sexta-feira, 29 de abril de 2022

Dvar Torá: Entre criatividade e arrogância (CIP)


Entre os muitos hábitos que eu tinha na juventude e que meus pais esperavam que eu abandonasse quando envelhecesse está o gosto musical — que, para desespero deles e dos meus filhos, inclui cantores e conjuntos fora do consenso musical. Por exemplo, eu adoro releituras de músicas bregas — Marisa Orth e a Banda Vexame faziam um trabalho lindo nesse sentido; mais recentemente, Nando Reis e Nila Branco também dedicaram álbuns a este tipo de trabalho. Outro tipo de música que eu gosto fora do mainstream é o que se convencionou chamar de Vanguarda Paulista, um movimento musical que incluía nomes como os de Arrigo Barnabé, Grupo Rumo, Premeditando o Breque e o Língua de Trapo. Ainda hoje, tenho dificuldade para no Metrô, ver os nomes dos bairros de São Paulo refletidos nos nomes das estações não começar a cantarolar:

Chora Menino, Freguesia do Ó
Carandiru, Mandaqui, aqui
Vila Sônia, Vila Ema, Vila Alpina
Vila Carrão, Morumbi, pare
Butantã, Utinga, Embu e Imirim
Brás, Brás, Belém
Bom Retiro
Barra Funda
Ermelino Matarazzo, Mooca, Penha, Lapa, Sé
Jabaquara
Pirituba
Tucuruvi, Tatuapé. [1]

Essas bandas eram conhecidas por um estilo musical MUITO eclético, que misturava muitos gêneros diferentes e sempre com grande dose de humor. No álbum mais famoso do Língua de Trapo, que tem o nome da própria banda, uma vinheta de humor no meio do álbum trazia o seguinte diálogo:

– Seu nome, por favor?
– Inês
– Inês, você conhece o grupo Língua de Trapo?
– Não.
– E o que você acha deles?
– Uma porcaria.

Parece piada e foi incluído no álbum, eu tenho certeza, como piada, mas a triste verdade é que esta vinheta descreve de forma bastante acurada o que estamos vivendo. Temos opinião sobre TUDO. Opinião sobre o que conhecemos e, especialmente, opinião sobre aquilo sobre o qual não temos o mínimo conhecimento. 

Nós últimos anos, este fenômeno tem se acentuado, com uma certa valorização da falta de conhecimento. Se um dispositivo eletrônico tiver sido desenvolvido por alguém que não tinha formação na área, ganha crédito; se um remédio tiver sido criado por alguém que não é médico nem farmacêutico, ainda melhor. Ao invés de valorizarmos o conhecimento e uma atitude de humildade frente a ele, chegamos a um estado de coisas em que a arrogância ignorante é que é valorizada.

Fiquei pensando nesta realidade quando li o comentário de Dena Weiss. coordenadora do Beit Midrash do Instituto Hadar, em Nova York, para a parashá desta semana [2].

Há mais ou menos um mês, em parashat Shmini, lemos sobre o fogo estranho, אש זרה, esh zará, que os filhos de Aharon, Nadav e Avihu, ofereceram a Deus na inauguração do Mishcán e como de forma pouco compreensível um fogo Divino os consumiu. [3]

Preciso confessar que tenho certa dificuldade com esta passagem. Em parte, ela parece justificar uma atitude hiper-conservadora com relação à prática religiosa, na qual apenas o que já tiver sido estabelecido é aceito. Qualquer inovação corre o risco de incitar a fúria Divina e nos ver consumidos pelo fogo. Qualquer espaço para a espontaneidade, ficaria desta forma, inviabilizado pelo texto bíblico. Para mim, no entanto, a prática religiosa floresce na manifestação genuína, naquilo que a tradição chama de “cavaná”, da ação motivada pela intenção dos nossos corações — ainda que em espaços delimitados por “keva” a formulação tradicional da prática religiosa. Por isso, o episódio de Nadav e Avihu consumidos pelo fogo sempre trouxe consigo bastante desconforto. 

Agora, nossa parashá literalmente retoma aquele episódio, nos contando o que aconteceu na sua sequência. Moshé recebe as instruções que deve passar a Aharón depois da morte de seus filhos:

A primeira instrução é que Aharón não pode entrar na parte mais sagrada do Mishcán quando quiser, mas apenas em Iom Kipur, seguindo instruções muito específicas. A segunda instrução é com relação ao ritual dos dois bodes a serem oferecidos em Iom Kipur: um quer será sacrificado para Deus e outro que será enviado ao deserto.

Dena Weiss buscou a ligação entre a morte de Nadav e Avihu e a proibição de entrar no קודש הקודשים, kodesh hakodashim, o lugar mais sagrado do Tabernáculo. Na sua leitura, a transgressão de Nadav e Avihu não estava na oferta que eles haviam trazido sem instrução prévia, mas no fato de que não tinham respeitado o espaço mais íntimo que o Divino tinha estabelecido no Santuário. Quantas vezes não sentimos nossos espaços pessoais ou profissionais invadidos; algumas vezes levando a sensações de termos sido profundamente desrespeitados? Se nos sentimos assim, podemos imaginar que o Divino, que inaugurava o espaço de sua morada entre os Hebreus, reagiria também com indignação frente à violação do seu espaço.

Dena Weiss também nos mostra que, de acordo com a literatura rabínica, esta era uma prática na qual Nadav e Avihu já tinham se engajado antes. Quando Deus convoca Moshé para subir ao Monte Sinai e receber as duas Tábuas do Pacto, o acompanharam Aharón, setenta anciãos, Nadav e Avihu. Naquela situação, de acordo com o midrash, eles já teriam agido de forma desrespeitosa com relação ao Divino, comendo sua refeição enquanto olhavam para a face de Deus. Dena Weiss continua: “A atitude de arrogância e privilégio de Nadav e Avihu não apenas se manifestou como grosseria para com Deus; também foi expresso em uma abordagem chocantemente superior que eles adotaram em relação a outras pessoas.”

Nadav e Avihu se comportavam como se seu status lhes conferisse direitos especiais sem que eles precisassem seguir regras, conhecer os parâmetros. Eles não precisariam adquirir conhecimento, nem construir pessoalmente sua relação com Deus. Seu pai era o Sumo Sacerdote; seu tio era Moshé. Como algo poderia lhes ser negado?!

Nas palavras de Dena Weiss: “(…) o pecado de Nadav e Avihu (…) corresponde à pior parte de nós mesmos. Eles não refletem apenas nosso desejo virtuoso de dar; também refletem nosso desejo egoísta de possuir o que não é nosso por direito. Um exame mais detalhado de seu pecado revela que Nadav e Avihu não estavam sendo atenciosos – exatamente o oposto: eles agiam sem consideração, eram descuidados e desrespeitosos. Sua ação demonstrou que eles pensavam que tudo era deles para dar, o que mal mascara sua compreensão de que tudo também é deles para receber. Em sua abordagem, o mundo e tudo nele pertence a eles.”

Quantas vezes não agimos como Nadav e Avihu, acreditando que nossos privilégios nos abrem todas as portas sem esforço? Que nossa cor, nosso pertencimento comunitário, nossa idade, nosso status sócio-econômico, nossa relação com pessoas em posição de poder , que todos estes fatores nos deveriam conferir um tratamento diferenciado, um reconhecimento da pessoa iluminada que imaginamos ser — mesmo que não tenhamos feito por merecer, mesmo que não tenhamos ainda conquistado estas distinções….

Que nesse shabat consigamos deixar a humildade nos conduzir, escutando antes de falar, estudando e considerando antes de emitir opiniões infundadas, considerando o contexto e a comunidade antes de definirmos nossas ações de forma isolada.

Shabat Shalom,



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