sexta-feira, 19 de março de 2021

Dvar Torá: Mudanças que vão além da superfície (CIP)


Pessach está chegando em 8 dias. O primeiro sêder será na noite de 27/03 e eu quero convidar todo mundo a participar deste evento comunitário garantindo toda a segurança, mantendo-se nos seus núcleos familiares limitados e integrando a comunidade através da transmissão do sêder da CIP com a condução do rabino Michel com o Alê Edelstein.

Uma das tradições na preparação de Pêssach é fazer a limpeza da casa e eu tenho estado envolvido neste processo há algum tempo. Em uma caixa perdida que eu não tinha aberto deste que me mudei para São Paulo há mais de dois anos, encontrei um monte de receitas médicas. Lá no meio, as receitas do óculos que eu devia usar mas nunca uso… Eu comecei a usar óculos logo depois de me formar na faculdade. Depois de me formar na GV de São Paulo, meu primeiro emprego foi no Banco Bozano, Simonsen, no Rio. A mudança de cidade, a construção de um novo circulo de amigos oferecia a possibilidade de me re-inventar, de sair do casulo tímido em que eu tinha vivido até então sem ter que me preocupar com as expectativas que as pessoas que já me conheciam tinham a meu respeito. Pra ajudar, vieram o óculos, novo apetrecho que possibilitaria que o tímido Clark Kent virasse o destemido Superhomem. 

Tolo engano… alguns meses vivendo no Rio, uma grande amiga que eu tinha conhecido lá descreveu como ela me via. Era um retrato idêntico ao que meus amigos de São Paulo teriam descrito, com exceção do óculos que eu tinha adicionado ao visual.

Mudanças de contexto oferecem a possibilidade de transformarmos aquilo que nos incomoda na realidade que estamos vivendo — mas elas não tem nenhum poder mágico. Se quisermos realmente transformar como interagimos com o mundo e os resultados que obtemos, não há substituto para o duro de análise das nossas ações e mudanças de condutas.

Essa é uma semana cheia de mudanças. Já na segunda-feira entraram em vigor no Estado de São Paulo as novas regras para o estado de emergência em que nos encontramos de acordo com as quais templos religiosos não são mais considerados atividades essenciais e nós aqui na CIP corremos para repensar as cerimônias todas e fazê-las cada um da sua casa. Nesta semana, mudou o ministro da Saúde. Nesta semana, começamos um novo livro da Torá.

Vaicrá ou Levítico, o livro que começamos esta semana, coloca a ênfase no trabalho ritual dos sacerdotes e nos detalhes intricados dos sacrifícios, a forma de relacionamento com o Divino naquela época. Para um leitor contemporâneo, ler estas passagens traz uma certa medida de choque, especialmente para quem acredita que o judaísmo que praticamos hoje é exatamente o mesmo que nossos antepassados praticavam na época da Torá. O mundo mudou, as sociedades mudaram e o judaísmo mudou junto. 

Os rabinos tiveram a coragem de examinar as práticas descritas na Torá de forma crítica e propuseram novas formas de relacionamento com o Divino. A reza que praticamos hoje é resultado deste processo de transformação profunda. Em um diálogo imaginado pelos Rabinos de um midrash [1], Deus teria lhes dito que precisava apenas de palavras e que elas tinham a vantagem de que podiam ser ditas nas sinagogas, nas cidades, nos campos, até mesmo nas camas ou nos corações das pessoas. Não foi uma mudança fácil, muitas pessoas disseram que isso era um absurdo, que a vontade de Deus estava claramente refletida nas práticas descritas na Torá, que a mudança era ofensiva e inconcebível. Confrontadas com o esforço de mudar, esses grupos resolveram continuar apegados ao passado. Hoje, os conhecemos pelas páginas dos livros mas eles deixaram de fazer parte do presente judaico.

Nas páginas de Vaicrá, vamos buscar valores e inspiração para nossas práticas cotidianas. Ao evitarmos uma leitura que determinasse que as práticas prescritas no texto devem determinar nosso comportamento de forma literal, garantimos que a Torá, corpo central da nossa tradição, mantenha-se relevante ainda que tudo ao nosso redor tenha se transformado. Na parashá desta semana, por exemplo, lidamos com os erros que cometemos com ou sem intenção, em particular quando as pessoas que cometem estes erros ocupam posição de liderança e inspiram outros a seguir pelo mesmo caminho. Ainda que a prática de sacrifícios e libações não façam mais parte do nosso arsenal de respostas a estes erros, esta conversa inspirada pela Torá nos leva a considerar como podemos responder a esta situações quando elas acontecem na nossa própria época.

Uma frase famosa, constantemente atribuída a Albert Einstein define insanidade como fazer a mesma coisa muitas vezes e esperar resultados diferentes. Vivemos hoje uma crise sanitária sem precedentes na história recente. O número diários de mortos pela Covid se aproxima de 3,000. Como bem lembrou o querido Theo Hotz, ex-moré da CIP e no caminho de se tornar um colega rabino em alguns anos, “Em 2001, no ataque às torres gêmeas do World Trade Center, 2977 pessoas foram vítimas do terrorismo. No Brasil, temos um 11 de setembro por dia por causa de uma única doença.” [2] Aproveitando as palavras atribuídas a Einstein, é insano acreditarmos que podemos continuar fazendo as mesmas coisas e esperarmos resultados diferentes. A situação exige a mobilização de todos nós.

É fácil colocar a culpa nos outros — apontar para políticos que pregam o contrário do que diz a ciência ou se sujeitam a pressão de grupos organizados, andar pela rua e culpar quem ainda anda pela cidade com a máscara no queijo, como se ela fosse um amuleto que pudesse salvar vidas por proximidade. E, ainda assim, continuar com suas vidas e visitar alguns poucos amigos para um choppinho no final de semana; planejar o seder de Pessach com a família porque todos estão se cuidando; pedir comida pelo aplicativo todo dia, porque o entregador precisa trabalhar também, não é mesmo?!

O salvar-vidas só vai acontecer quando cada um de nós mudar nosso comportamento pra valer — abrir mão de práticas que nos são caras e entender que a mudança cosmética pode causar impacto mas não muda nada de verdade.

Quando a gente começou a fazer os serviços remotos, falaram muito de como falar para a sinagoga vazia era diferente, gerava incômodo. Eu confesso que este novo formato com cada um em sua casa gera um incômodo muito maior — mas nada comparado à possibilidade de salvarmos uma vida que seja ao transformarmos nossa conduta. Estamos tentando fazer a nossa parte e eu quero encorajar cada um de vocês a considerar o que vocês podem fazer também como a parte de vocês.

Em Pessach, nos lembramos da transformação dos filhos de Israel no povo hebreu, um processo baseado na solidariedade e na construção de um caminho conjunto. Que as cenas terríveis que assistimos em Manaus e em outras partes do país nos sensibilizem para a necessidade de mudanças urgentes e verdadeiras.

Shabat Shalom 



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