(artigo originalmente postado no blog Pinat Brasil)
(Na primeira parte deste artigo,
tratei do problema de encarar Purim como uma festa
infantil, quando os temas tratados são muito pouco adequados para as crianças
mais novas.)
Para os adultos, há
muito que podemos aprender da história de Ester que
continua não sendo ensinado. Neste artigo, pretendo focar na dimensão política do texto, que levanta temas fundamentais para o processo
pelo qual o Brasil passa hoje.
Se os primeiros capítulos da meguilá já apresentam passagens
problemáticas para um leitor feminista, o problema específico com os judeus
começa no capítulo 3, quando Mordechai se nega a
seguir o decreto real e se prostrar frente a Haman. Contrário à percepção
popular, não há nenhuma proibição religiosa judaica de prostrar-se frente a um
rei ou a uma autoridade civil. A proibição do segundo mandamento é específica
contra se prostrar frente a ídolos, não frente a
pessoas, desde que elas não sejam consideradas deuses! A motivação de Mordechai
para este ato nunca foi bem compreendida pelos nossos Rabinos. Muitos deles se
perguntaram por que Mordechai teria colocado em risco
todo o povo judeu da Pérsia – e as repostas são múltiplas e variadas, mas
geralmente terminam analisando a
postura de Mordechai de uma forma favorável. Em um midrash[1],
por exemplo, aparece a explicação de que Haman tinha colocado a figura de um
ídolo em seu peito, para que todos aqueles que se
prostrassem diante dele estivessem, de fato, violando
o segundo mandamento. Segundo esta leitura, a recusa de
Mordechai a se prostrar frente a Haman, portanto, não deve ser vista como uma
disputa de vaidades entre os
dois ou como um não reconhecimento do poder
estabelecido; ao contrário, a atitude de Mordechai
refletiria o seu comprometimento
com um valor judaico fundamental, o de não aceitar
como absoluta uma autoridade menor que a de Deus.
Chegamos, aqui, ao
primeiro cruzamento entre este texto e a realidade brasileira. De lado a lado
do espectro político, procuram-se salvadores da pátria, ídolos que se enxergam
(ou que são enxergados) como quase-deuses, que se atribuem poder
quase-absoluto, que contam com uma legião de
seguidores quase-autômatos. Há aqueles que, usando um
linguajar ainda mais religioso, apontem um quê de "messianismo" neste culto ilimitado a algumas personalidades. Nada
podia ser mais contrário aos ensinamentos da tradição judaica em geral e da história de Purim em particular do que a adoração a
uma figura pública, como se os seus atos se auto-justificassem de maneira
automática; como se seus propósitos quase-divinos purificassem suas práticas
espúrias; como se só o mal representado pelo “outro
lado” contasse.
Cada qual e o semi-deus que a sorte e suas escolhas
políticas lhe atribuíram: pode ser Lula, Sergio Moro, Jair Bolsonaro, FHC,
Alckmin, Dilma, José Eduardo Cardoso, Joaquim Barbosa e por aí vai. O fato é
que, uma vez escolhida a figura, raras são as pessoas
– neste nosso cenário que idolatra também as certezas e tem ojeriza aos
questionamentos – que conseguem olhar suas decisões com uma visão crítica,
apontar onde existem acertos, mas também indicar os erros cometidos.
Neste contexto, posições
no abstrato valem muito pouco e só ganham relevância quando entendemos se elas
ajudam a causa do governo ou da oposição. Troquem Sergio Moro por Antonio
Palocci e vejam como as reações com relação a quebras ilegais de sigilo se
alteram; comparem as posições sobre pedidos de
impeachment sem fundamentação legal de FHC ou de Dilma; acompanhem a
importância relativa que cada militante dá às acusações de corrupção na Petrobrás,
em Furnas ou no Metrô paulista – vocês verão que o que está em curso é uma manipulação do discurso sobre valores (honestidade, combate à
corrupção, respeito à ordem democrática, etc.) como ferramenta da disputa
política.
De volta à história de
Purim, Mordechai se recusou a prostrar-se diante do ídolo.
Para ele, não importavam as facilidades representadas
pela aproximação com este ou aquele agente do poder – sua atitude reflete uma
posição de princípio, no qual os fins não justificam os meios, no qual suas
ações representavam algo mais que seu interesse imediato.
Mas o mundo gira e o Mordechai do fim da história,
braço-direito do rei, não tem mais o mesmo comportamento ético do Mordechai do
seu começo. Assim como tem acontecido com vários atores do cenário político brasileiro,
sua atitude quando estava no poder foi bem
diferente da que tinha quando estava longe dele. Acolhido no conforto do poder
no final da história, Mordechai permitiu que
seu povo cometesse um massacre que vai muito além do que seria razoável em
legítima defesa.[2] Nos dois últimos capítulos da meguilá,
a massa judaica – como tantas outras
massas de manobra na história – ganhou dimensão própria e
se deixou seduzir pelo seu próprio poder. Não
se trata aqui de discutir se há ou não motivo para a raiva expressa neste comportamento, mas da
forma violenta como a raiva se manifesta, o que acaba
destruindo qualquer razão que houvesse originalmente. Da
mesma forma, escutamos casos de violência pela cor da camisa (ou da bicicleta!)
errada nas manifestações das últimas semanas, pois boa
parte da multidão nas ruas parece não ter a capacidade de
considerar a possibilidade de que alguém que não defenda a mesma causa seja
também uma pessoa honesta, bem intencionada e, talvez até, com um pouco de razão nos seus argumentos.
O midrash que
vimos acima entendeu que a recusa de Mordechai em se curvar
frente a Haman estava relacionada à proibição bíblica de ídolos ou imagens que
tentem ilustrar a
realidade Divina. O Rabino
Avraham Joshua Heschel[3]
ensinava que esta proibição está baseada no fato de que o ser humano já
havia sido criado à imagem Divina. Qualquer
imagem que não reflita esta complexidade diminui não apenas a imagem de Deus, mas
também a dos seres humanos. De forma similar, precisamos compreender que a criação de cada pessoa individualmente
reflete apenas uma pequena parcela da imensidão Divina. É apenas no encontro
com o diferente, no diálogo com o oposto, no respeito incondicional que negamos
a idolatria de achar que a nossa realidade (ou a dos
líderes e ídolos que escolhemos) reflete toda a verdade de Deus.
Lembrar que não devemos adorar quase-deuses ou figuras
messiânicas e que a Verdade (com "V" maiúsculo) é composta de uma
muitas verdades parciais, muitas delas contraditórias entre si – estas são minhas recomendações para a celebração de Purim
neste ano!
Chag Purim Sameach!
Uma festa de Purim feliz e transformadora para todos nós!
[1] Ester Rabá 6:2.
[2] Para uma discussão mais elaborada acerca do massacre no fim
da história de Purim, veja a primeira parte deste artigo, incluindo, nos
comentários o debate com Daniel Chanchinski, a quem agradeço por ter
me instigado a refinar os argumentos feitos no corpo do artigo.
[3] Conforme
relatado em Green, Art. (2004) Ehyeh: A
Kabbalah for Tomorrow. Jewish Lights: p. 121.