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sexta-feira, 14 de abril de 2023

Dvar Torá: Silêncios que enaltecem e silêncios que destroem (CIP)


Faz uns anos, eu fui convidado a participar da cerimônia de 70 anos da Fundação Dorina Nowill para Cegos. Em meio a várias outras autoridades religiosas citando passagens de suas escrituras sagradas, eu me aproximei do púlpito com minha cópia do Pequeno Príncipe para ler a passagem em que a raposa ensina ao príncipe que “o essencial é invisível para os olhos.” [1]

Eu conto essa história porque hoje eu vou citar nossa grande filósofa Rita Lee, que em “Jardins da Babilônia” cantou: “Pra pedir silêncio eu berro, pra fazer barulho, eu mesma faço.” [2] No tema do oxímoro, hoje eu vou gastar os próximos 15 minutos sem parar de falar sobre o silêncio.

Não sei se vocês já se deram conta, mas há vários tipos de silêncio — ou pelo menos há várias formas de interpretar o silêncio. Se durante a prédica, a comunidade inteira está em silêncio pode ser um sinal de atenção e engajamento ou o oposto deles, e a única forma de descobrir qual tipo de silêncio é, é olhando nos olhinhos de vocês e tentando “ler” as mensagens não verbais que vocês emitem. Há o silêncio que indica aceitação e o que expressa a mais profunda oposição. Quando as pessoas ficam profundamente magoadas, muitas vezes é através do silêncio que elas respondem, mas o silêncio também pode indicar parceria e cumplicidade, como eu testemunhei recentemente em um casamento, no qual os olhares que os noivos trocavam em silêncio sob a chupá falavam muito mais do que um milhão de palavras poderiam.

Na tradição judaica fala-se muito em defesa do silêncio — o que, pelo menos,  cria precedente histórico para a minha prática de falar sem parar sobre o silêncio. No livro de Provérbios, tradicionalmente atribuído ao rei Shlomô, diz-se em uma passagem que “mesmo uma pessoa tola será considerada sábia se se mantiver calada” [3]; em outra passagem do mesmo livro, é dito que “a pessoa tola não almeja a compreensão, apenas revelar seus pensamentos.” [4] Em Pirkei Avot, Rabi Akiva diz que “uma cerca protetora ao redor da sabedoria é o silêncio” e vários comentaristas explicam que a construção estranha da frase é para deixar claro que o silêncio é a única proteção possível para a sabedoria. [5] Outros comentaristas indicam que, além de proteger a sabedoria, o silêncio também permite que escutemos uns aos outros com maior atenção. No Talmud, os Rabinos afirmam que “o silêncio é apropriado para uma pessoa sábia, ainda mais para um tolo.” [6] Para quem já viu uma coleção do Talmud e seus 63 tratados, que nas minhas estantes equivalem a uma enciclopédia com 44 volumes, é no mínimo curioso que o silêncio fosse tão valorizado.

Na parashá desta semana, há uma situação de silêncio que vem sendo debatida pelos nossos sábios sem que seja estabelecido um consenso sobre  de qual tipo de silêncio se tratava. De forma pouco explicada e muito debatida, Nadav e Avihu, dois cohanim filhos de Aharón são tragados pelo fogo Divino em resposta a um “fogo estranho” que eles tinham ofertado [7]. Na sequência, o texto afirma apenas que “וַיִּדֹּם אַהֲרֹן”, “Aharón silenciou”. [8]

A reação de Aharón, o pai que perdeu seus filhos, choca pela passividade. Quando Sará soube da quase morte de seu filho Itschak, diz o midrash que sua alma fugiu do seu corpo. Quando Iaacóv ouviu que seu filho Iossêf tinha sido devorado por um animal selvagem, rasgou suas roupas, pôs pano de saco nas suas costas e guardou luto por seu filho por muitos dias. Mas Aharón ficou em silêncio.

Os comentaristas procuraram compreender o silêncio de Aharón. Há quem diga que seu coração se tornou pedra e que ele não tinha mais a capacidade de dizer nada, sua alma havia partido. [9] Por outro lado. há outros comentaristas que dizem que sua espiritualidade elevada permitiu que ele estivesse na mais completa calma, justificando a decisão Divina de levar seus filhos. [10]

E o nosso silêncio hoje, também pode ser interpretado de múltiplas formas? Dentro do mundo judaico, Ellie Wiesel foi um dos intelectuais que se dedicou a estudar o silêncio. De um lado, ele não permitiu que Orson Welles, o celebrado diretor de “Cidadão Kane” transformasse seu livro “A Noite” em um filme, argumentando que ele tinha escrito silêncios entre suas palavras e o cinema não deixava espaço para esses silêncios.” [11] O livro é um relato autobiográfico da experiência de Wiesel nos campos de extermínio nazistas, no qual ele afirma: 

“Nunca esquecerei aquela noite, a primeira noite no campo, que converteu minha vida numa noite longa e trancada a sete chaves. Nunca esquecerei aquela fumaça. Nunca esquecerei os rostinhos das crianças cujos corpos vi se transformarem em espirais sob um firmamento calado. Nunca esquecerei aquelas chamas que consumiram minha fé para todo o sempre. Nunca esquecerei o silêncio noturno que me tirou por toda a eternidade o desejo de viver. Nunca esquecerei aqueles momentos que assassinaram meu Deus e minha alma, em que meus sonhos assumiram a face do deserto. Nunca esquecerei, ainda que fosse condenado a viver por tanto tempo quanto o próprio Deus. Nunca.” [12]

O mesmo homem que impediu que seu livro virasse filme para proteger o silêncio que o texto continha dedicou sua vida à militância contra o silêncio que permitiu aquela atrocidade, mesmo na presença de pessoas poderosas. Em uma cerimônia na Casa Branca na época em que Ronald Reagan era presidente, ele protestou contra sua intenção de visitar um cemitério na Alemanha onde vários soldados SS estavam enterrados. “Seu lugar é com as vítimas dos SS”, ele disse ao presidente. Quando Clinton era presidente, ele o alertou que, como judeu, não podia aceitar o genocídio acontecendo na Iugoslávia naquela época. 

Wiesel jurou “nunca ficar calado onde quer que os seres humanos sofram sofrimento e humilhação” e talvez essa seja a linha que diferencia o silêncio produtivo, que favorece a escuta, daquele que permite que atrocidades sejam cometidas com o consentimento tácito implícito na nossa inação. 

“Devemos tomar partido”, ele disse. "Neutralidade ajuda o opressor, nunca a vítima. O silêncio encoraja o torturador, não o atormentado. Às vezes devemos interferir. Quando vidas humanas estão em perigo, quando a dignidade humana está em risco, as fronteiras nacionais e as sensibilidades tornam-se irrelevantes. Onde quer que homens e mulheres sejam perseguidos por causa de sua raça, religião ou opiniões políticas, esse lugar deve – naquele momento – tornar-se o centro do universo”. [13]

Na segunda-feira à noite, marcaremos o início de Iom haShoá, a data no calendário judaico em memória às vítimas da atrocidade nazista. A data escolhida no calendário faz referência ao Levante do Gueto de Varsóvia que, em 1943, desafiou os nazistas que esvaziavam o gueto de seus moradores e os enviavam para os campos de extermínio, um ato de coragem que neste ano comemora 80 anos e que homenagearemos na CIP no Cabalat Shabat do dia 28 de abril, com a presença do Coral Tradição, da Casa do Povo.

Vivemos tempos difíceis. Uma matéria no Estadão de hoje fala que, de acordo com um levantamento da Universidade de Tel Aviv, houve em 2021 um aumento dramático de ataques antissemitas em todo o mundo. Nos Estados Unidos, onde há estatísticas disponíveis também para 2022, o aumento foi de 36% com relação a 2021, que já tinha sido o ano do tal “aumento dramático”. [14] O mundo, em grande parte, tem se calado frente a este aumento de crimes de ódio contra judeus.

Aqui no Brasil, os ianomamis foram as vítimas de um projeto premeditado de eliminação aos qual assistimos ao vivo e a cores pela TV, na grande maioria, em silêncio.

Todos os dias, nas ruas das nossas grandes cidades, pessoas pretas são mortas em números assustadores. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de pessoas pretas mortas por policiais aumentou 5,8% de 2020 para a 2021, enquanto para pessoas brancas o número caiu 30,9%. Dessa forma, 84,1% das vítimas fatais de intervenções policiais eram pretos ou pardos, porcentagem significativamente superior ao seu número na população. [15] Nossa reação, de forma geral, foi o silêncio.

Como disse Elie Wiesel, “o silêncio encoraja o torturador, não o atormentado”. Mesmo que nossos corações, assim como o de Aharón, tenham se tornado pedras calejadas com tanta violência, é hora de sairmos de nossa dormência. Falecido em 2016, Wiesel precisa da nossa ajuda para continuar cumprindo sua promessa: “nunca ficar calado onde quer que os seres humanos sofram sofrimento e humilhação.”

Shabat Shalom!



 

[1] https://www.sesirs.org.br/sites/default/files/paragraph--files/o_pequeno_principe_-_antoine_de_saint-exupery.pdf, p. 56

[2] https://www.letras.mus.br/rita-lee/48512/

[3] Prov. 17:28

[4] Prov. 18:2

[5] Pirkei Avot 3:13. Para os comentários, vejam Bartenura e Ikar Tossafot Iom Tov.

[6] Talmud Bavli Pessachim 99a

[7] Lev. 10:1-2

[8] Lev. 10: 3

[9] Abarbanel comentando sobre Lev. 10:1

[10] R. Eliezer Lipman Lichtenstein - Shem Olam (1848-1896, Polônia), conforme citado por Nechama Leibowitz, http://www.jewishagency.org/he/leviticus/content/22409

[11] https://slate.com/human-interest/2016/07/elie-wiesel-s-profound-and-paradoxical-language-of-silence.html

[12] Elie Wiesel, “A noite: Um dos mais importantes testemunhos sobre a vida nos campos de concentração.”. Pag. 70/182 (ebook)

[13] https://www.thejc.com/lets-talk/all/elie-wiesel-understood-the-power-of-silence-6MIYglTlvuDwVhFe6pDINW

[14] https://www.estadao.com.br/alias/entenda-como-o-antissemitismo-em-alta-reune-radicais-de-todas-as-direcoes-politicas/

[15]  https://pt.org.br/negros-sao-84-das-pessoas-mortas-em-acoes-policiais-no-brasil/


sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Dvar Torá: O incômodo e a necessidade de falarmos sobre o antissemitismo (CIP)


A gente pode identificar o aburguesamento de um rabino pela forma como ele começa as prédicas… logo que eu comecei a trabalhar na CIP, fiz uma prédica[1] na qual eu abria falando de como eu tinha aproveitado o feriado de primeiro de maio para organizar os livros. Desta vez, eu aproveitei o dia de ontem, quando eu estava de férias, e fui comprar roupa! Como já faz tempo que os quilinhos a mais que eu ganhei durante a pandemia — e não foram tão  poucos quilinhos assim — vêm cobrando a conta na cintura das minhas calças, queria fazer uma renovação completa do guarda-roupa e fui arriscar a sorte no Outlet, que alguns dizem que valem a pena e outros falam que é pura enganação.

Entrei na primeira loja e me assustei com os preços. Entrei na segunda, pedi para ver calças, mas não cheguei a provar, de tão caras que eram. Na terceira loja que eu entrei, tinha uma promoção, supreendentemente não anunciada na vitrine, que dava 50% de desconto para quem levasse 4 peças ou mais. Incrédulo, eu perguntei várias vezes se era isso mesmo antes de começar a experimentar váaarias calças. No, final peguei minhas NOVE peças de roupa e fui para o caixa, ainda com medo de que, no final das contas, teria alguma pegadinha e o desconto seria menor que o prometido. Lá, eu brinquei com a vendedora: “nove peças deveriam me dar noventa porcento de desconto, você não acha?!”

A vendedora, que até aquele momento tinha sido SUPER simpática me olhou super séria e perguntou: “de onde você é?!”. “Eu sou brasileiro”, eu respondi, sabendo que minha quipá era o real motivo da pergunta dela. “Eu sou brasileiro, nasci aqui”, eu insisti. E ela comentou “pechinchando assim, acho que você é de um daqueles países em que as pessoas sabem negociar.” E, pronto, com a quipá na cabeça e as brincadeiras com a vendedora, eu tinha reforçado os estereótipos que ela tinha com relação aos judeus.

Eu ando sempre de quipá e raras são as situações em que sinto algum tipo de incômodo por causa disso. Todos nós navegamos em um universo de pertencimentos múltiplos — pensa só no número de grupos que você tem no WhatsApp ou no facebook. Somos simultaneamente condôminos no edifício em que moramos, torcedores de um time de futebol, simpatizantes de causas políticas, cidadãos de um país, detentores de uma identidade nacional religiosa.

Talvez o dilema de como navegamos entre múltiplas identidades tenha começado, na perspectiva judaica, com Iossêf, o jovem hebreu que cresceu na hierarquia egípcia graças à sua capacidade de decifrar os sonhos do faraó. Ele tinha se tornado tão semelhante aos egípcios com quem vivia há tanto tempo que seus irmãos não conseguiram reconhecê-lo — eles falavam em hebraico na sua frente, sem se darem conta de que ele conseguia entendê-los. Na parashá desta semana, finalmente, Iossêf revela aos seus irmãos quem realmente é e reconhece que navega entre duas identidades: o poderoso vice-rei, parte da cultura egípcia; o irmão vendido como escravo, parte dos filhos de Israel.

O desafio não é quando reconhecemos que temos todos diversas e distintas identidades, que se complementam e vivem em tensão umas com as outras, mas quando uma parte da nossa identidade é usada como evidência de que não podemos ser autênticos em outra parte. Quando a vendedora, tendo identificado a quipá como símbolo de alguma religião que ela talvez não soubesse nomear, assumiu que eu não podia ser brasileiro, ela — de forma inocente — usou uma parte de quem eu sou, judeu, para negar a viabilidade da outra parte, brasileiro.

Começamos a semana com um episódio parecido, ainda que bem mais sério. Um economista, que verdade seja dita, foi o melhor professor que eu tive na faculdade, buscou desqualificar outro economista, Ilan Goldfejn, que acaba de ser eleito para a presidência do BID, o Banco Interamericano de Desenvolvimento[2]. Seu sobrenome, claramente judaico, foi qualificado de “impronunciável”;  sua longa carreira, foi desconsiderada porque ele seria “ligado (…) à comunidade judaica”.  Nas palavras cheias de preconceito de seus acusados: “Ele, na verdade, é judeu… brasileiro, nasceu em Haifa, em Israel e a comunidade judaica tem muita presença no Tesouro Americano, no Fundo Monetário, nos organismos internacionais, não só nos bancos privados. Então, ele de brasileiro, só tem o passaporte.” 

A fala não é só cheia de preconceitos e ecoa as piores acusações antissemitas de manipulação e de conspiração judaica como também lhe falta lógica. De que forma a vinculação de alguém com a comunidade judaica caracterizaria falta de vínculo com o Brasil? Parece a mesma lógica aplicada pela vendedora que perguntou de onde eu era.

Luiz Nassif, o jornalista que o entrevistava, em artigo escrito após a polêmica resultante da entrevista, reforçou a perspectiva reducionista e preconceituosa e reconheceu que elas circulam livremente nos bastidores: “Em uma conversa fechada, entre economistas e jornalistas, a referência à comunidade financeira judia seria normal, e não seria interpretada como anti-semitismo (sic).”[3]Nassif ainda atacou o Instituto Brasil-Israel e o grupo Judeus pela Democracia por terem condenado, em suas mídias sociais, um economista de esquerda, dando argumentos para críticas bolsonaristas.

Eu confesso que eu me sinto frequentemente desconfortável para falar sobre antissemitismo. Neste desconforto, busco a companhia do rabino Donniel Hartman, presidente do Instituto Hartman, fundado por seu pai e que se tornou, ao longo das últimas décadas, na principal referência em educação rabínica continuada, um centro de produção de conhecimento judaico e de reflexão sobre suas conexões com a realidade em que vivemos. Em um artigo publicado há quase exatamente dois anos, ele explicou de onde vem sua resistência a falar sobre antissemitismo[4]. Suas razões são múltiplas, mas elas podem ser reunidas em dois grupos: (1) a conversa sobre antissemitismo deslegitima a viabilidade da vida judaica na Diáspora, como  se Aushwitz se tornasse o único fim possível para toda e qualquer comunidade judaica fora de Israel; e (2) ao focar na pura e simples sobrevivência judaica, perdemos o foco da criatividade, do comprometimento, dos valores que uma vivência judaica intensa pode trazer às sociedades em que vivemos. Ecoando palavras que tinham sido formuladas por seu pai, o rabino David Hartman[5], é como se tivéssemos que escolher entre a destruição de Aushwitz e mandato que recebemos no monte Sinai. 

Depois de listar os motivos pelos quais ele odeia falar sobre antissemitismo, Donniel Hartman acrescenta, “mas eu odeio o antissemitismo ainda mais.” Se torna, portanto, importante que falemos desse assunto, apesar das nossas resistências, e de como podemos combatê-lo. Para isso, ele elenca três recomendações:

1.      Não usar incidentes antissemitas para fortalecer nossas próprias perspectivas ideológicas. Há antissemitismo na esquerda, na direita e também no centro. Enfrentamos antissemitismo na Diáspora e em Israel. Quando incidentes antissemitas ocorrem, devemos prestar nossas solidariedade e apoio a quem foi atacado e condenar o ataque, independentemente de pertencermos ou não ao mesmo bloco ideológico. Hartman escreveu: “Quando politizamos o antissemitismo, minamos a condenação universal que os ataques antissemitas merecem e exigem. Mais significativamente, criamos divisões profundas dentro de nossa própria comunidade e impedimos de nos unirmos para combater as ameaças que enfrentamos. É fundamental que nosso discurso adote uma política de tolerância zero – não apenas contra o próprio antissemitismo, mas contra os judeus e as instituições judaicas que permitem que ele seja politizado.”

2.      Precisamos reconhecer que o antissemitismo é um problema sério, que cresce no mundo e que, ainda assim, não é comparável ao que aconteceu na Alemanha Nazista. À exceção de alguns poucos países, o antissemitismo não é política de estado. Mesmo com o aumento das células neonazistas no Brasil, as autoridades continuam, na sua imensa maioria, parceiras na luta contra o ódio.

3.      É importante destacar que o antissemitismo não é o único, nem o maior problema de intolerância ou de ódio que enfrentamos hoje em dia. Precisamos atuar em parcerias com a sociedade mais ampla, reconhecendo que o ódio e o preconceito são nosso inimigo comum. Se nos calamos quando indígenas, negros, mulheres, membros da comunidade LGBTQIA+ ou de outros grupos religiosos são atacados, não temos o direito de nos indignarmos quando estas comunidades se silenciam frente a ataques antissemitas. Mais do que nunca, o famoso poema do pastor luterano Martin Niemöller[6] é relevante hoje:

Quando os nazistas pegaram os comunistas,
eu fiquei em silêncio;
eu não era comunista.

Quando eles prenderam os social-democratas,
eu fiquei em silêncio;
eu não era um social-democrata.

Quando eles pegaram os sindicalistas,
eu não protestei;
eu não era um sindicalista.

Quando eles levaram os judeus,
eu fiquei em silêncio;
eu não era um judeu.

Quando eles vieram me buscar,
não havia mais ninguém para protestar.

Membro do povo de Israel e do Egito, comprometido com o destino da nação egípcia e da sua família, colaborando para seu sucesso em um cenário de crise regional. Esse é Iossêf, que nesta semana reconhece aos seus irmãos quem ele realmente é. 

Que possamos, também nós, termos orgulho da nossa identidade judaica e brasileira, e nunca precisemos esconder parte de quem somos, ao mesmo tempo em que combatemos toda forma de ódio, discriminação, preconceito e intolerância, com especial atenção ao antissemitismo, que nos atinge de forma direta. Que sempre possamos condená-lo, independentemente de outros interesses e que nunca o manipulemos para avançar nossas próprias agendas.

Que em 2023 possamos avançar na direção de um mundo mais inclusivo, mais acolhedor, mais aberto, mais humano.

Shabat Shalom!

 

 



[4] . https://blogs.timesofisrael.com/i-hate-talking-about-anti-semitism/

[5] . https://www.hartman.org.il/auschwitz-or-sinai/

[6] . https://en.wikipedia.org/wiki/First_they_came_…






quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Escravos de ontem e escravos de hoje

Se você buscar na internet pela pessoa que primeiro formulou o conceito de que “um povo que não conhece sua história está fadado a repeti-la”, descobrirá mais de uma versão sobre sua autoria: há quem diga quem tenha sido Sir Edmund Burke (1727-1797)  e quem afirme que a frase é muito mais recente e atribua sua autoria a George Santayana (1863-1952). Quem quer que tenha sido o seu autor, existe alguma tensão entre a frase e a percepção judaica da história.

Dizem que não há ninguém tão obcecado com a sua própria história quanto o povo judeu. Nos definimos através de nossos antepassados, recontamos com freqüência nossas experiências históricas com uma devoção religosa. Até mesmo quando Deus se apresenta ao povo no alto do Monte Sinai, o faz apresentando suas credenciais históricas: “Eu sou Adonai, teu Deus, que te tirou da terra de Mitsrayim, da Casa da Escravidão.” [1] 

No entanto, mesmo com a ênfase no conhecimento da nossa história, a tradição judaica busca, não apenas lembrar, mas reviver seus episódios centrais. Nas festividades judaicas, por exemplo, tentamos, ao máximo possível, reviver eventos históricos: tanto situações alegres como a Saída de Mistrayim, que revivemos no Seder de Pessach e o Recebimento da Torá, que revivemos como Ticún de Shavuot e na leitura das Dez Afirmações na manhã seguinte, quanto episódios que gostaríamos de esquecer, como as tragédias associadas a Tishá b’Av, pela qual observamos práticas de luto mesmo milênios depois dos eventos terem acontecido. Na liturgia diária, recitamos o Mi Chamôcha e nos transplantamos para a vivência e os sentimentos da geração que cruzou o Mar dos Juncos em direção à liberdade.

Em algumas situações, no entanto, parece quase uma maldição que grupos e povos não consigam escapar de situações de opressão e continuem, não por escolha própria, revivendo seus momentos mais trágicos. De alguma forma, a data de Tishá b’Av, à qual fiz referência acima, é um exemplo judaico deste fenômeno, um ponto focal de tragédias históricas que foram sendo acumuladas ao longo dos séculos, incluindo o atentado à AMIA em Buenos Aires, ocorrido em 18 de julho de 1994 (10 de Av de 5754); episódios de antissemitismo do qual gostaríamos de escapar, esforço no qual ainda não tivemos sucesso.

Outros povos vivem situações semelhantes. Olhe, por exemplo, para a comunidade afro-descendente no Brasil. Sequestrados de seus lares em outro continente, foram trazidos para cá à força, escravizados, brutalizados, desumanizados. Após mais de três séculos de regime escravocrata, puseram fim à escravidão legal sem criar as condições para a integração social das pessoas que tinham sido escravizadas. Como afirmou a filósofa Djamila Ribeiro: “a gente tem mais tempo no Brasil de escravidão do que sem escravidão, e isso impacta na construção das desigualdades no país, impacta na população negra e indígena, sobretudo. Não tem como a gente esquecer, mais de 300 anos de opressão num país que tem pouco mais de 500, como que isso, tanto no período da escravidão, mas depois no pós-abolição, que não foram deixadas políticas de reparação para incluir a população negra.” [2]

Na parashá desta semana, temos duas vezes o relato de como Deus orientou Moshé a instruir o povo a pedir aos egípcios objetos de prata e de ouro e predispôs os egípcios a atender o pedido dos israelitas, lhes dando tudo o que eles queriam [3]. A saída dos hebreus carregando objetos valiosos recebidos dos egípcios, que já tinha sido anunciada em outras passagens da Torá [4], tem atraído a atenção de muitos comentaristas. O verbo usado na Torá para “pedir” ao descrever a ação dos hebreus (lish’ol) pode ser entendido também como “tomar emprestado” e não foram raros os comentaristas que indicaram uma ação pouco ética dos hebreus (e de Deus, que os instruiu!), ao pedirem emprestado objetos valiosos sem a intenção de devolvê-los. Philo, um filósofo judeu que viveu em Alexandria, no séc. I E.C., por outro lado, considerava que as riquezas recebidas pelos hebreus tinham sido indenizações pelos anos de trabalho escravo; na mesma linha de raciocínio, Nachmanides (1194-1270) acreditava que os presentes oferecidos pelos egípcios eram um reconhecimento de sua culpa e um pagamento de reparação pelos danos causados aos hebreus. Ainda que a violência contra os hebreus tenha sido engendrada pelo Faraó e que nem todos os egípcios tenham tomado parte nela, Deus permitiu que todos percebessem sua responsabilidade e que ajudassem para a sua resolução.

É difícil não estabelecer paralelos entre a situação da saída dos hebreus de Mitsrayim e aquela na qual se encontraram as pessoas libertadas de sua condição de escravidão no Brasil, sem que a sociedade que as havia oprimido reconhecesse sua culpa ou providenciasse reparações. Quase um século e meio depois, seus descendentes continuam vivendo permanentemente — não por escolha própria — as consequências da violência que sofreram por mais de três séculos, um ciclo de opressão que se renova e retro-alimenta. 

Que assim como fez com os egípcios, que a fagulha Divina que reside em cada um de nós nos predisponha a encararmos a situação de nossos semelhantes com humildade, empatia e reconhecendo os privilégios que herdamos em uma sociedade profundamente injusta e desigual e para que ajamos na direção de diminuir estas injustiças e desigualdades.

Shabat Shalom!


[1] Ex. 20:2

[2] bit.ly/3yQoB05

[3] Ex. 11:2-3, 12:35-36.

[4] Gen. 15:13-14, Ex. 3:21-22.



sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Podcast "Podfalar Em Companhia" - Ed. 71 (Jesuítas Brasil)

(originalmente postado em https://soundcloud.com/jesuitasbrasil/pode-falar-0)

A fim de auxiliar no diálogo sobre a democracia e a cidadania no país, convidamos o rabino Rogério Cukierman, que integra a Congregação Israelita Paulista (CIP), para falar sobre as colaborações que as religiões podem estabelecer no exercício da cidadania e da diversidade de perspectivas entre as comunidades religiosas. O rabino também abordou o papel do judaísmo no contexto de exclusão e da pandemia do coronavírus.

Ouça o podcast dessa edição do Em Companhia.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Dvar Torá: Eu sou um Racista em Desconstrução: um pedido de desculpas pra Iaiá (CIP)


Quando eu era pequeno, eu tinha uma babá. O nome dela era Maria, mas eu a chamava de Iaiá e o nome acabou pegando. A foto da qual eu mais me lembro dos meus primeiros anos sou eu aos dois anos dentro do mar, acho que em Santos, o barrigão pra fora, um enorme sorriso malandro no rosto — e a Iaiá no fundo, de vestido, até os joelhos dentro do mar. Nessa idade, eu dividia o quarto com o meu irmão e lá só tinham as nossas duas camas. Quando eu ficava doente, a Iaiá deitava no chão pra me colocar pra dormir e estava lá caso eu chorasse no meio da noite.

Em 1976, quando eu tinha cinco anos, passou na TV um dos maiores ícones da teledramaturgia brasileira. A novela “Escrava Isaura” contava a história de uma escrava por quem o senhor da fazenda se apaixona. Isaura era branca mas todos os outros escravos retratados na trama eram pretos; pretos assim como a Iaiá. Vendo aquela realidade e o que acontecia na minha casa, eu logo entendi qual era a regra do jogo. Fui conversar com a minha mãe e, muito sério, pedi pra ela que, quando chegasse a hora de dar a alforria pra Iaiá, ao invés disso, ela desse a Iaiá pra mim.

Eu conto essa história pra me juntar a uma série de outras figuras que se declararam “racistas em desconstrução”.  Fabio Porchat, um dos criadores da iniciativa escreveu “É chocante e desconfortável, mas é a verdade. É essencial e urgente que eu diga isso antes que mais vidas sejam prejudicadas. Carrego em mim preconceitos estruturais e estou aqui pra dizer que participei dessa construção nociva, e, de forma perigosamente sutil, absorvi e reproduzi o idioma do racismo com fluência. Não sei quantas vezes eu fui tóxico ao longo da vida, mas a partir de agora eu sou um racista  em desconstrução, e começo o trabalho de transformação.” [1]

Eu conto a história da Iaiá com vergonha, mas ciente de que eu preciso assumir minha história se eu quero o direito de sonhar com um país diferente. Eu conto essa história porque, apesar da minha barriga estar perigosamente parecida àquela que eu tinha aos dois anos e de gostar do sorriso malandro na foto, eu não quero mais me reconhecer na conduta daquele menino e para isso é necessário um profundo processo de t’shuvá.

A gente costumar associar t’shuvá às Grandes Festas, mas é um processo que precisa acontecer o ano todo. T’shuvá, que muitas vezes é traduzido por arrependimento, é muito mais do que isso; é um processo sobre o qual a tradição judaica se debruça com especial atenção. Na sua origem, o termo quer dizer “retorno” e representa o nosso esforço para retornarmos à melhor versão de nós mesmos, de corrigirmos nossas ações quando erramos, repararmos os erros que causamos e garantirmos que eles não voltem a acontecer. No começo de todo processo de t’shuvá está o reconhecimento do erro…

Infelizmente, essa talvez seja a parte mais difícil. Eu amava a Iaiá profundamente e o sorriso no meu rosto na foto que eu mencionei evidencia isso. Seria fácil me esconder atrás desse amor e dizer que ela era como se fosse da família, que o meu pedido para minha mãe tinha sido o jeito de uma criança de cinco anos expressar seu amor pela babá. É bem possível que fosse isso mesmo, mas era também resultado do racismo estrutural em que vivemos e no qual eu fui criado, em que aquela moça preta que morava na minha casa era sujeitada constantemente, inclusive por mim e pela minha família, ao preconceito naturalizado pela nossa cultura.

O primeiro passo para reconhecer o erro é parar de dizer que a Iaiá era parte da família, porque ela não era. Quando íamos jantar fora, ela não ia; quando viajávamos, ela só era convidada se fosse para tomar conta de mim; quando eu ia soprar a velinha do bolo de aniversário, ela nunca esteve lá na frente, junto com meu pai e minha mãe. A Iaiá era uma babá querida, cuja subjetividade foi muitas vezes negada, que foi objetificada, mas esses erros nunca foram reconhecidos sob a desculpa de que ela “era quase da família”.

Sim, eu sou um racista em desconstrução, tentando iluminar os aspectos da minha biografia dos quais não me orgulho para poder lidar com eles.

O patriarca Iaacov tem uma história parecida. Seu nome ao nascer, Iaacov, numa tradução livre, quer dizer “enganador”. Iaacov (יעקב) vem de ekev (עקב), “calcanhar”, porque ele nasceu agarrando o calcanhar de seu irmão gêmeo na tentativa de passar na frente na hora do parto e ser o filho primogênito. Iaacov só deu um prato de ensopado de lentilhas para seu irmão faminto quando ele prometeu lhe entregar em troca seu direito à primogenitura; Iaacov enganou seu pai e se fez passar pelo irmão para receber a benção que era destinada ao outro; quando Iaacov sonhou com os anjos subindo e descendo uma escada, ele acordou e tentou fazer uma barganha com Deus: “se Deus estiver comigo e me proteger no caminho por onde eu for, se me der pão para comer e roupas para vestir, se eu voltar são e salvo para a casa do meu pai, então ה׳ será o meu Deus.” [2] Relacionamentos não eram o forte do nosso patriarca e ele avaliava toda pessoa que encontrava de acordo com a utilidade que tinha para seu plano. 

Depois de passar 20 anos fugindo da ira do seu irmão, Iaacov resolveu enfrentar seus erros e voltar para a terra dos seus pais. Seu amadurecimento parece evidente na forma como ele fala com Deus no comecinho da nossa parashá: 

קָטֹנְתִּי מִכֹּל הַחֲסָדִים וּמִכָּל־הָאֱמֶת אֲשֶׁר עָשִׂיתָ אֶת־עַבְדֶּךָ 
כִּי בְמַקְלִי עָבַרְתִּי אֶת־הַיַּרְדֵּן הַזֶּה
וְעַתָּה הָיִיתִי לִשְׁנֵי מַחֲנוֹת׃
Eu não mereço os favores nem a bondade com que Você tratou teu servo. 
Quando atravessei este Jordão, eu tinha apenas um bastão, 
agora possuo dois acampamentos. [3]

O processo de amadurecimento de Iaacov é endereçado de forma mais enigmática alguns parágrafos depois. Iaacov está sozinho ao lado de um rio quando um homem aparece e os dois brigam durante toda a noite. Quando o Sol começa a nascer, Iaacov pede uma benção ao sujeito, que vem na forma de uma troca de nome. “Seu nome não será mais Iaacov, mas Israel, pois você lutou com Deus e com homens e prevalesceu.” Mesmo tendo sobrevivido, Iaacov saiu desta luta machucado na perna e passou a andar mancando a partir de então. [4]

A tradição tem tentado há séculos encontrar algum sentido nessa história. Alguns comentaristas acreditaram que Iaacov lutou com o anjo da guarda de Essav, seu irmão [5]. Outros, optaram por analisar o texto como se fosse um sonho, usando uma abordagem psicanalítica. Nesta visão, o oponente é simultaneamente Essav, Itzchak e Deus, pessoas que Iaacov feriu durante sua vida e com as quais ele se reconcilia por meio da interação com o “homem” [6].

Em um texto que eu escrevi no primeiro ano da minha educação rabínica, eu disse o seguinte: 

É lá, nas margens do Iabok, que ele viu Deus face a face. Ele vê a pessoa que se tornou, o trapaceiro, o enganador, alguém que não consegue desenvolver relacionamentos com as pessoas ao seu redor e que está sempre fugindo em vez de enfrentar seus problemas. Ele sonha com um homem, que é simultaneamente um anjo, Deus e o próprio Iaacov. Ele vê um Deus que “forma a luz e cria as trevas, [que] faz a paz e cria o mal” [7]. Ele finalmente entende seu papel, a responsabilidade de escolher entre o certo e o errado. É um processo doloroso, pois Iaacov tem que reconhecer todos os erros que cometeu. Ao amanhecer, uma parte dele quer acordar desse sonho, juntar-se à sua família e seguir com a vida, mas Iaacov resiste à tentação e continua lutando consigo mesmo neste processo de busca da alma, até sentir que vale a pena as bênçãos que ele recebeu. Em algum momento, o “homem” pergunta seu nome e, chorando, ele responde “Iaacov, o enganador”, e a resposta é “você não precisa mais ser um enganador; seu nome será Israel, porque você lutou com Deus e consigo mesmo e se tornou uma pessoa melhor. ” Intrigado, Iaacov pergunta “e quem é você, para mudar meu nome?”, “Você não precisa perguntar, você sabe quem eu sou” foi a resposta. Iaacov reconheceu a natureza transformadora da experiência que teve nas margens do Iabok e chamou o lugar de Peniel, porque lá, pela primeira vez, ele teve a coragem de se olhar no espelho e, ao fazer isso, viu a face de Deus.

Mas Iaacov não se tornou uma pessoa perfeita depois daquele dia. Seu mancar o lembrou de que somos todos seres humanos e todos temos fracassos, mas precisamos tentar se quisermos melhorar. Quando o sol nasceu, terminou uma longa noite na vida de Iaacov.

Nos últimos meses, todos temos tido a chance de nos olharmos no espelho e o resultado nem sempre é satisfatório. Individualmente e como sociedade, temos visto muitas mazelas na imagem que reflete quem somos. A questão da injustiça racial tem gritado especialmente alto para mim. O assassinato do João Alberto Silveira Freitas no Carrefour em Porto Alegre foi só a ponta de um iceberg gigantesco. Pior: não fomos para as ruas, não interrompemos nossas rotinas. Alguns de nós pararam de comprar no Carrefour, como se isso fosse corrigir a profunda desigualdade racial em que vivemos e continuamos com nossas vidas.

Eu sei que eu já falei de racismo há seis meses, quando George Floyd foi assassinado por um policial nos Estados Unidos — mas não dá pra marcar essa caixinha como endereçada e continuar com as nossas vidas como se uma prédica tivesse cumprido sua função. Palavras são só palavras e é nas nossas ações que esta questão será decidida: nas nossas condutas pessoais e nas políticas comunitárias que resolvermos implementar. Que ações vamos tomar para diminuir o racismo na nossa comunidade? Na nossa cidade? No nosso país?

Outro dia alguém perguntou como se chama alguém sentado a uma mesa com vários nazistas, onde os comentários antissemitas correm soltos sem serem contestados. “Nazista” é o nome que se dá a uma pessoa assim, foi a resposta. De forma similar, não podemos permanecer passivos quando comentários racistas são feitos na nossa frente ou nas nossas instituições — se não formos ativamente antiracistas, então estaremos sendo coniventes com a propagação do ódio, estaremos sendo racistas também.

O conflito de Iaacov, que na minha leitura representa seu primeiro encontro verdadeiro consigo mesmo, o deixou marcado pelo resto da vida. O encontro não foi fácil e deixou sequelas — re-examinar nossas condutas tampouco é agradável mas é a única alternativa viável para crescermos como indivíduos e como sociedade. Que este seja o nosso caminho….

Shabat Shalom!


[1] https://blogs.ne10.uol.com.br/social1/2020/08/08/fabio-porchat-cria-campanha-sou-um-racista-em-desconstrucao/
[2] Gen. 28:20-21
[3] Gen 32:11
[4] Gen. 32:23-33.
[5] Por exemplo, Rashi e Nehama Leibowitz (1972). Studies in the Book of Genesis: In the Context of Ancient and Modern Jewish Bible Commentary (A. Newman, Trans.). Jerusalem: World Zionist Organization, Department for Torah Education and Culture, p. 72.
[6] Vonck, P. (1984). The crippling victory: The story of Jacob’s struggle at the river Jabbok (Genesis 32:23-33). African Ecclesial Review, 23, p. 75-87. 
[7] Isaías 45:7


sexta-feira, 12 de junho de 2020

Dvar Torá: Reconhecendo nossos privilégios e usando-os na luta antirracista (CIP)


Há pouco mais de onze anos, quando eu ainda estava no seminário rabínico, eu fiz parte de um programa organizado por uma entidade judaica norte-americana chamada American Jewish World Service, que se dedica a questões de desenvolvimento internacional. Na minha edição do programa, a sexta desde o seu início, éramos 19 alunos de rabinato de 7 escolas diferentes e fomos para Muchucuxcá, um vilarejo indígena no México, a cerca de 200km de Cancun. Lá, fizemos trabalho voluntário com a comunidade, que estava desenvolvendo um projeto de turismo ecológico e aprendemos mais sobre o que Judaísmo tem a dizer sobre nossa obrigação para com os segmentos mais vulneráveis das nossas sociedades, especialmente em outras partes do mundo.

Dos 19 alunos, eu era o único que não era originalmente do Canadá ou dos Estados Unidos; o único que conseguia se comunicar em espanhol com os moradores locais, ao lado de quem passávamos o dia trabalhando e com quem tínhamos nossas refeições. De alguma forma, eu me sentia como uma ponte entre o mundo dos estudos rabínicos nos Estados Unidos, de onde todos vínhamos, e o mundo da miséria latino-americana, na qual todos estávamos. Logo nos primeiros dias, a pobreza do local me impactou de uma forma muito profunda. O que mais me incomodava era que eu tinha viajado para um lugar a quase 7.000 km de São Paulo para me sensibilizar com uma situação que poderia vivenciar dirigindo 7 km a partir da Praça da Sé — mas a verdade é que a realidade das favelas e das periferias paulistanas nunca tinham me tocado do mesmo jeito que Muchucuxcá me tocava.

De um lado, eu acho que o relacionamento que eu havia desenvolvido com aqueles mexicanos explica em grande parte esta diferença de reações — como formulado pelo Pequeno Príncipe, “você se torna eternamente responsável por aquilo cativa”. Certamente eu também conheço, entre meus contatos pessoais e profissionais, gente que mora em condições semelhantes a Muchucuxcá, mas meus encontros com estas pessoas sempre tinham sido nas minhas condições: nos bairros de classe média ou classe média alta que eu costumo frequentar. Em Muchucuxcá, eu tinha ido encontrá-los nas condições deles...

Também é verdade que nos acostumamos a situações recorrentes, como uma pele dura que se forma e impede que nossos corações se quebrem o tempo todo. É o que permite, por exemplo, que andemos pelas ruas de São Paulo e encontremos seus moradores de rua sem que caiamos em desespero todo dia — uma reação que traz consigo o risco imenso de nos tornarmos insensíveis a estes problemas como se eles fossem invisíveis porque ninguém busca solução para problemas que não enxergam.

Tem ainda um outro lado que, eu acho, ajuda a explicar a diferença em reações: se eu tinha alguma responsabilidade pela condição dos indígenas em Muchucuxcá, ela era tangencial, indireta, ao passo que minha responsabilidade pelas condições de vida dos moradores de São Paulo é muito maior. 

Por isso, era mais fácil, mais seguro, reconhecer a dor pela situação que eu encontrei no México: era uma crise pela qual eu não tinha muita culpa; reconhecer a vulnerabilidade daqueles que moram perto de mim era muito mais arriscado.

Eu fiquei pensando bastante nesta experiência no México nas últimas duas semanas, na sequência resposta ao brutal assassinato de George Floyd por um policial em Minneapolis  documentado em um vídeo no qual vemos o policial pressionando seu joelho sobre o pescoço de Floyd por longuíssimos 8'46'' enquanto ignorava os apelos de “não consigo respirar”. Muitos amigos e colegas postaram imagens pretas nos seus perfis, usaram a hashtag #blacklivesmatter ou #vidasnegrasimportam, organizações lançaram notas de apoio, as pessoas saíram às ruas.

Eram todos protestos profundamente justificados: o assassinato de Floyd foi brutal e o fato de estar documentado em vídeo não nos permite ignorar o que aconteceu nem aceitar uma narrativa alternativa que colocasse a culpa na vítima, como tantas vezes acontece. Eu mesmo chorei várias vezes durante a semana passada, ao escutar depoimentos do seu funeral, descobrir como Floyd queria mudar o mundo, que ele tinha cinco filhos e dois netos, que ele tinha tentado transformar sua vida ao sair da cadeia em 2013 [1]. 

Ainda assim, há uma clara disparidade se protestamos quando um policial branco americano mata de forma brutal um negro americano, evidenciando a profunda injustiça racial que existe nos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que nos calamos frente aos inúmeros assassinatos de negros brasileiros por policiais brasileiros, só a ponta do iceberg da injustiça racial aqui no Brasil.

Em 2019,  a polícia brasileira matou 1650% mais negros do que a polícia norte-americana [2]. Alguns casos ficaram famosos, como o da Ágatha Vitória Sales Félix, de 8 anos, morta dentro de uma Kombi no Complexo do Alemão no ano passado; ou de João Pedro, de 14 anos, morto em sua residência após uma ação policial deixar 72 marcas de tiros na parede há algumas semanas [3]. Em 2013, Douglas Martins Rodrigues, de 17 anos foi morto pelo tiro de um policial militar a uma quadra da sua casa. Suas últimas palavras: “por que o senhor atirou em mim?”. O policial, que testemunhas acusaram de ter descido a rua atirando, foi absolvido pela justiça sob o argumento de que “faltavam provas para determinar se o tiro foi intencional ou não” [4].

Nenhum desses casos nos levou a emitir condenações públicas, a trocar as nossas fotos de perfil, a sair pelas ruas condenando a profunda falta de justiça racial no Brasil. A pesquisadora brasileira Marina Oliveira Reis, que se prepara para iniciar o doutorado em Teoria Crítica da Raça na Universidade da Califórnia em Los Angeles, afirma que “moradores de favelas, familiares de vítimas e outros coletivos vêm resistindo, protestando e exigindo providências e fim da violência continuamente (…) [mas que] pessoas brancas não mostram disposição de oferecer os próprios corpos para a causa antirracista”. E ela pergunta: “Em que medida nossos aliados usam seus privilégios para avançar na causa antirracista e contra a brutalidade policial? Ou será que ser antirracista no Brasil é só um emblema, um selo?” [5]

Quais seriam esses privilégios?! No ano passado, eu fui parado com meus filhos em uma blitz no Rio de Janeiro. Calmamente, apresentei os documentos ao policial, que me mandou seguir. Em nenhum momento eu precisei ter com meus filhos “a conversa” que todo pai negro tem com os seus: explicando que, frente à autoridade policial, você nunca se exalta, nunca faz movimentos bruscos, abaixa os olhos e indica resignação. Eu nunca precisei me preocupar com o que iria vestir para viajar, com medo de ser tomado por um delinquente no aeroporto; eu nunca precisei mudar meu corte de cabelo para que as pessoas não o considerassem étnico demais. São grandes e pequenos privilégios que configuram um sistema no qual a vida dos negros, infelizmente, não recebe o mesmo valor que a vida dos brancos.

É fundamental que reconheçamos o estado de injustiça em que vivemos e que a busca permanente por justiça é uma das tarefas impostas pela nossa tradição, em particular em defesa dos menos favorecidos.

No finalzinho da parashá desta semana, beHaalotchá, temos um episódio inusitado: Miriam e Aharon criticam Moshé, levantando, entre outras acusações, o fato de ele ter se casado com uma “Cushita”. Os comentaristas debateram em profundidade o significado desta crítica, muitos deles concluindo que era uma reclamação contra a cor da pele negra da esposa de Moshé. Apesar de Miriam e Aharon terem levantado as críticas, só Miriam é punida, com uma doença que, ironicamente,  torna sua pele muito branca. Por isso, ela precisa se afastar da comunidade por sete dias.

Alguns aspectos dessa história merecem destaque: não apenas pelo preconceito racial inerente à crítica de Miriam e de Aharon, mas também pelo fato de que apenas Miriam, mulher, que pertencia ao grupo mais vulnerável, foi punida. A mesma ação, dois resultados radicalmente diferentes. Seu irmão mais velho, homem e sacerdote, foi poupado de qualquer responsabilização pelo episódio. Assim como no nosso contexto, o sistema bíblico de justiça, neste caso pelo menos, estabeleceu dois padrões de justiça e fortaleceu os privilégios que já existiam.

Muitas pessoas reconhecem o rabino e teólogo Abraham Joshua Heschel, pelas fotos em que ele aparece marchando de braços dados com o Reverendo Martin Luther King Jr., em defesa dos Direitos Civis dos negros americanos. Eles se conheceram na Conferência Nacional sobre Religião e Raça, em 1963, na qual Heschel fez o discurso de abertura. Em sua fala, ele disse: 

Na primeira conferência sobre religião e raça, os principais participantes foram faraó e Moisés. (…) O resultado dessa reunião de cúpula não chegou ao fim. O faraó não está pronto para capitular. O êxodo começou, mas está longe de ter sido concluído. De fato, era mais fácil para os filhos de Israel atravessar o Mar Vermelho do que para um negro atravessar certos campus universitários. 
Não vamos evitar nenhum assunto. Não cederemos um centímetro ao fanatismo preconceituoso, não cederemos para a insensibilidade. 
Nas palavras de William Lloyd Garrison: "Serei tão duro quanto a verdade e tão intransigente quanto a justiça. Sobre o assunto da escravidão, não desejo pensar, falar ou escrever com moderação. Sou diligente: não vou me esquivar, não vou perdoar,  não recuarei nem um centímetro, e serei ouvido."

Religião e raça. Como os dois podem ser expressos juntos? Agir no espírito da religião é unir o que está à parte, lembrar que a humanidade como um todo é o filho amado de Deus. Agir no espírito da raça é separar, cortar, desmembrar a carne da humanidade viva. É assim que se honra um pai: tortura seu filho? Como podemos ouvir a palavra "raça" e não sentir auto-censura? (…)

De várias maneiras, o ser humano é separado de todos os [outros] seres criados nos seis dias. A Bíblia não diz, Deus criou a planta ou o animal, ela diz: Deus criou diferentes tipos plantas, diferentes tipos de animais. Em flagrante contraste, ela não diz que Deus criou diferentes tipos de pessoas, pessoas de cores e raças diferentes; ela proclama: Deus criou um único ser humano. De um único ser humano todas as pessoas descendem. [6]

Dessa forma, Heschel estabelecia a relação entre a luta dos hebreus por liberdade em Mitsrayim e a luta dos negros americanos. De forma implícita, ele afirmava que a tradição judaica determinava o apoio ao movimento pelos Direitos Civis; negá-lo significaria negar a nossa história e a nossa tradição. 

Também neste momento, em que mais uma vez nos confrontamos com a profunda injustiça racial nos Estados Unidos e no Brasil, a tradição judaica  e a nossa experiência histórica determinam que não podemos nos calar. 

Precisamos ser mais inclusivos, dar mais espaço e voz aos negros membros das nossas comunidades, inclusive na CIP, temos que reconhecer os privilégios de que desfrutamos e estarmos dispostos a usá-los como escudo para que o movimento negro possa ter protagonismo, para que possamos, juntos, criar um Brasil mais inclusivo, mais multi-racial e mais justo.

Nas palavras de Heschel, “nem todos somos culpados, mas todos somos responsáveis”. É a hora de reconhecermos nossa responsabilidade, e exercermos aquilo que determina nossa tradição, indo além das hashtags e das fotos de perfil e sermos parceiros na construção deste futuro.

Shabat Shalom.

[1] https://www.nytimes.com/2020/06/10/podcasts/the-daily/george-floyd-protests-funeral.html
[2]  https://www.poder360.com.br/internacional/policia-brasileira-matou-17-vezes-o-n-de-negros-do-que-a-dos-eua-em-2019/
[3] https://www.poder360.com.br/brasil/casa-onde-adolescente-foi-morto-tem-72-marcas-de-tiros-diz-entidade/
[4] https://noticias.r7.com/brasil/o-desfecho-de-cinco-casos-emblematicos-de-morte-de-negros-pela-policia-no-brasil-10062020
[5] https://ponte.org/diferente-dos-eua-no-brasil-os-brancos-nao-oferecem-seus-corpos-para-a-luta-antirracista/
[6] Heschel, Abraham Joshua. The Insecurity of Freedom: Essays on Human Existence. Farrar, Straus & Giroux: New York. 1967. pp.85-87. A tradução foi adaptada para ser mais inclusiva do ponto de vista de gênero.