do consenso, tão necessários nestes tempos. Que o exemplo de 9 de Adar nos instrua a manter nossos debates construtivos e respeitosos.
Shabat Shalom!

Roupas e Máscaras

“A roupa não faz o homem” diz o ditado brasileiro, mas a parashá desta semana traz instruções explícitas de como devem ser as roupas e os acessórios que os cohanim, incluindo o Cohen haGadol, usarão. Os comentaristas debatem qual o impacto dessas roupas especiais que os sacerdotes devem usar: há aqueles que apontam para a necessidade de distinção entre sacerdotes e o resto do povo e aqueles que acreditam que o uso da roupa confere uma distinção que é incorporada também na maneira como os sacerdotes se comportam.


Será que nos comportamos de forma mais séria, sisuda ou sofisticada quando nos vestimos mais formalmente? Será que as roupas de banho e chinelos que usamos na praia e na piscina também se refletem no linguajar e nas brincadeiras que adotamos nestes lugares? Entre estes dois casos, qual traje será que melhor reflete a nossas verdadeira personalidade, o nosso mais profundo “eu”?


Diferentemente de outras culturas, tradicionalmente, judeus não são enterrados com roupas, mas envolvidos em uma mortalha branca. Partimos deste mundo buscando refletir a mais pura essência de quem somos e pareceu apropriado à tradição eliminar qualquer impacto que as roupas pudessem ter. Nesta mesma linha de raciocínio, Avraham Burg, ex-presidente da Agência Judaica e do Parlamento Isralense, comenta que a palavra em hebraico para “roupa” (bégued) vem da mesma raiz que a palavra para “traição” (beguidá) e que a palavra para “casaco” (me’il) vem da mesma raiz que “fraude” (me’ilá)[1]. A língua hebraica reconhece implicitamente que as roupas ajudam a compor as máscaras que utilizamos na composição de nossa persona e, desta forma, nos ajudam a contar pequenas mentiras sobre nós mesmos.


Daqui a pouco mais de um mês, celebraremos Purim, a festa judaica em que fantasias e máscaras ocupam lugar central e está na hora de começarmos a planejar que fantasias usaremos. No texto da Meguilat Ester, as roupas e acessórios já têm grande destaque[2] e na comemoração da festa nos permitimos brincar e adotar, através da roupa, outra personalidade, ao menos por umas horas. Algumas vezes, nos fantasiamos do mais absoluto inverso da realidade que vivemos e, desta forma, experimentamos o mundo através da perspectiva do outro. Outras vezes, nos fantasiamos daquilo que mais gostaríamos de ser e aproveitamos a festa para realizar este sonho, mesmo que temporariamente. Ao final da festa, tiramos nossas fantasias e voltamos às nossas máscaras do dia-a-dia.


O que aconteceria se nos permitíssemos remover todas as máscaras e nos apresentássemos ao mundo como realmente somos? Se é verdade que a roupa não faz a pessoa, então quem é a pessoa que se esconde por baixo de tanta roupa? Que neste shabat Tetsavê consigamos - mesmo que apenas por alguns instantes - nos relacionar com aqueles que mais amamos sem os uniformes, sem as máscaras, sem os formalismos, sem as brincadeiras forçadas. Que possamos apenas SER na relação um com o outro e que, assim, nossas almas descansem e sejam revitalizadas.


Shabat Shalom!


[1] Burg, Avraham. Very Near to You: Human Readings of the Torah. Gefen Publishing House: 2012. p. 176.
[2] Veja, por exemplo, Ester 1:11, 4:1, 5:1, 6:7-11.