sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Dvar Torá: Nossa obrigação de evitar um novo Mitsrayim nas nossas cidades (CIP)


Um ditado americano diz que “old habits die hard”, “antigos hábitos demoram a morrer”. Antes de ser rabino, eu era economista e a história da Torá que começou na parashá da semana passada e termina na desta semana é um prato cheio para economistas. Para quem não se lembra, Iossêf é a única pessoa capaz de escutar com atenção e, assim, interpretar os sonhos que angustiavam o faraó, o rei do Egito. Ele corretamente prevê que a região passará por sete anos de fartura, aos quais se seguirão sete anos de escassez. Alçado à posição de vice-rei, ele desenvolve um plano para estocar alimentos durante os sete primeiros anos, de tal forma que o Egito pudesse sobreviver ao desafio dos sete anos seguintes.

É aí que minha cabecinha de economista começa a girar…. minha abordagem às histórias da Torá não implica acreditar nelas como historicamente verdadeiras, mas sempre procurar a verdade religiosa que elas refletem — e mesmo assim, eu não consigo evitar pensar na logística de todo este esquema de armazenagem. Quantos silos teriam que ser construídos para armazenar todos estes grãos? Eles estavam distribuídos por todo o território? Como fazer para que a comida não estragasse ao longo de tantos anos? A produtividade dos primeiros sete anos teria sido suficiente para garantir que, guardando apenas 20%, todas as pessoas do Egito pudessem sobreviver à seca tranquilamente? Será que durante os anos de fartura, as pessoas já foram apertando o cinto para que sobrasse mais produção para o período seguinte?

Mas é no final dessa história que aparece meu maior incômodo, já na parashá que lemos nesta semana. Os sete anos de escassez começaram e Iossêf vendia para a população o que tinha acumulado nos anos anteriores: primeiro, em troca de prata; depois, quando ninguém mais tinha prata para trocar, em troca dos animais que os camponeses tinham; quando eles não tinham mais animais, eles entregaram suas terras em troca de grãos –– e assim, toda a terra do Egito passou a ser propriedade do Faraó, exceto pelas terras que pertenciam aos sacerdotes. Dali em diante, Iossêf estabeleceu um sistema através do qual ele entregava sementes para que os camponeses egípcios cultivassem a terra do faraó — o resultado da produção era dividido: 80% para os que trabalharam a terra e 20% para o faraó.

Enquanto a região toda passava fome e vinha ao Egito conseguir comida, o plano de Iossêf parece ter funcionado — tanto que os próprios camponeses , destituídos da sua terra e da sua liberdade, declararam que ele havia lhes dado vida [1]. No entanto, a forma como tudo foi desenvolvido gerou uma extrema concentração da riqueza egípcia nas mãos do faraó. Passados os 14 anos, sete de fartura e sete de escassez, as coisas não voltaram a ser como eram…. agora, o Faraó era dono de praticamente todas as terras do Egito, a única exceção sendo o que já pertencia à elite dos sacerdotes.

A capa da Folha de São Paulo de hoje apresenta uma foto [2] que tenta reproduzir o impacto de outra, publicada em 2004 em um caderno especial sobre os 450 anos da fundação da cidade, que havia sido tirada pelo fotógrafo Tuca Vieira e que ganhou vários prêmios internacionais [3]. Em comum, as duas fotos expõem a divisa entre a favela de Paraisópolis e o bairro do Morumbi. Na edição de hoje, a foto ilustra uma matéria sobre como a recuperação econômica será diferente para pessoas com empregos formais e aqueles que atuam sem carteira assinada. Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas, afirmou à matéria: “A mãe de todas as desigualdades é a desigualdade de educação, que vinha caindo há 40 anos. Isso não só foi interrompido, mas revertido pela pandemia. É uma cicatriz, que tem efeitos permanentes. O vento que soprava a favor começa a soprar contra. Isso vai deixar sequelas. (…) Isso gera um efeito cicatriz. Para as pessoas que param os estudos e vão para o mercado de trabalho em uma época adversa, o rendimento do trabalho deles, anos depois, e outros indicadores dessa geração, como o de violência, são afetados de forma mais permanente.” [4]

Assim como no Egito do Faraó, um resultado claro da crise pela qual estamos passando será, portanto, um processo de profunda concentração de renda, tornando ainda mais agudas as injustiças sociais sistêmicas com as quais convivemos e com as quais nos acostumamos. No começo, falávamos do caráter universal da pandemia, que atingia ricos e pobres da mesma forma; nove meses depois, não podemos mais nos iludir com essa falácia. A verdade é que a crise tem atingido de forma muito distinta o centro e a periferia das nossas cidades, mesmo que as vezes a separação entre o centro e a periferia seja só um muro — e olhando as fotos da Folha, não havia motivo algum para um dia termos acreditado que seria diferente.

Todos nós conhecemos o final da história que começa com Iossêf. Os hebreus eram parte do segmento privilegiado por sua associação com Iossêf, o vice-rei, e, assim, ficaram protegidos. Passado algum tempo, no entanto, um novo faraó subiu ao poder, um que não se lembrava mais quem Iossêf tinha sido. Em uma sociedade brutalizada pela concentração de riquezas e de poder, a decisão de escravizar um povo inteiro e de aniquilá-lo não pareceu tão absurda.

Da nossa experiência sob opressão no Egito, vem a mitsvá mais vezes repetida na Torá inteira: não oprimir o estrangeiro porque nós fomos estrangeiros na terra do Egito. Em linguagem bíblica, o estrangeiro — muitas vezes associado às viuvas e aos órfãos — é o exemplo paradigmático do oprimido, dos segmentos mais vulneráveis das nossas sociedades. É nossa obrigação judaica garantir que os efeitos nefastos desta pandemia não aprofundem ainda mais as injustiças da nossa sociedade ou penalizem de forma desproporcional quem tem menos recurso para se defender. Ainda que não esteja claro como será a vacinação no Brasil, as experiências internacionais nos dão alguma razão para um pouco de otimismo de começarmos a ver a luz ao final deste longo túnel que já custou a vida de mais 190.000 brasileiros e precisamos garantir que esta luz brilhe em todos os seus aspectos para todos da mesma forma.

Como o rabino Ruben muito bem disse na live antirracista de domingo passado, citando Heschel, “não somos todos culpados, mas somos todos responsáveis.”

Façamos nossas vozes serem ouvidas, através da forma como escolhemos gastar nosso dinheiro, pressionando nossos políticos individual e institucionalmente, nos manifestando publicamente para que o גר, o estrangeiro, o vulnerável, não pague mais uma vez a conta por todos nós.

Shabat Shalom!


terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Podcast 5.8 - Episódio 9: Pontes Judaicas: Judaísmo & Música

 (Originalmente publicado em http://5ponto8.fireside.fm/9)

A música judaica “[d]efine-se como a música que derivou dos antigos cantos litúrgicos e orações praticadas no Levante há cerca de 3.000 anos atrás. A música judaica vem sendo constantemente adaptada, sem, no entanto, perder sua identidade, em meio aos diferentes ambientes étnicos, sociais, religiosos e culturais, em que tem existido e até florescido. A música do Judaísmo é um dos elementos fundamentais para a compreensão das tradições sagradas e seculares da Europa e do Oriente Médio, primeiramente por ter influenciadora e posteriormente, por ter sido influenciada pela música do Cristianismo e do Islamismo.”

Esta é apenas uma parte da definição de musica judaica segundo o Instituto da Música Judaica do Brasil. O fato é que a música acompanha a história e evolução judaica. Nos acompanha em momentos chave da nossa vida.

A música é um dos artefatos mais importantes da nossa cultura, além de ser inerentemente humana. Como dizia Nietzche, “sem a música, a vida seria um erro”

Neste episódio vamos falar sobre as pontes entre música e judaísmo com Yair Mau e Alexandre Edelstein.

Referências do Episódio:

Dicas Culturais:

Com Rogerio Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música de Abertura: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Edição: Misa Obara

Webinário: "Natal" - um tempo de reflexão sobre o diálogo

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Podcast "Podfalar Em Companhia" - Ed. 71 (Jesuítas Brasil)

(originalmente postado em https://soundcloud.com/jesuitasbrasil/pode-falar-0)

A fim de auxiliar no diálogo sobre a democracia e a cidadania no país, convidamos o rabino Rogério Cukierman, que integra a Congregação Israelita Paulista (CIP), para falar sobre as colaborações que as religiões podem estabelecer no exercício da cidadania e da diversidade de perspectivas entre as comunidades religiosas. O rabino também abordou o papel do judaísmo no contexto de exclusão e da pandemia do coronavírus.

Ouça o podcast dessa edição do Em Companhia.

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Podcast 5.8 - Episódio 8: Pontes Judaicas: Judaísmo & Direitos Humanos

 (originalmente publicado em: http://5ponto8.fireside.fm/8)

Nos primeiros onze capítulos da Torá, não há nada que seja exclusivo ao povo judeu. São nesses capítulos que aparecem as famosas histórias de Adão e Eva, da Arca de Noé e da Torre de Babel. É só no capítulo 12, com o começo da história do patriarca Avraham que começa a narrativa específica judaica. Mesmo assim, nos nossos serviços religiosos e na educação judaica, falamos muito mais das narrativas claramente judaicas da Torá do que seu início. O que isso significa para o equilíbrio entre os aspectos universais e particulares dentro do Judaísmo?

E numa tradição que fala tanto em obrigações, de que forma os direitos são valorizados?

Direitos Humanos, este é o tema do nosso episódio de hoje. Nossos convidados são Rafael Reuben, assistente jurídico da missão israelense em Genebra e Juana Kweitel, diretora-executiva da Conectas, ONG de direitos humanos.

Notas do episódio:

Dicas Culturais:

Com Rogerio Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música de Abertura: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Edição: Luan Zanholo e Rogerio Cukierman

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Dvar Torá: Eu sou um Racista em Desconstrução: um pedido de desculpas pra Iaiá (CIP)


Quando eu era pequeno, eu tinha uma babá. O nome dela era Maria, mas eu a chamava de Iaiá e o nome acabou pegando. A foto da qual eu mais me lembro dos meus primeiros anos sou eu aos dois anos dentro do mar, acho que em Santos, o barrigão pra fora, um enorme sorriso malandro no rosto — e a Iaiá no fundo, de vestido, até os joelhos dentro do mar. Nessa idade, eu dividia o quarto com o meu irmão e lá só tinham as nossas duas camas. Quando eu ficava doente, a Iaiá deitava no chão pra me colocar pra dormir e estava lá caso eu chorasse no meio da noite.

Em 1976, quando eu tinha cinco anos, passou na TV um dos maiores ícones da teledramaturgia brasileira. A novela “Escrava Isaura” contava a história de uma escrava por quem o senhor da fazenda se apaixona. Isaura era branca mas todos os outros escravos retratados na trama eram pretos; pretos assim como a Iaiá. Vendo aquela realidade e o que acontecia na minha casa, eu logo entendi qual era a regra do jogo. Fui conversar com a minha mãe e, muito sério, pedi pra ela que, quando chegasse a hora de dar a alforria pra Iaiá, ao invés disso, ela desse a Iaiá pra mim.

Eu conto essa história pra me juntar a uma série de outras figuras que se declararam “racistas em desconstrução”.  Fabio Porchat, um dos criadores da iniciativa escreveu “É chocante e desconfortável, mas é a verdade. É essencial e urgente que eu diga isso antes que mais vidas sejam prejudicadas. Carrego em mim preconceitos estruturais e estou aqui pra dizer que participei dessa construção nociva, e, de forma perigosamente sutil, absorvi e reproduzi o idioma do racismo com fluência. Não sei quantas vezes eu fui tóxico ao longo da vida, mas a partir de agora eu sou um racista  em desconstrução, e começo o trabalho de transformação.” [1]

Eu conto a história da Iaiá com vergonha, mas ciente de que eu preciso assumir minha história se eu quero o direito de sonhar com um país diferente. Eu conto essa história porque, apesar da minha barriga estar perigosamente parecida àquela que eu tinha aos dois anos e de gostar do sorriso malandro na foto, eu não quero mais me reconhecer na conduta daquele menino e para isso é necessário um profundo processo de t’shuvá.

A gente costumar associar t’shuvá às Grandes Festas, mas é um processo que precisa acontecer o ano todo. T’shuvá, que muitas vezes é traduzido por arrependimento, é muito mais do que isso; é um processo sobre o qual a tradição judaica se debruça com especial atenção. Na sua origem, o termo quer dizer “retorno” e representa o nosso esforço para retornarmos à melhor versão de nós mesmos, de corrigirmos nossas ações quando erramos, repararmos os erros que causamos e garantirmos que eles não voltem a acontecer. No começo de todo processo de t’shuvá está o reconhecimento do erro…

Infelizmente, essa talvez seja a parte mais difícil. Eu amava a Iaiá profundamente e o sorriso no meu rosto na foto que eu mencionei evidencia isso. Seria fácil me esconder atrás desse amor e dizer que ela era como se fosse da família, que o meu pedido para minha mãe tinha sido o jeito de uma criança de cinco anos expressar seu amor pela babá. É bem possível que fosse isso mesmo, mas era também resultado do racismo estrutural em que vivemos e no qual eu fui criado, em que aquela moça preta que morava na minha casa era sujeitada constantemente, inclusive por mim e pela minha família, ao preconceito naturalizado pela nossa cultura.

O primeiro passo para reconhecer o erro é parar de dizer que a Iaiá era parte da família, porque ela não era. Quando íamos jantar fora, ela não ia; quando viajávamos, ela só era convidada se fosse para tomar conta de mim; quando eu ia soprar a velinha do bolo de aniversário, ela nunca esteve lá na frente, junto com meu pai e minha mãe. A Iaiá era uma babá querida, cuja subjetividade foi muitas vezes negada, que foi objetificada, mas esses erros nunca foram reconhecidos sob a desculpa de que ela “era quase da família”.

Sim, eu sou um racista em desconstrução, tentando iluminar os aspectos da minha biografia dos quais não me orgulho para poder lidar com eles.

O patriarca Iaacov tem uma história parecida. Seu nome ao nascer, Iaacov, numa tradução livre, quer dizer “enganador”. Iaacov (יעקב) vem de ekev (עקב), “calcanhar”, porque ele nasceu agarrando o calcanhar de seu irmão gêmeo na tentativa de passar na frente na hora do parto e ser o filho primogênito. Iaacov só deu um prato de ensopado de lentilhas para seu irmão faminto quando ele prometeu lhe entregar em troca seu direito à primogenitura; Iaacov enganou seu pai e se fez passar pelo irmão para receber a benção que era destinada ao outro; quando Iaacov sonhou com os anjos subindo e descendo uma escada, ele acordou e tentou fazer uma barganha com Deus: “se Deus estiver comigo e me proteger no caminho por onde eu for, se me der pão para comer e roupas para vestir, se eu voltar são e salvo para a casa do meu pai, então ה׳ será o meu Deus.” [2] Relacionamentos não eram o forte do nosso patriarca e ele avaliava toda pessoa que encontrava de acordo com a utilidade que tinha para seu plano. 

Depois de passar 20 anos fugindo da ira do seu irmão, Iaacov resolveu enfrentar seus erros e voltar para a terra dos seus pais. Seu amadurecimento parece evidente na forma como ele fala com Deus no comecinho da nossa parashá: 

קָטֹנְתִּי מִכֹּל הַחֲסָדִים וּמִכָּל־הָאֱמֶת אֲשֶׁר עָשִׂיתָ אֶת־עַבְדֶּךָ 
כִּי בְמַקְלִי עָבַרְתִּי אֶת־הַיַּרְדֵּן הַזֶּה
וְעַתָּה הָיִיתִי לִשְׁנֵי מַחֲנוֹת׃
Eu não mereço os favores nem a bondade com que Você tratou teu servo. 
Quando atravessei este Jordão, eu tinha apenas um bastão, 
agora possuo dois acampamentos. [3]

O processo de amadurecimento de Iaacov é endereçado de forma mais enigmática alguns parágrafos depois. Iaacov está sozinho ao lado de um rio quando um homem aparece e os dois brigam durante toda a noite. Quando o Sol começa a nascer, Iaacov pede uma benção ao sujeito, que vem na forma de uma troca de nome. “Seu nome não será mais Iaacov, mas Israel, pois você lutou com Deus e com homens e prevalesceu.” Mesmo tendo sobrevivido, Iaacov saiu desta luta machucado na perna e passou a andar mancando a partir de então. [4]

A tradição tem tentado há séculos encontrar algum sentido nessa história. Alguns comentaristas acreditaram que Iaacov lutou com o anjo da guarda de Essav, seu irmão [5]. Outros, optaram por analisar o texto como se fosse um sonho, usando uma abordagem psicanalítica. Nesta visão, o oponente é simultaneamente Essav, Itzchak e Deus, pessoas que Iaacov feriu durante sua vida e com as quais ele se reconcilia por meio da interação com o “homem” [6].

Em um texto que eu escrevi no primeiro ano da minha educação rabínica, eu disse o seguinte: 

É lá, nas margens do Iabok, que ele viu Deus face a face. Ele vê a pessoa que se tornou, o trapaceiro, o enganador, alguém que não consegue desenvolver relacionamentos com as pessoas ao seu redor e que está sempre fugindo em vez de enfrentar seus problemas. Ele sonha com um homem, que é simultaneamente um anjo, Deus e o próprio Iaacov. Ele vê um Deus que “forma a luz e cria as trevas, [que] faz a paz e cria o mal” [7]. Ele finalmente entende seu papel, a responsabilidade de escolher entre o certo e o errado. É um processo doloroso, pois Iaacov tem que reconhecer todos os erros que cometeu. Ao amanhecer, uma parte dele quer acordar desse sonho, juntar-se à sua família e seguir com a vida, mas Iaacov resiste à tentação e continua lutando consigo mesmo neste processo de busca da alma, até sentir que vale a pena as bênçãos que ele recebeu. Em algum momento, o “homem” pergunta seu nome e, chorando, ele responde “Iaacov, o enganador”, e a resposta é “você não precisa mais ser um enganador; seu nome será Israel, porque você lutou com Deus e consigo mesmo e se tornou uma pessoa melhor. ” Intrigado, Iaacov pergunta “e quem é você, para mudar meu nome?”, “Você não precisa perguntar, você sabe quem eu sou” foi a resposta. Iaacov reconheceu a natureza transformadora da experiência que teve nas margens do Iabok e chamou o lugar de Peniel, porque lá, pela primeira vez, ele teve a coragem de se olhar no espelho e, ao fazer isso, viu a face de Deus.

Mas Iaacov não se tornou uma pessoa perfeita depois daquele dia. Seu mancar o lembrou de que somos todos seres humanos e todos temos fracassos, mas precisamos tentar se quisermos melhorar. Quando o sol nasceu, terminou uma longa noite na vida de Iaacov.

Nos últimos meses, todos temos tido a chance de nos olharmos no espelho e o resultado nem sempre é satisfatório. Individualmente e como sociedade, temos visto muitas mazelas na imagem que reflete quem somos. A questão da injustiça racial tem gritado especialmente alto para mim. O assassinato do João Alberto Silveira Freitas no Carrefour em Porto Alegre foi só a ponta de um iceberg gigantesco. Pior: não fomos para as ruas, não interrompemos nossas rotinas. Alguns de nós pararam de comprar no Carrefour, como se isso fosse corrigir a profunda desigualdade racial em que vivemos e continuamos com nossas vidas.

Eu sei que eu já falei de racismo há seis meses, quando George Floyd foi assassinado por um policial nos Estados Unidos — mas não dá pra marcar essa caixinha como endereçada e continuar com as nossas vidas como se uma prédica tivesse cumprido sua função. Palavras são só palavras e é nas nossas ações que esta questão será decidida: nas nossas condutas pessoais e nas políticas comunitárias que resolvermos implementar. Que ações vamos tomar para diminuir o racismo na nossa comunidade? Na nossa cidade? No nosso país?

Outro dia alguém perguntou como se chama alguém sentado a uma mesa com vários nazistas, onde os comentários antissemitas correm soltos sem serem contestados. “Nazista” é o nome que se dá a uma pessoa assim, foi a resposta. De forma similar, não podemos permanecer passivos quando comentários racistas são feitos na nossa frente ou nas nossas instituições — se não formos ativamente antiracistas, então estaremos sendo coniventes com a propagação do ódio, estaremos sendo racistas também.

O conflito de Iaacov, que na minha leitura representa seu primeiro encontro verdadeiro consigo mesmo, o deixou marcado pelo resto da vida. O encontro não foi fácil e deixou sequelas — re-examinar nossas condutas tampouco é agradável mas é a única alternativa viável para crescermos como indivíduos e como sociedade. Que este seja o nosso caminho….

Shabat Shalom!


[1] https://blogs.ne10.uol.com.br/social1/2020/08/08/fabio-porchat-cria-campanha-sou-um-racista-em-desconstrucao/
[2] Gen. 28:20-21
[3] Gen 32:11
[4] Gen. 32:23-33.
[5] Por exemplo, Rashi e Nehama Leibowitz (1972). Studies in the Book of Genesis: In the Context of Ancient and Modern Jewish Bible Commentary (A. Newman, Trans.). Jerusalem: World Zionist Organization, Department for Torah Education and Culture, p. 72.
[6] Vonck, P. (1984). The crippling victory: The story of Jacob’s struggle at the river Jabbok (Genesis 32:23-33). African Ecclesial Review, 23, p. 75-87. 
[7] Isaías 45:7


A violência contra a mulher e o silenciar das vítimas

Nos últimos tempos, tem estado em moda a discussão de quem pode falar pelos marginalizados. Será que só judeus podem falar sobre a Shoá? Que só negros podem falar de racismo estrututal, que pessoas fora do universo LGBT+ não podem se manifestar por uma sociedade mais inclusiva?! Pessoalmente, eu acho que quanto mais vozes se juntarem pela construção de uma sociedade mais inclusiva e que valorize sua diversidade, melhor estaremos — mas há algo realmente estranho quando os segmentos oprimidos são excluídos da discussão sobre sua própria opressão. Imaginem uma conferência para discutir antissemitismo da qual judeus não façam parte; imaginem uma mesa redonda para falar de racismo em um canal de TV a cabo da qual não participe nenhum jornalista negro…

A parashá desta semana, Vaishlach, traz dois episódios de violência contra mulheres: no primeiro deles, Shchem, um morador da terra de Cnaán, violenta Diná, filha de Iaacóv [1]; no segundo, Reuben, filho de Iaacov, se deita com Bilá, sua madrasta [2]. Nos dois episódios não escutamos as vozes das mulheres: sabemos do vexame que esses atos trouxeram aos parentes homens da vítimas, como suas honras foram afetadas, que atos eles cometeram como vingança —  mas não sabemos como Diná e Bilá se sentiram, nunca ouvimos como elas fizeram para se recuperar do trauma da violência que havia sido cometida contra elas, como continuaram vivendo depois desses atos. Infelizmente, nas páginas da Torá Bilá e Diná são simplesmente objetos, suas subjetividades não foram reconhecidas.

Nas milhares de páginas de comentários escritos pela tradição rabínica, Diná e Bilá tampouco receberam direito à fala. Vários midrashim [3] colocam a culpa em Diná pela violência que foi cometida contra ela. Como é comum ainda hoje, esses midrashim culpam a vítima por ter se exposto e provocado a atenção de um homem. Outros comentários analisam os interesses estratégicos de Iaacov, dos seus filhos homens, de Reuven, de Shchem e seus compatriotas — os rabinos da nossa tradição, todos homens, se preocuparam com as motivações dos outros homens da história mas mantiveram as mulheres silenciadas.

Nas últimas décadas, o aumento de mulheres comentaristas da Torá e ordenação de mulheres rabinas têm ajudado a apontar para esse silenciamento e romper com ele. A rabina Lia Bass, a primeira brasileira a receber esse título, escreve a respeito da falta de perspectivas femininas: “nenhum dos comentaristas trata diretamente de Bilá. O foco deles é condenar Reuven por ter dormido com a concubina do seu pai; em outras palavras, por ter utilizado a propriedade do seu pai.” [4] A rabina Rachel Barenblatt escreve que “ao longo dessa narrativa, Diná não fala nem uma vez. Sua voz está totalmente ausente do fogo preto de nosso texto. Para ouvir a voz de Diná, olhamos para o fogo branco.” Ela está se referindo aos midrashim que, no entanto, em geral também não deram voz a Diná. A rabina Barenblat cita alguns midrashim de acordo com os quais “Diná se torna a esposa de Jó, o que é considerado uma punição para Iaacov” e elabora: “a forma como o sofrimento subsequente de Diná é visto como uma punição para seu pai, mas não para ela, é um sinal da sua invisibilidade na sua própria história.” [5]

Até hoje, a prática de silenciar mulheres vítimas de violência continua, assim como os questionamentos sobre quais práticas delas contribuíram para o ataque. Casos recentes têm explicitado como nosso sistema judicial está mal equipado para tratar do tema. [6] O silêncio das mulheres da parashá desta semana deve nos servir como alerta de que a violência nunca pode ser contabilizada na conta da vítima, que ainda sofre nova violência quando é objetificada e sua dor tratada como uma extensão do dano à honra masculina. 

A rabina Laura Geller pergunta: “o que acontece com Diná após o episódio? Nós não sabemos. Nunca ouvimos falar dela, como nunca podemos ouvir das mulheres da nossa geração que são vítimas de violência e cujas vozes não são ouvidas.” [7] Temos falhado nesse sentido, a ponto de, como diz Andrea Kulikovsky, alguma forma de violência sexual atingir todas as mulheres hoje em dia. [8]

Por cada uma de nós, por cada um de nós, precisamos fazer mais para acolher e dar voz às mulheres, para educar os homens, para romper com esse modelo tóxico de sexualidade e poder. Precisamos fazer muito mais.

Shabat Shalom.



[1] Gen. 34:1-31
[2] Gen. 25:22a
[3] Veja, por exemplo, Bereshit Rabá 80:1-5, Tanchuma Vaishlach 5.
[4] “The Women’s Torah Commentary”, Rabina Elyse Goldstein (ed.), p. 86.
[5] https://velveteenrabbi.blogs.com/blog/2013/11/on-dinah.html
[6] https://www1.folha.uol.com.br/.../o-que-ataque-a-mariana...
[7] https://www.myjewishlearning.com/article/comforting-dina/
[8] https://www.facebook.com/MulheresnaTora/posts/257348998275391